Duna Capítulo 16: O Banquete
“A grandeza é uma experiência transitória. Nunca é consistente. Depende em parte da imaginação criadora de mitos da humanidade. A pessoa que experimenta a grandeza precisa perceber o mito no qual está inserida. Precisa refletir o que nela é projetado. E precisa entender muito bem o sarcasmo. É isso que a desatrela da crença em suas próprias pretensões. O sarcasmo é tudo o que lhe permite se mover dentro de si mesma. Sem essa qualidade, até mesmo a grandeza ocasional destruirá o homem.”
O artigo a seguir se baseia em minhas reflexões e nas de meus amigos Jonathan Thiago e Marcos Carvalho. CONTÉM SPOILERS DO LIVRO UM.
Esse talvez seja o excerto mais marcante de Irulan até aqui. Há um padrão nos excertos da princesa que os difere da seguinte forma: Alguns são selecionados a partir de registros puramente ditos, servem como uma documentação de eventos importantes da vida de Muad’Dib. Outros são experiências da própria Irulan, como foi o caso de ela nos contando quando esteve com o pai, de frente a uma egocópia (espécie de pintura ou escultura) do duque Leto Atreides. E alguns são reflexões de Muad’Dib que ela escolhe a dedo como parte de uma reflexão dela, tal qual nós fazemos quando estamos elaborando o nosso TCC na universidade e selecionamos citações de trabalhos predecessores que condizem com o conhecimento que estamos produzindo em nosso trabalho acadêmico.
O excerto do capítulo 16 é uma dessas citações. O cerne da reflexão é a natureza da grandeza na mente do indivíduo que a exerce. A lição é simples porém profunda; A sua grandeza, sua fama, jamais pode ditar o que você é em essência pois isso não é verdade. A grandeza é passageira e se você a toma como significado do que você é, sua existência se esvai quando a grandeza desaparece, o que certamente em algum momento acontece pois, como Muad’Dib diz “a grandeza é transitória”. O único modo de um indivíduo não deixar que se leve por sua fama é entender o que causa a sua fama, em que núcleo ela se forma, assim domando os mitos que dela se projetam. De posse de tal compreensão o indivíduo pode superficialmente agir como se ele e sua grandeza fossem unos, mas em seu amago ele sabe que isso não é verdade. Essa é, no completo sentido do termo, uma abordagem sarcástica.
Agora imagine o nível de aprofundamento intelectual, mental e de sabedoria da pessoa a chegar a essa conclusão. Imagine as possibilidades que colocar poder nas mãos de uma pessoa como essa poderia acarretar. O excerto é de Irulan, mas a reflexão é de Muad’Dib. A reflexão é de Paul Atreides.
A mansão dos Atreides em Arrakina recebe um evento de suma importância neste capítulo. O duque Leto é anfitrião de um banquete organizado para receber convidados que representam as diversas chefias primordiais do planeta desértico. O banqueiro de autoridade na guilda espacial está presente, assim como um notável mercador e prestador de serviços relacionados a água de Arrakis e um confeccionador industrial de trajestiladores acompanhado da filha. Kynes, o Juiz da Transição do Império, também está presente. Se trata de uma ocasião diplomática obrigatória e tensa. Os personagens desse jantar não são amigos.
E a tensão não demora quase nada para aparecer. O duque põe fim a um costume de introdução para eventos como esse, causando irritação contida a maioria dos convidados. Sem dar muitos detalhes, o costume colocava em evidência a posição miserável dos mendigos arrakinos, enquanto o novo costume, instaurado pelo duque e inaugurado já no banquete em questão, busca minimizar (pelo menos por um dia) o sofrimento dos moradores de rua. Ciente do desconforto que causou aos convidados, Leto não se preocupou em tentar ser moderado na abertura do jantar; em vez disso, o duque proferiu um monólogo marcante sobre a busca pelo poder e a efemeridade da vida, terminando com um gesto de intenso desafio, como que enfatizando peremptoriamente a todos que sua vontade devia ser nada menos que obedecida e respeitada.
