Filhos de Duna Capítulos 1 a 14: O Mundo de Alia

Bruno Birth
brunobirth
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8 min readFeb 14, 2021

“Estas são as ilusões da História popular que uma religião bem-sucedida deve promover: os homens maus nunca prosperam; somente os corajosos merecem o que é justo; os atos falam mais alto do que as palavras; a virtude sempre triunfa; uma boa ação é sua própria recompensa; qualquer ser humano ruim pode ser transformado; talismãs religiosos protegem quem os usa da possessão pelo demônio; somente as mulheres compreendem os antigos mistérios; os ricos estão condenados a ser infelizes…”

O artigo a seguir se baseia em minhas reflexões. CONTÉM SPOILERS DO LIVRO TRÊS.

O excerto descrito acima abre o capítulo 12 do terceiro livro da Saga Duna e dá uma boa ideia das mudanças pelas quais o mundo imperial de Muad’Dib passou após 9 anos da morte de Paul Atreides. Alia tomou a dianteira no comando governamental e com muitos esforços elevou os preceitos de governo religioso que marcaram a formação e expansão do império fremen ao máximo patamar, indo na completa contra-mão do ideal que pautou os últimos momentos da vida de Paul.
Antes de morrer, o mórbido imperador se entendeu como arauto da morte e buscou planejar a desconstrução de sua imagem como uma divindade, compreendendo sua condição de messias como exemplo de um histórico erro sistêmico (e cíclico) da humanidade em endeusar seus líderes de maneira cega e perigosa. Em seus últimos momentos de vida, Paul concluiu que essa necessidade dos seres humanos em buscar significado existencial no ato de seguir um messias idealizado foi o que havia dado a ele a oportunidade de colocar em prática todas as habilidades Bene Gesserit e mentat ensinadas por lady Jessica para ascender em poder supremo no planeta Duna e muito além, trazendo desgraças a inúmeras vidas.

Contudo, Alia usou os 9 anos de seu governo para intensificar a crença na deidade dos Atreides, institucionalizando ainda mais o fanatismo dos seguidores (ou melhor, adoradores) do império. Artigos religiosos variados são agora comercializados nas ruas de Arrakina: potes de areia supostamente pisada por Muad’Dib, vasilhames de água supostamente pertencentes à mesma fonte utilizada para usufruto de Muad’Dib, e etc; tudo vendido com a promessa de carregar a benção de Lisan Al-Gaib, o messias de Duna.
Os paralelos com o cristianismo são inevitáveis. Cavaleiros medievais marchavam nas cruzadas carregando um pedaço de madeira que juravam ter pertencido à cruz na qual morreu Jesus Cristo. Mais de uma vez aventureiros percorreram a Europa e Oriente Médio atrás da “lança do destino”, a arma usada por um soldado romano para perfurar as costelas do crucificado Jesus. Ainda hoje são vários os exemplos de objetos tidos como cheios de magia divina como água benta, terços e crucifixos.

