Filhos de Duna Capítulos 15 a 28: O Paradoxo da Tradição
“Os governos, se perduram, sempre tendem cada vez mais na direção de modelos aristocráticos. Não se sabe de nenhum governo, na História, que tenha se furtado a esse padrão. E, à medida que a aristocracia se desenvolve, o governo tende mais a agir exclusivamente no interesse da classe dominante, quer essa classe seja a realeza hereditária, oligarquias de impérios financeiros ou a burocracia mais cristalizada.”
Sem muitos rodeios, devemos apertar o passo para acompanhar os pequenos Leto e Ghanima na trama do livro Três da Saga Duna.
Em uma conversa com a avó, Leto II desenvolve um raciocínio que vinha há um bom tempo discutindo com Ghanima sobre Alia; a matéria de discussão mais precisamente se concentra no que a mente de Alia representa. Lady Jessica, que se despachou de Caladan de volta a Arrakis após décadas de exílio somente para avaliar os filhos de Paul Atreides, oferece sua total atenção ao neto absurdamente desenvolvido, o que em muitos momentos assusta a irmã Bene Gesserit reintegrada.
Já falei tantas vezes nas análises dos livros Um e Dois sobre a ciência da mente, certo? Sobre como, após milhares de anos no futuro, o aumento da capacidade de compreensão científica e prática da cognição humana se tornou uma tradição que proporcionou aos humanos do contexto futurista de Duna a possibilidade de criarem ordens sociais formadas por pessoas com elevada abrangência de interpretação mental da natureza e realidade (as esferas de espaço e tempo), sendo que através dessas organizações surgiram seres ainda mais diferenciados, ou seja, com capacidade de processamento cerebral sui generis, como Paul Atreides (o Kwisatz Haderach), Alia, e agora Leto II e Ghanima. Creio que já passamos por essas graduações de discussão filosófica da obra de Frank Herbert.
Pois bem, voltando ao ponto trazido por Leto II na conversa com lady Jessica, peço que tente imaginar uma pessoa que tenha o nível de atividade cerebral como a que resumi acima, uma pessoa que tenha desenvolvido tanto a sua cognição que chegou ao ponto de conhecer detalhadamente todas as conexões que sua mente possui com seu corpo, além de, é claro e novamente, ser capaz de interpretar e processar dados relacionados ao espaço a sua volta e ao tempo como ninguém.
O que seria dessa pessoa se ela perdesse o controle de sua mente? Em outras palavras, o que seria dessa pessoa se ela enlouquecesse? Sendo ainda mais preciso (e agora sim enfim chego ao raciocínio de Leto II), e se uma pessoa do tipo tivesse transtorno dissociativo de identidade, ou seja, múltiplas personalidades? É o que o pequeno Leto II parece afirmar quando diz que Alia deixou algum eu-interior se apossar de seu inconsciente. Este “eu-interior” nada mais é do que uma imagem-reflexo do barão Vladimir Harkonnen que Alia possui guardada em sua mente, uma personalidade vil criada a partir da pouca convivência que Alia teve com o barão e das informações que sobre ele Alia tem, uma personalidade que luta para se apossar dela e destruir sua sanidade.
Também já falei sobre como criamos imagens-reflexos de absolutamente todas as pessoas que conhecemos (seja por experiências e vínculos pessoais ou mesmo personalidades de TV, livros de história e etc) e guardamos as informações sobre estas pessoas (algumas com muito mais detalhes do que outras) em nosso banco de dados cerebral. Além disso, é importante ressaltar que todos nós temos múltiplas personalidades pois esta é uma característica natural da cognição humana; o problema é quando as múltiplas personalidades de um indivíduo começam a causar consequências nas atitudes e círculos sociais em torno desta pessoa, o que claramente pode-se detectar que está acontecendo com Alia Atreides.
Este parece ser o último estágio da falada aberração tão temida pela irmandade Bene Gesserit, em suma, uma mente com imensa capacidade, mas, ao mesmo tempo, plenamente incontrolável. Ainda falarei sobre outra grande característica neuronal de Alia neste artigo.
Estou muito curioso para ver como a trama em torno de Alia vai progredir e, além disso, se Jessica terá alguma consequência, uma vez que quem colocou Alia neste caminho, desde sua formação genética, foi ela.