Dr Kynes, o Juiz da transição, é um personagem importante nesse jantar. O fiscal do império surgiu na história como apenas mais uma peça funcional e condescendente do ardil do imperador e do barão Harkonnen contra os Atreides, contudo, a postura do duque Leto e as atitudes de Paul Atreides (atreladas a uma lenda que o doutor demonstra respeitar muito) aparentemente fizeram Kynes mudar de lado. Nesse capítulo, o respeito de Kynes se estendeu também à lady Jessica, quando a estufa exótica da concubina de Leto se torna assunto antes do jantar e a mãe de Paul expõe que é desejo dos Atreides que o planeta Arrakis seja tomado por vegetações diversas, sendo a estufa um laboratório. “Eles também terão vosso sonho mais valioso”, citou Kynes parte da lenda ao perguntar a Jessica se ela trazia o “encurtamento do caminho”, ou seja, indivíduo que pudesse fazer se realizar a transformação profunda de Arrakis. Tal expressão em idioma antigo significa “Kwisatz Haderach”.
Jessica pensa como Kynes sabia daquela lenda Bene Gesserit e se questionou sobre possíveis métodos de evangelização interplanetária da ordem das irmãs, tal qual nós já havíamos mencionado em análises anteriores, se você nos acompanha.
Eis que o banquete é iniciado e as interações dos convidados dá o tom do contexto de areia movediça que é o governo do planeta Arrakis. Há um participante em especial que está no jantar por atribuição de lady Jessica. Se trata de um contrabandista chamado Tuek. O duque Leto estranha a presença do desconhecido ali mas Tuek faz parte de um plano de contingência de Jessica como agente de fuga da família Atreides para o caso de tudo mais dar errado em Arrakis.
A água naturalmente toma importância durante as conversas e as reações são interessantes. Bewt, o fornecedor de água, reage com completa negação às teorias de que o planeta ou teria maior reserva do que o comumente conhecido ou que alterações na atmosfera do planeta pudessem ser feitas para elevar suas reservas de água. Tais conjecturas são levantadas pelo duque Leto, Jessica e Kynes, que se mostra bem evasivo nas respostas que dá aos Atreides, bem como fez durante o passeio no deserto. Só que há uma diferença na atitude de Kynes. Durante o passeio no deserto o Juiz da transição não queria dar informações aos Atreides para privar-lhes do conhecimento necessário para governar bem; nesse jantar, no entanto, Kynes parece optar por não dar todas as informações que possui pois a maioria dos convidados é inimiga dos Atreides. Informações de tamanha importância como as insinuadas pelas perguntas do duque podem ser transmitidas depois a ele, de modo mais sigiloso, como o próprio Kynes singelamente expressa em dado momento.
Sobre a negação de Bewt, não se sabe se tal atitude é por conta de ele também fazer parte dos planos dos Harkonnen ou se é apenas um ignorante dentro de sua própria área de atuação. Isso é algo que descobriremos mais a frente.
Já o banqueiro da guilda espacial com certeza é um dos auxiliares principais do barão Harkonnen. Seu modo de agir durante todo o evento foi venenoso, traiçoeiro. O banqueiro causou conversas montadas previamente com a filha do confeccionador de trajestiladores para gerar burburinhos específicos, que foram facilmente detectadas por Paul e Jessica. Talvez por esse motivo tenha sido o convidado que mais chamou a atenção do garoto Atreides, que direcionou ao banqueiro ataques verbais (educados mas espinhosos) para atingir o psicológico do homem. O banqueiro se exaspera duas vezes durante o jantar, fazendo lady Jessica inclusive colocar a mão no cabo de sua dagacris embainhada, demonstrando estar um pouco mais belicosa que o normal.
Em dado momento, o duque é requisitado e sai do jantar, deixando todos apreensivos. Perto do fim do evento um bilhete depois chega a Jessica, notificando que o caleche desaparecido do capítulo anterior havia sido obra dos Harkonnen. O duque informa pelo bilhete que descobriu ainda que os Harkonnen estão tentando contrabandear carregamentos de armaleses (tipo de arma proibida no império, com capacidade destrutiva nuclear).
Jessica fica um pouco mais assustada. Sem saber do que está acontecendo, Paul se exibe como anfitrião na ausência do pai, exclamando o poder de Leto. A mãe do garoto o observa e pensa que esse não é o momento de se vangloriar.
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