Há uma pessoa de grande importância que não está feliz com o mundo de Alia e parece estar disposta a fazer algo para, de certa forma, enfrentá-lo. A envelhecida lady Jessica desembarca em Arrakis trazendo Gurney Halleck ao seu lado, num retorno marcante após 21 anos de ausência e exílio em Caladan. À essa altura, mãe e filha já não se tratam com amabilidade, na verdade se portam como inimigas declaradas.
Sobre lady Jessica, é preciso apontar algumas coisas. A mãe de Paul muito anteriormente fazia parte de uma irmandade com interesses escusos relacionados à obtenção de absoluto controle, sendo que este objetivo se personifica no Kwisatz Haderach, ideal culturalmente perseguido pelas Bene Gesserit. Acontece que, em misto de amor pelo duque Leto e soberba pessoal, Jessica moldou Paul Atreides para que a trajetória de vida do garoto se atrelasse aos parâmetros do Kwisatz Haderach.
A arrogância de Jessica alcançou patamares elevadíssimos com a tragédia dos Atreides em Arrakis e a forçada readaptação em prol da sobrevivência que ela e Paul (então adolescente) tiveram que desempenhar em meio ao deserto aberto, onde acabaram se tornando parte da comunidade fremen. A partir desse momento, os planos de Jessica para emancipar Paul Atreides como Kwisatz Haderach ganharam status de megalomania, pois a manipulação do povo fremen se fez necessária para que Paul enfim se tornasse Muad’Dib, um imperador cuja sede insaciável de poder posteriormente condenou milhares de planetas e bilhões de vidas.
É indubitável concluir que o descontrole perante sua própria criação (Paul) foi o que fez Jessica tristemente abandonar a Irmandade Bene Gesserit e se exilar em Caladan. De lá, algumas vezes ela expressou, por meio de cartas, seu descontentamento com o governo religioso totalitário construído por Paul e Alia, algo que ela descobriu que não queria ter engendrado.
Os anos passaram, Paul morreu e seu império se transformou nas mãos de Alia. Agora lady Jessica retorna a Arrakis como uma irmã Bene Gesserit reestabelecida. O que aconteceu?
Leto e Ghanima. Os pequenos gêmeos, filhos de Paul Atreides e Chani, são a resposta para essa pergunta. E, para além disso, é preciso ressaltar que o retorno de Jessica às Bene Gesserit sinaliza que a busca por um novo Kwisatz Haderach, dessa vez um controlável, continua no cerne ideológico da irmandade feminina, sendo Leto e Ghanima os novos alvos de análise das irmãs por serem filhos daquele que tinha a capacidade cognitiva de estar em todos os lugares e absorver em totalidade as esferas do tempo, portanto carregam traços genéticos ideais.

Falando em Leto e Ghanima, preciso desenvolver algumas reflexões sobre as crianças.
Para falar das características dos herdeiros do império de Paul, devo trazer Alia para com os pequenos fazer uma relação. Me concentro mais especificamente no fato de que Alia é considerada por lady Jessica e pelas Bene Gesserit como uma “aberração”, sendo que até os gêmeos tratam a tia dessa forma pejorativa, chamando-a de “coitada”.
O fato de uma pessoa nascer “normal”, ou seja, só depois de um tempo de vida (amadurecimento físico-mental) ser iniciada nos treinamentos mentat ou Bene Gesserit, por exemplo, é o considerado padrão no mundo de Duna. Só que isso não aconteceu a Alia, graças à Jessica ter participado grávida do ritual da Água da Vida, no qual expôs o feto em formação de Alia à acelerada atividade psicoativa do melánge (especiaria que, além de ser matéria primordial para o ritual da Água da Vida, é fundamental para as atividades dos Mentat e Bene Gesserit).
Este caso extraordinário tornou Alia uma anomalia, uma estranheza. Em outras palavras, uma aberração. Não se sabe até que ponto Alia representa uma espécie de mal, contudo, o medo de todos baseado no desconhecido em volta de Alia a torna essa figura a ser enfrentada, repelida.
Os gêmeos, por outro lado, não tiveram uma vida antes de ter contato com o melánge (como Paul), mas também não foram obrigados a terem a especiaria se misturando em sua genética e psique enquanto estavam no feto de sua mãe (como Alia). Essa digamos… “terceira via” de relação humana com a especiaria psicotrópica melánge e doutrinas Bene Gesserit/Mentat mais o fato de serem herdeiros genéticos de Paul Atreides, o Kwisatz Haderach, torna Leto e Ghanima tão únicos, especiais.

