Duna Capítulo 12: A Reunião

Bruno Birth
brunobirth
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8 min readJul 19, 2020

“Acima da saída do campo de pouso de Arrakina, como que entalhada rudemente com um instrumento ordinário, havia uma inscrição que Muad’Dib repetiria muitas vezes. Ele a viu naquela primeira noite em Arrakis, quando foi levado ao posto de comando ducal, para participar da primeira conferência de todo o estado-maior de seu pai. As palavras da inscrição eram um apelo àqueles que deixavam Arrakis, mas incidiram com implicações sombrias sobre os olhos de um menino que acabara de escapar da morte por um triz. Diziam: ‘Ó, vocês que sabem o que sofremos aqui, não se esqueçam de nós em suas preces’”.

O artigo a seguir se baseia em minhas reflexões e nas de meus amigos Jonathan Thiago e Marcos Carvalho. CONTÉM SPOILERS DO LIVRO UM.

Os planos do duque Leto Atreides para fazer valer seu governo sobre o planeta Arrakis devem ser pautados e claramente executados, então o pai de Paul convoca seus comandados de alto escalão para uma reunião (com a participação do garoto), em um capítulo muito marcante e que, ao meu ver, divide uma parte do livro Um de Duna. Até aqui as introduções básicas de contexto, personagens e trama são praticamente todas feitas (algumas ainda nesse capítulo) e assim Frank Herbert parece engatar a segunda marcha do enredo do livro no capítulo 12, nos deixando em alerta para os próximos acontecimentos, que prometem se aprofundar dramaticamente.

Das muitas coisas que acontecem nessa reunião e merecem destaque, os fremen se tornam pauta, com mais detalhes sobre suas organizações sociais. Descobrimos que os nativos de Arrakis se dividem em células chamadas sietchies, que se agrupam aos milhares e são fiéis a um tal de doutor Liet Kynes. pouco é falado ainda então obviamente não sabemos quem é Liet e porque os sietchies são a leais a ele. Uma citação importante durante a reunião sobre esse indivíduo é que, ao que parece, ele é venerado como uma divindade pelos fremen (desenvolverei mais a frente sobre o uso desse termo de caráter sobrenatural). Uma coisa é certa: se filiar a Liet seria de suma importância para os interesses do duque Leto.

Algo que preocupa em muito o duque é como os Atreides vão conseguir fazer tempo se tornar dinheiro o mais rápido possível, para que a cadeia de lucro da CHOAM e, consequentemente, o lucro das grandes Casas do Landsraad, não seja afetado negativamente. Como se sabe, a estrutura de mineração de mélange dos Harkonnen era gigante, bem organizada e definida, algo que os Atreides não possuem, uma vez sendo a peça principal de um momento de transição governamental do planeta desértico. A pressão sobre Leto é grande e o duque sabe disso, então uma série de planos de contingência são revelados (alguns ligeiramente à margem da lei imperial) e, por um momento, admirados pelos presentes pela audácia em tais planos implícita.
Aliás, a relação do duque com seus comandados é um contexto a parte nessa reunião. A postura do chefe de estado transita entre o respeito, desconfiança e assentimento forçado por parte dos senhores comandados. Tal cenário de ação e reação é analisado e absorvido detalhadamente por Paul Atreides, que já começa a ver mais claramente as fissuras na rocha firme que é a altivez de seu pai. Altivez essa que até então Paul havia sido condicionado a enxergar incólume.

Eis que somos apresentados a mais aspectos sobre como se dá o processo de mineração da valiosa especiaria do planeta desértico. Se prepare pois vem muita coisa interessante daqui em diante.
Hawat mostra, por meio de hologramas sobre a grande mesa da reunião, duas peças de maquinário de mineração. Basicamente uma serve para perfurar e extrair o mélange do fundo do solo, transferindo o líquido para um tanque, e o outro equipamento é alado, servindo para rapidamente retirar a primeira máquina com o tanque para longe. Não se pode estabelecer bases de extração como, por exemplo, se dá em nosso mundo com o petróleo, e o motivo é simples: os vermes da areia circulam livremente pelas várias partes que abrigam abundantes reservas de mélange do planeta e são atraídos pelas máquinas, tornando o trabalho de mineração um ofício de perigo mortal.
Em capítulos anteriores nos são mostrados dois tipos de escudos de energia, um corporal (no treinamento de luta de Paul) e outro maior que envolve a mansão dos Atreides em Arrakina, protegendo-a contra as hostilidades do ambiente desértico exterior e até mesmo criando uma espécie de atmosfera própria com temperatura e umidade um pouco mais suave no entorno da residência. Paul pergunta na reunião porque não se pode colocar escudos de energia em volta das peças de maquinário de mineração, ao que Hawat responde que a energia dos escudos emite algum tipo de pulso que, absorvido pelos vermes, os deixam enfurecidos, tornando a extração ainda mais difícil por tornar os maquinários mais detectáveis pelos monstros. Algo na fisiologia dos vermes deve ser afetado, como se a energia dos escudos agisse de modo único e diferente dos humanos, tal qual o campo eletromagnético de nosso real planeta Terra, que é interpretado naturalmente por aves migratórias, por exemplo.