Agora falando sobre o governo de Alia, o famoso “Pregador” começa a ganhar cada vez mais relevância na narrativa, ao passo que os burburinhos acerca de sua identidade desconhecida aumentam tanto entre o povo comum como em meio à classe alta. Muitos consideram que o Pregador é Paul Atreides, “o imperador cego que encontrou dentro de si as forças divinas para sobreviver ao deserto profundo”, o que eu acho que é apenas mais um das muitas armadilhas de Frank Herbert para cativar o leitor, pois o ponto principal na ascensão do Pregador no enredo é que suas exortações públicas vão diretamente em choque ao modo como o mundo de Alia funciona por serem baseadas em uma filosofia que é idêntica a de Paul Atreides em seus últimos momentos de vida, ou seja, se baseia no desapego ao fanatismo religioso e ao tradicionalismo em favor da renovação constante como única forma de alcançar a evolução da vida humana.
A ideia de colocar em xeque o verdadeiro valor do conservadorismo aparece para se configurar como uma das fundamentações do livro Três da Saga Duna, já que este livro trata justamente de discutir o legado do império sanguinário de Paul Atreides, um império em nada revolucionário por ser pautado tanto nos ferrenhos ideais de sincretismo fremen, como na cultura aristocrática/monárquica da própria estrutura social estabelecida no universo de Duna. O mundo da Saga Duna não possui praticamente nenhuma mobilidade social.
O paradoxo do tradicionalismo ganha mais corpo em um capítulo no qual se desenvolve uma longa conversa entre o pequeno Leto II (que representa a renovação) e Stilgar (que representa o conservadorismo). As linhas de raciocínio de Leto trazem o pensamento humano na esfera coletiva para debater a forma como nós muitas vezes enxergamos os dogmas que caracterizam a coletividade; assim, o filho de Paul e Chani questiona se o tradicionalismo ajuda ou atrapalha o desenvolvimento da humanidade.
“Ah! Então o fremen completo pratica os costumes do passado. Stil, se eu fosse dar livre curso a essa inclinação, exigiria que a sociedade fosse fechada e completamente dependente dos sagrados caminhos antigos. Eu controlaria a migração, explicando que isso estimula novas ideias e que novas ideias são uma ameaça à estrutura inteira da vida. Cada pequena pólis planetária seguiria seu próprio caminho, tornando-se o que pudesse. Finalmente, o império sucumbiria sob o peso de suas diferenças. O passado pode mostrar o jeito certo de se comportar se você vive no passado, Stil. Mas as circunstâncias mudam.”
O velho naib Stilgar treme ao ouvir as noções radicais de Leto II Atreides. Abandonar a tradição como guia supremo da sociedade é para ele uma insanidade inaceitável, à primeira instância. Contudo, conforme reflete consigo mesmo, remoendo as palavras do filho do homem que ele considerou seu deus, Stilgar percebe como há verdade na conclusão do pequeno Leto. A mudança é inevitável e o tradicionalismo como um todo não impede a evolução, transformação da humanidade, mas a gere com retardos absurdos, que simplesmente não tomariam parte na história se o conceito de tradição não fosse tão valorizado pelas sociedades humanas.
Indo mais além, me arrisco a afirmar que, com a mudança sendo uma inevitabilidade antropológica, temos ao longo da história da humanidade trechos temporais de um conservadorismo mutante, ou seja, a noção que possuímos hoje de tradicionalismo é completamente diferente da noção que os povos medievais ou os povos sob o domínio dos césares, e etc, tinham de tradicionalismo. Em suma, o conservadorismo nada mais é do que uma farsa, talvez a maior da história. A nossa natureza comanda que mudemos, e contra a natureza ninguém pode lutar.
Ver o desenrolar dessa parte da trama, sob as ações de Leto II e do misterioso Pregador é outra coisa que me deixa muito ansioso para a segunda metade deste livro.
Preciso voltar a falar de Alia pois a irmã de Paul Atreides é, ao lado de Leto II, a principal personagem desse livro até aqui.
O assunto aqui é ficção científica biológica de nível avançado, algo muito característico na Saga Duna. Antes de Alia, vale um lembrete básico sobre as conexões que a cognição humana possui com a anatomia, ou seja, o controle que a mente possui sobre o corpo. Todos os nossos sentidos possuem atividade detectável puramente por conta da recepção e processamento de dados que nossos cérebros fazem. Lembrem-se do que Morfeu fala a Neo enquanto explica o que é a Matrix:
“O que é real? Se você está falando do você pode tocar, sentir, cheirar, ver, ouvir, então a realidade se resume a impulsos elétricos interpretados pelo seu cérebro.”