Os filhos de Duna são assistidos e guardados em sietch Tabr pelo desconfiado Stilgar, que não tem mais uma devoção cega aos Atreides, e sim um receio conflituoso sobre o que resultará da maioridade daqueles gêmeos que supostamente devem encabeçar o império.
Enquanto escondidos dos perigos abertos de Arrakina, Leto e Ghanima analisam o passado de Arrakis, dos fremen e dos Atreides, e projetam o futuro.
A origem (e possível fim) dos vermes da areia ganham as discussões dos irmãos; as chamadas trutas da areia são animais minúsculos que, se cultivados sob as condições corretas podem crescer para se tornarem grandes vermes produtores de mélange. A importância dessa informação permeia parte das preocupações de Leto e Ghanima, que concluem que Alia sabe disso tanto quanto os inimigos dos Atreides, que neste livro planejam uma nova conspiração mortal encabeçada por Farad’n Corrino, o neto do antigo imperador Shaddam IV, e sua mãe, Wensicia Corrino, filha de Shaddam e irmã de Irulan.
Outro ponto de grande importância nas discussões iniciais dos gêmeos é Jacurutu, uma localização tida como lendária e amedrontadora por revelar fantasmas de um antigo massacre na história dos fremen. Falarei de sietch Jacurutu mais adiante, mas aqui já vale dizer que Leto II deseja viajar até Jacurutu, por algum motivo misterioso. A busca por um tal de “Profeta” se tornou objetivo comum dos pequenos, que o consideram indispensável para encontrar Jacurutu. Devemos aguardar os próximos capítulos.

Voltando a falar de Alia, é muito marcante a ideia de “vozes interiores”, que já desenvolvi em análises dos livros Um e Dois.
As vozes interiores de Alia nada mais são do que as projeções criadas pela própria mente dela sobre outras pessoas. A cognição de Alia consegue projetar como Vladimir Harkonnen, por exemplo, agiria a partir de seu banco de dados mental no qual todas as informações sobre o barão são guardadas (memórias). Não importa se o horrendo barão Harkonnen já está morto ou se Alia pouco conviveu de fato com ele (Alia matou Vladimir); nada disso impede a mente de Alia de, a partir do que sabe sobre o barão, projetá-lo e caracterizar suas convicções, palavras e ações para com as do subconsciente de Alia dialogar.
Os cérebros complexos de nós todos fazem isso, como eu já falei em outros artigos. Agora reflita sobre a estrutura neuronal de Alia, enquanto em formação fetal, sendo tomada pela psicoatividade do mélange. Imagine o desenvolvimento da atividade cerebral de Alia no decorrer de sua vida. A criação de imagens-reflexo de outras pessoas no cérebro de Alia é absurdamente mais detalhada e cheia de camadas.

Fecho este primeiro artigo sobre Filhos de Duna com uma reflexão filosófica relacionada ao tipo de ficção científica desenvolvido por Frank Herbert na Saga Duna.
O sci-fi do universo de Duna funciona como um puro ensaio antropológico, ou seja, se propõe a estabelecer discussões sobre a essência do funcionamento da mente humana, tanto no sentido pessoal como coletivo e, a partir disso, levanta questionamentos profundos sobre as formações sociais e históricas da humanidade. Por meio deste ensaio, Frank Herbert imprime sua visão no que concerne ao valor que as sociedades depositam em seus messias (sejam eles de qualquer natureza), assim como o autor discute as características espontâneas da relação de um indivíduo crente em um deus (o que ele respeita muito), além de expôr as inúmeras contraditórias da religião e, mais ainda, gradualmente desenvolve críticas ao conceito de instituição religiosa.
Adentrando o âmago da natureza biológica humana, a ficção científica de Frank Herbert busca discutir como são os parâmetros de nossa complexa cognição correlação à compreensão, absorção e interpretação da existência, o que define todo o resto em nossas organizações sociais e culturais. O que é espaço? O que é tempo?
Não. Não é o objetivo de Frank Herbert bater o martelo e afirmar “é exatamente assim que a natureza humana se caracteriza”, contudo, é fato que o autor norte-americano utiliza a Saga Duna para nos dar uma poderosa contribuição filosófica para as discussões do tipo.

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Bruno Birth
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