Filhos de Duna Capítulos 29 a 42: Pesadelos Idealizados

Bruno Birth
brunobirth
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4 min readNov 7, 2021

“Por causa da percepção consciente do tempo unidirecional em que a mente convencional continua imersa, os humanos são propensos a pensar em tudo conforme um contexto sequencial e orientado pelas palavras. Essa armadilha mental produz conceitos muito imediatistas de eficácia e consequências, ou seja, uma condição de resposta constante e não planejada a crises.”

Liet-Kynes

A narrativa de Filhos de Duna permanece refletindo o caos deixado pelo legado da extremamente tumultuada Era Muad’Dib. Nunca se discutiu tanto as relações de tradicionalismo e apreço pela mudança, nunca ordem e caos bagunçaram tanto as ideologias e objetivos das personagens deste universo.

O núcleo fremen se torna uma imensa vitrine dessa grande dicotomia existencial. Os fremen foram os grandes atores na sangrenta veiculação do império de Muad’Dib, um império que refletia a ideologia cultural e religiosa desse povo, uma ideologia criada após milhares de anos de resiliente construção pautada pela forçada peregrinação galática e intensa cultura de sobrevivência cultivada no hostil planeta Arrakis.
Entretanto, ao fim do governo de Muad’Dib testemunhamos uma profunda cisão no povo fremen no que concerne ao que se enxerga em perspectiva ao que foi o mundo de Paul Muad’Dib e o que significa a sociedade fremen em meio ao legado do imperador.
São muitas as variáveis em torno dessa cisão cultural fremen. O tão sonhado plano ecológico foi primeiramente um objetivo existencial fremen, mas, com a chegada dos planetólogos da família Kynes (que entre suas ações conseguiram até mesmo alterar alguns traços de manipulação religiosa que as missionárias protectoras das Bene Gesserit haviam implantado entre os fremen) o plano ecológico ganhou a aura científica como máximo objetivo.
O que isso quer dizer? Mesmo com suas leves divergências de opinião global, Pardot e Liet, para alcançarem o sonho de mudarem a atmosfera de Arrakis, acabaram tornando a religiosidade fremen uma ferramenta e a ciência o objetivo, imbuindo-a no âmago desse povo. Tal combinação tornou possível a implementação do plano de alteração ecológica de Arrakis, mas gerou uma disrupção cultural em meio ao povo fremen.
Naturalmente, se o planeta Arrakis está passando por severas mudanças ecológicas em direção à sua transformação para o tão imaginado “paraíso”, isso acarreta diversas mudanças também em como se entende as organizações da vida social cotidiana e cultural no planeta; e é exatamente aí que mora o paradoxo da essência fremen, uma essência pautada pelo sofrimento e resiliência religiosa, agora confrontada pelo refresco que o novo planeta Duna passa a apresentar ao povo fremen.
Ninguém antes havia imaginado o quanto a ciência poderia esbofetear as tradições fremen. Na verdade, Liet-Kynes já havia escolhido esse caminho existencial caótico ao abraçar as qualidades e patologias humanas, uma vez que, diferente de Pardot, compreendeu que a crença fremen num messias não podia ser mudada então, para que se estabelecesse a mudança ecológica de Arrakis, tal crença religiosa deveria ser alimentada.
Agora, por meio das palavras de Farad’n e Duncan Idaho, descobrimos o ódio de uma parcela do povo fremen aos Atreides, a maldição Atreides, a família nobre que entregou aos povos de Arrakis o que eles sempre sonharam.

Talvez os fremen nunca tenham compreendido de fato o significado de seu próprio sonho, tal como a humanidade em si, desde sempre perseguindo a emancipação de sua suposta existência superior por meio da falácia da predestinação, o destino sobrenatural que nunca foi e nunca será alcançado, regozijado. E enquanto continuar perseguido, engendrará catástrofe.

Falando em perseguir pesadelos, sonhar e se deprimir com os resultados existenciais equivocadamente idealizados, temos Leto II como figura de um experimento doentio nas mãos de Gurney Halleck, ou melhor, nas mãos de lady Jessica. A tentativa de ordenar o caos está representada da maneira mais clara possível no atual momento do filho de Paul Atreides, que paradoxalmente está sendo obrigado a expandir sua mente em incontáveis sessões de transe de especiaria para responder a uma gélida sequência de informações básicas que a Irmandade Bene Gesserit precisa para manter o status quo ordenado.
É interessante notar como nesse momento se relacionam as realidades de Leto II Atreides e Farad’n Corrino. Um possui uma cognição extremamente avançada e sob ininterrupta transformação, mas está sendo obrigado a se doutrinar da maneira mais básica possível; o outro nasceu com uma mente simples de nobre exilado e está sendo ensinado a expandir sua cognição para, a partir dela, compreender melhor a existência. Tanto Leto II como Farad’n estão nessa situação por meio das vontades de lady Jessica, o que impressiona, pois corrobora o quão a vida e atitudes da mulher sempre foram imprevisíveis e de potencial catastrófico.
O ghola Duncan Idaho, que implorou ser dispensado de sua servidão à família do antigo imperador, chega a trazer o seguinte questionamento “talvez você nunca tenha servido aos Atreides”. O que Duncan tem como dúvida, eu tenho como certeza. Nem à Irmandade Bene Gesserit Jessica serviu, sendo essa conclusão muito esclarecedora quando se pensa em todas as ações de lady Jessica ao longo da Saga Duna.

Fecho meu artigo com a dúvida de Alia: Será o Pregador o irmão de Alia? Paul Atreides?
A audácia do Pregador, bem como sua veemência oratória a esfregar na cara de Alia o quanto ela não foi capaz de respeitar os desejos finais de Paul, crescem conforme a narrativa de Filhos de Duna avança. Os fremen que seguem o Pregador se mostram completamente perdidos, sem saber se devem segui-lo da mesma forma como faziam com Muad-Dib, pois as palavras do Pregador condenam tal servidão cega.
Como Liet fala no excerto que destaquei no começo deste artigo, a mente coletiva é ensinada a seguir o simples, o que leva a crises; mas quando impulsionada ao contrário, tende a ficar perdida, sem noção de realidade.
E o que Alia poderia fazer de diferente, de melhor, na verdade, sendo ela um triste produto de alienação existencial desde seu nascimento?

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Bruno Birth
brunobirth

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