Bruna Bittencourt
brubittencourt
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6 min readJul 8, 2017

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“Você é menino ou menina?”

Foi a pergunta que ouvi de um garotinho no colégio. Eu tinha uns 7–8 anos de idade, vestia uniforme como todos, não era nada diferente das outras crianças da escola, não fosse meu novo corte de cabelo: curto!

Sim, se passaram aproximadamente 27 anos e eu nunca mais esqueci desse momento. Foi um marco na minha vida.

Aviso aos navegantes dessa leitura: esse é um textão 100% sobre mim e falará de encontros, prisões, liberdade, determinação, frustrações de uma mulher e portanto, sinta-se livre para abandonar o barco.

Sou de uma família de mulheres muito fortes, desconheço um membro da minha família do gênero feminino que seja “bunda mole” ou mimimi. Começando pela minha bisavó materna, a qual tenho grande paixão e tive a honra de ter por perto até meus quinze anos. Dona Lolô era uma matriarca que colocava ordem no barraco, que transbordava sabedoria e que me ensinou taaaaanto sobre a vida que nem sei . Passando por minhas tias e chegando na minha mãe, uma mulher que não cabe nos meus elogios. Sem ela eu jamais seria a mulher forte e corajosa que me tornei.

Lá em casa nunca foi moleza, meus pais se casaram e ficaram grávidos muito cedo. No inícios dos 20 e poucos já tinham três filhas, então tiveram que ralar demais para trazer o sustento. Minha bisavó, sempre muito próxima, ajudou mamãe a educar três meninas e eu e minhas irmãs sempre tivemos igual respeito pela direção das duas.

Não havia nada de diferente ou extraordinário na nossa familinha. Fui criada na fé cristã protestante (e vivo essa fé hoje), viemos de classe média baixa, somos mestiços e temos cabelo crespo.

Da esquerda para direita: Monike, irmã mais nova, eu, e Bianca, irmã do meio. Morro de amor por essa foto.

Cresci ao redor de primOs. Muito mais meninos do que meninas, e sempre me interessei por soltar pipa, jogar bola de gude, essas coisas de criança, sabe?

Um dia eu e minhas irmãs pegamos piolho, como toda criança ou quase toda, e esses bichos parecem que vêm em exército. Rapidamente mamãe tinha um problema três vezes maior do que esperava. Não deu outra,”corta o cabelo dessas meninas” , minha bisavó orientou, e assim foi. Saímos do salão com o famoso corte, lamentavelmente apelidado de Joãozinho, e foi a partir dessa época que comecei a ter minhas primeiras impressões do que socialmente é aceito como gênero.

No Brasil, sempre foi muito comum que as meninas tenham cabelo comprido, e os meninos cabelo curto. Agora junte meus interesses de criança a um look de cabelo curtinho e pensa no tanto de preconceito eu sofri naquela época.

A construção de quem somos é resultado das experiências que vivemos e por isso eu sempre martelei comigo mesma uma indignação enorme por ter que me encaixar em um padrão esperado pelas sociedade. Um “padrão feminino”!

Na pré-adolescência, meu cabelo já estava comprido novamente e, com as madeixas encaracoladas, veio um novo aprendizado: cabelo crespo é “cabelo ruim”. Minhas tias, avó, primas e amigas tinham cabelo liso ou alisado, e me diziam isso, constantemente.

Teoricamente eu deveria estar fora do padrão, mas não me incomodava, com 11–12 anos eu só queria sumir no mundo em cima dos meus patins. Não tinha tempo para pensar nisso, nenhuma criança /pré-adolescente tem, mas as mães e a família sim. E se "cabelo crespo é cabelo ruim", não deveria ser nada fácil cuidar da cabeleira de 3 meninas depois de trabalhar o dia todo de segunda a sábado. Ela decidiu e nos levou para alisar o cabelo, afinal, minha mãe, como a leoa que é, sempre foi em busca do melhor para nós. Bora no salão "melhorar esses cabelos" então.

Herdei uma genética que me garantiu os primeiros cabelos brancos muito cedo, e claro, com o passar dos anos, além de alisar o cabelo a cada 3 meses, eu deveria também pintá-lo, porque "mulher de cabelos brancos é símbolo de relaxamento".

Meu Deus, não pode ser uma carga tão absurda isso tudo! Não pode ser que o homem se torne o que ele quer (de Rodrigo Hilbert até Homer Simpson), e esteja tudo bem, e que a mulher tenha que seguir uma cartilha do que é ser feminina. Não pode ser que mulheres tenham que viver o cultivo de uma aparência e estereótipo superficial, enquanto estão confusas e moídas por dentro, quando só desejam ser elas mesmas.

Há algumas semanas, quando estava me arrumando para sair, naquela rotina demorada de lavar o cabelo, secar e passar chapinha, algo diferente aconteceu. Eu me olhei no espelho e tive um desgosto muito grande daquela persona que estava vivendo. Me lembrei do tempo em que acharam que eu era gay, e isso me obrigou a intensificar meus esforços em “parecer feminina” para “provar” que não. Quanta tolice!

Passou um filme na minha cabeça e rapidamente falei para meu marido: “amor, esse cabelo não me representa e carrega consigo um peso da minha vida que preciso me livrar. Quero raspar!”
Ele amou e apoiou a ideia de cara ❤.

Eu sempre tive cabelão, e alisei meu cabelo por décadas porque aprendemos que esse é um símbolo do que é “ser mulher” para as pessoas.

Era pressão para cabelo bom, pressão para esconder os brancos (apesar de nunca ter pintado), mas ontem, como parte do ciclo de reprogramação da minha vida, eu dei um basta. Fui a uma barbearia com o marido e uma amiga, que já tinha feito o mesmo, raspei o cabelo, e ainda optei por doá-lo para mulheres com câncer. Veja bem, um cabelo carregado de tantas histórias agora será ressignificado na vida de outra mulher. Amo esses ciclos!

Tudo bem se alisar o cabelo ou fazer qualquer transformação estética traga plenitude para algumas mulheres, esse texto também não é sobre julgar. O que não acredito, mesmo, é que na busca por se encaixar no que a sociedade impõe do que é ser feminina, as mulheres de fato se encontrem nelas mesmas. E precisamos tanto falar sobre isso, jogar luz e despertamento, que minha vontade agora é sair aproveitando toda brecha que tenho.

Ontem mesmo, em um restaurante, a atendente com os olhos brilhando elogiou meu cabelo. Não deu outra, fiz uma aliada! E se isso já servir para uma ou duas pessoas, meu coração será sempre grato. Continuarei em busca de ser eu mesma, a despeito do que a sociedade tenta impor sobre padrão feminino e sexualidade.

Raspar o cabelo pode até parecer apenas um ato simbólico, mas revelou em mim uma mulher muito mais leve, plena, sexy e feminina!

Foto feita pelo marido Alexandre Ferreira

Se você leu até aqui, te desafio a encaminhar esse texto para meninas e mulheres, que serão impactadas de alguma forma ao ler essas palavras.

Veja o vídeo documental:

Esquerda: eu e o marido que também mudou o visual, tirando a barba de anos. Direita: eu e Juliana, amiga e inspiração ❤

Esse texto recebeu edição e revisão da minha badass friend Talita.
Obrigada amiga ❤

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Bruna Bittencourt
brubittencourt

faço produtos e transformação digital e empresas de tecnologia pro bem. amo a vida outdoor e pratico esportes. foodie entusiasta pela comida