Se trata de uma afirmação didática precisa de uma obra que em muito se inspirou em Duna para existir.
Pois bem, a mente detém controle sobre todos os aspectos do corpo humano e esta é uma relação que, uma vez conhecida academicamente pela humanidade, proporciona diversas manipulações em nosso dia-a-dia. Alimentos são elaborados por terem composições físico-químicas que, quando ingeridos e em contato com nosso organismo, são capazes de modificar o nosso humor, por exemplo. A indústria farmacêutica só existe graças ao conhecimento desta relação, uma vez que medicamentos são criados para funcionar entre corpo (reações físico-químicas) e mente (interpretação dessas reações) para que dado efeito terapêutico seja alcançado.
Bem, se o corpo humano é controlado pela cognição, isso quer dizer que, aprofundando, tal conexão existe a nível enzimático. Enzimas, basicamente, são moléculas orgânicas proteicas que estimulam as reações químicas naturais de nossas células, que por sua vez formam tudo no corpo humano. É pelas enzimas que, a grosso modo, se pode detectar o desenvolvimento e envelhecimento humano, dada a alteração (queda) de produção celular que naturalmente desenvolvemos ao longo de nossas vidas.
Após toda essa explicação, posso trazer Alia de volta ao cerne da questão.
Santa Alia da Faca é dona de uma cognição absurda, como já citei anteriormente, o que quer dizer que a conexção e controle de sua mente sobre seu próprio corpo é imensa, podendo até mesmo ser inimaginável. O que acontece se a realidade de um indivíduo se pauta no que sua atividade cerebral processa e o corpo puramente ativo deste indivíduo só funciona de fato com o pleno advento de sua cognição?
A resposta é dada por Lady Jessica, que descobre que Alia Atreides está utilizando sua mente impressionante para controlar sua biologia a fim de retardar o envelhecimento de seu corpo através de um ajuste interno de equilíbrio enzimático. A manutenção da juventude através deste processo é muito superior ao do consumo frequente de mélange, que possui propriedades geriátricas em sua composição físico-química.
Tal ação é extremamente proibida a qualquer irmã Bene Gesserit pois expõe habilidades supremas possíveis a todas as membros da irmandade. São habilidades que, se utilizadas abertamente, fariam com que as Bene Gesserit fossem temidas e perseguidas por todos no império, culminando em sua inevitável destruição. É bom lembrar que a posição de influência política conquistada pela irmandade Bene Gesserit ao longo da história de formação social do império foi algo que se desenvolveu de modo inevitável, forçado, sendo muitos os poderosos que as abominam e sonham com qualquer deslize delas para fomentar sua obliteração.
Por esse motivo a audácia de Alia a coloca na posição de “abominação incontrolável”. Caótico o potencial de Alia, não é mesmo?
As tramas políticas avançam pesado, com insinuações sobre a anulação do Efeito Holtzmann, tecnologia que alimenta os escudos de força e protegem os ducados sob a égide da Grande Convenção contra ataques nucleares. Os Corrino parecem estar dispostos a qualquer coisa para destruir os Atreides e voltarem ao trono imperial.
Jessica, a mando de Alia, é sequestrada por Duncan Idaho, que, por influência ideológica do Pregador, muda seus planos e a leva para Farad’n, o herdeiro Corrino exilado. É interessante ver como o Pregador parece brincar com os anseios imperiais dos Corrino para usá-los como ferramenta contra o império fanático de Alia. De que outra forma o Pregador poderia agir de modo contundente para tentar seguir os ensinamentos finais de Paul Muad’Dib? É necessário demolir o mito do homem-deus, apagar o conceito de messias da estrutura cultural humana.
Enquanto isso, o pequeno Leto II se despede de Ghanima e viaja sozinho em uma jornada de descobrimento de suas camadas mentais mais internas. Uma viagem que o levará para conhecer profundamente os aterrorizantes fantasmas desérticos da tradição fremen. Fremen, um povo que em parte começa a demonstrar grande relutância para compreender o paradoxo da tradição e abraçar a mudança, algo tão claro na mente do pequeno herdeiro de Paul Atreides.
O choque entre a renovação e o tradicionalismo dançou nas cordas vocais de Leto II quando este se virou para Ghanima e afirmou “Irei sozinho a Jacurutu”.
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