Aqui eu desenvolverei uma teoria de caráter megalomaníaco. Fui inclusive recomendado por meus amigos a manter a calma. Mas vamos lá, me acompanhe.
Fica cada vez mais claro que se deve manter distância dos vermes da areia, eles são mortais. Aliado a isso, tome as características sobre a relação dos escudos de energia e os monstros gigantescos. E, por fim, analise a arte da capa do livro (desenhada pelo magnânimo Marc Simonetti e exposta no topo desse artigo).
Desde o início do livro eu tento imaginar o que fará de Muad’Dib Muad’Dib, ou seja, alguém de extrema importância para o mundo de Duna. Paul Atreides se desenvolverá para no futuro perpetrar feitos incríveis mas como será isso? Pois bem, a arte de Simonetti mostra um grupo de pessoas (fremens, muito provavelmente) afastado, recuado, enquanto uma outra pessoa avança sozinha em direção a um imenso verme da areia. Ao lado dessa pessoa aparentemente insana (podemos falar assim dadas às características dos vermes) há uma espécie de artefato tecnológico. Deixe-me colocar a imagem abaixo novamente para você não ter que subir o artigo lá pra cima.

E se Paul Atreides conseguir encontrar alguma forma tecnológica (que pode até ser aliada às suas habilidades psíquicas) de controlar os vermes da areia ao seu bel e perigoso prazer? Seria algo inédito (pois não nos é falado que nada do tipo aconteceu até então) e com certeza seria algo que colocaria Paul Atreides (futuro Muad’Dib) nos mais altos patamares da história do império, com implicações e consequências diversas e até mesmo inimagináveis.
Absurdo, não? Posso estar voando alto demais, contudo, deixo você tomar as conclusões.

A reunião segue e uma vez mais é citado o tempo em que Arrakis foi usado rapidamente como laboratório ecológico, antes da descoberta da especiaria. Hawat cita que bases tecnológicas foram espalhadas pelo planeta e abandonadas quando o império abandonou o projeto. As bases acabaram incorporadas pelos fremen, que utilizam de suas peças. O duque manifesta seu interesse em explorar taias bases mas Hawat o alerta que é melhor “não mexer com as coisas dos fremen”, o que causaria confusão na aliança entre Atreides e fremens, que ainda nem foi cimentada. Não é falado na reunião mas é plausível acreditar que utensílios vitais para os fremen, como seus trajestiladores, devem ser manufaturados a partir de peças tecnológicas extraídas dessas bases.

Então ocorre o momento alto do capítulo 12, quando Duncan Idaho, o mestre de armas dos Atreides, que estava em viagem de reconhecimento pelo planeta, adentra a reunião sem ser anunciado e trazendo consigo um convidado fremen. Duncan conta que, com a ajuda de informantes fremen, interceptou um grupo de Harkonnens disfarçados de fremen e que haviam atacado um mensageiro fremen. Na tentativa de salvar o mensageiro, Duncan tentou carregá-lo para Arrakina mas o homem morreu, deixando-lhe sua dagacris (adaga feita a partir de um dente de verme da areia). Segundo a cultura fremen, o ato do moribundo ligou sua vida a de Duncan em um elo sobrenatural que não deve ser quebrado, tornando o mestre de armas do duque leto parte dos fremen. Há toda a mesma preocupação mística com o manuseio da adaga, explicada pela serva Shadout Mapes para lady Jessica.
O convidado de Duncan se chama Stilgar e é um líder de sietch. Quando o fremen adentra o recinto traz consigo uma atmosfera diferenciada dos demais, e aqui trago a reflexão sobre o aspecto da palavra “divindade” que citei no começo quando falei de Liet Kynes.
Desde o início do livro há uma argumentação estrutural de que a sociedade imperial nasce após um turbulento período advindo da queda dos humanos perante a ascensão das máquinas. Tem-se que organizações e conceitos como a irmandade das Bene Gesserit e o Condicionamento Imperial nasceram com um viés mais voltado à razão, disciplina e interpretação aprimorada da natureza como uma resposta da “nova humanidade” para se enterrar os erros do passado. Contudo, os fremen, como bem se sabe, não fazem parte do império, sendo considerados seres inferiores, animais. É preciso bater palmas para a construção de mundo desenvolvida por Frank Herbert pois quanto mais temos contato com os fremen mais vemos como sua relação com o mundo em quase nada se assemelha a dos cidadãos imperiais. Sua cultura é bem mais pautada em um misticismo próprio e bem diferente de qualquer um anteriormente desenvolvido pelos humanos, com dialetos e formas de agir voltados a uma aura sobrenatural que em teoria une as suas vidas.
Duncan Idaho está preso ao elo cultural dos fremen e, para satisfação do duque Leto, vai agir como um agente duplo, ao que Stilgar não viu problema em primeira instância. Em cena incrível, o fremen cospe na mesa para mostrar o respeito e disposição dos fremen sobre o início de uma relação respeitosa com os Atreides. O ato é profundo sob o contexto do mundo futurista de Duna pois Stilgar abriu mão de uma valiosa porção do líquido de seu corpo, o que muito impressionou Paul Atreides e os demais.

O capítulo termina com uma lembrança que Paul tem sobre suas conversas com a Reverenda Madre Gaius Mohiam. O amadurecimento do garoto se mostra intenso pois seu entusiasmo na atitude de defender o pai, na oportunidade insultado pela velha Bene Gesserit, agora parece se esvanecer. Paul vê o duque saindo da sala da reunião, como se sua ausência já começasse a preceder seus atos.

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Bruno Birth
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