Duna Capítulo 35: O Poder Harkonnen
“O conceito de progresso age como um mecanismo protetor para nos resguardar dos horrores do futuro.”
O artigo a seguir se baseia em minhas reflexões e nas de meus amigos Jonathan Thiago e Marcos Carvalho. CONTÉM SPOILERS DO LIVRO UM.
O excerto da princesa Irulan traz mais uma adição aos conceitos existenciais tratados no excepcional capítulo 22. Como já falado, o ser humano tende a não se relacionar muito bem com a passagem de tempo pois esta o aproxima da morte, algo que a humanidade sempre lutou para evitar. A partir dessa tentativa tola e insistente de vencer a morte, o ser humano se agarra à qualquer ideia que possa relaxar o seu sofrimento e lhe trazer “salvação”, como o já falado conceito de messias, seja ele físico (um líder travestido de um ideal) ou sobrenatural (a figura de um deus que trará imortalidade espiritual aos seus fiéis).
Nesse sentido, a ideia de “progresso” se torna mais um aspecto dessa maneira humana de enxergar e refletir a realidade através da máxima postergação possível da morte. É o progresso, ou seja, a ideia de que estamos evoluindo positivamente, que nos satisfaz para que sigamos em frente em nossas vidas. A noção de que hoje estamos melhor que ontem e que amanhã estaremos melhores que hoje nos afasta da entropia intrínseca no fim do processo de existência de todos os seres. Sem isso, essa noção de pertencimento, de utilidade pessoal e social, nos deprimimos profundamente pois perdemos nosso valor existencial. A que ponto a mente humana pode chegar a partir de um tipo de ficção cognitiva advinda de uma interpretação parcial da realidade, não é mesmo?
Sabe aquela máxima “não importa o que façamos, somos todos insignificantes e vamos todos morrer”? Pois bem, o progresso, como mais uma das conceituações que colocam o ser humano em um patamar de presença especial no universo (algo irreal na prática do pragmatismo) afasta esse pensamento das nossas mentes, nos fazendo pensar que, em todas as áreas de nosso cotidiano, estamos “indo em frente”, sempre progredindo para a perfeição e, por fim, para a “merecida” imortalidade.
Estamos em Giedi Primo, o planeta natal da família Harkonnen. Depois de um bom tempo narrativo acompanhando os passos dos Atreides sobreviventes, este é um capítulo voltado aos inimigos do duque Leto.
Feyd Rautha é o centro das atenções. O amado sobrinho do barão Vladimir Harkonnen deve se apresentar em uma batalha de arena contra um escravo gladiador. O motivo? Os Harkonnen estão recebendo uma visita importante, que deve ser impressionada. O conde Fenring, acompanhando de sua esposa Bene Gesserit, viajou a Giedi Primo em nome do imperador padixá para a primeira conferência com o barão após o restabelecimento do governo Harkonnen em Arrakis.
Algo interessante ocorre logo de cara e nos remete à discussão sobre os verdadeiros objetivos das irmãs Bene Gesserit. A esposa do conde Fenring, ao pôr os olhos sobre Feyd, se pergunta se o sobrinho do barão Harkonnen faz parte das “linhagens a serem protegidas”. A ordem (embora sem certeza de englobar os Harkonnen) é expressa como pertencendo a Reverenda Madre Gaius Helen Mohiam. Por quê as irmãs Bene Gesserit querem proteger algumas linhagens específicas? Em retrospecto analítico, a linhagem de padixá muito provavelmente não faz parte dessa seleção pois a esposa do imperador (mãe de Irulan) recebeu a ordem da reverenda madre de só prover filhas mulheres a padixá, privando-lhe de um herdeiro legal, segundo os acordos políticos vigentes.
Além disso, vale lembrar o quão desgostosa a reverenda madre ficou com Jessica por conta de a concubina de Leto Atreides ter dado a luz a Paul Atreides, contrariando também uma ordem direta das Bene Gesserit. O que dá a entender que os Atreides também não faziam parte da seleção de linhagens protegidas pelas irmãs.
O barão e o conde Fenring entram em uma conversa privada e a já discutida instabilidade da aliança entre o imperador e os Harkonnen marca o afiado diálogo entre os dois. Fenring expressa a frustração do imperador com a presumida morte de Paul e Jessica pois somente Leto deveria morrer. Não fazemos ideia do porquê a vida de Paul (herdeiro de nada com a morte do pai) e Jessica (uma simples concubina) faria alguma diferença nos planos do imperador. Talvez isso surja mais a frente como uma tentativa de joguete político do imperador, com o retorno de Paul.
Uma peça de quebra-cabeça faltante nas conjunturas políticas do império é trazida nessa conversa. Fenring responde negativamente, quando perguntado pelo barão sobre se o imperador usa a Guilda Espacial para monitorar o espaço em torno de Arrakis. Nas palavras de Fenring o imperador “não tem permissão para minitorar Arrakis”. Ok, de onde vem essa limitação do imperador? A Guilda deve ocultar que é paga pelos fremen para não monitorar Arrakis, mas como a Guilda transmitiu essa indisposição de monitorar o planeta Duna ao imperador? Qual mentira cimentou o acordo político entre Guilda e imperador que afasta padixá dos céus de Arrakis? E se esse for o caso, será tão mais vantajoso à Guilda ter um acordo fechado com os fremen em vez de com o imperador? Essa política intrincada criada por Frank Herbert é muito empolgante pois está mergulhada em segredos.
Feyd vence seu desafio na arena, embora um soldado Atreides, preso no ataque, e não um mero escravo tenha sido colocado para desafiar o herdeiro do barão. Um espetáculo montado para calar o imperador. Há suspeitas de que o objetivo de alguém desconhecido em matar Feyd tenha impulsionado a escolha deste oponente. Seria Hawat? O mentat agora está a serviço do barão, o que Fenring também expressa que não aceita. Aliás, nem mesmo Feyd é uma escolha de herdeiro para os Harkonnen que o imperador padixá aceita logo de cara. Pelas palavras de Fenring parece que o imperador, depois de usar os Harkonnen para se livrar dos Atreides, agora está procurando uma forma de se livrar dos Harkonnen. O que pode querer dizer que os planos do imperador padixá se resumem em um ataque sistemático a todas as casas do Landsraad.
No fim do capítulo, a esposa Bene Gesserit do conde Fenring conversa com seu marido eunuco genético sobre o plano de enredar Feyd em seus encantos para dele engravidar. É preciso descobrir se a linhagem dos Harkonnen é digna de ser protegida. O conde confabula sobre a morte de Paul e Jessica, deixando transparecer realmente que eles serviriam melhor vivos. A Bene Gesserit responde ao melhor estilo “se não tem corpo, não tá morto”.
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