Mad Men Temporada 1: Micro Célula Social Sterling Cooper
Eu já havia ouvido falar de Mad Men, do potencial reflexivo que a série gera em seus expectadores, dos elogios e prêmios que recebeu ao longo de seus 7 anos de vida. Ao finalizar a primeira temporada, eu pude compreender (pelo menos começar) os motivos de toda essa consagração.
Quando falo “pelo menos começar”, me refiro diretamente ao formato de roteiro muito textual que, combinado com uma composição visual de caráter muito contemplativo e poético, constrói uma narrativa que (se me permitem uma analogia) se assemelha a um quebra-cabeça de 10 mil peças, onde cada uma delas é necessária para formar o Big Picture, a grande imagem. Assim, Mad Men se torna uma série que obriga a absorção gradual para quem resolve assisti-la, não se importando em apressar absolutamente nada enquanto desenvolve cada um de seus núcleos motores narrativos.
Existem basicamente dois tipos de narrativa no storytelling, a arte de contar histórias: as de construção de mundo e as de construção de personagens. Estou sendo bem básico, claro, e os dois tipos muitas vezes se misturam, embora sempre um dos dois vai prevalecer, podendo ser analisado e detectado na essência de qualquer obra. O Senhor dos Anéis, por exemplo, é uma clara obra com essência narrativa pautada na construção de mundo.
Mad Men possui um contexto em torno das personagens que é muito forte, presente de forma categórica em seu enredo e não tem como falar dos desenvolvimentos narrativos dessa série sem citar este aspecto. Contudo, é na construção e aprofundamento de camadas das individualidades das personagens que mora a alma de Mad Men, como vou elaborar adiante em algumas reflexões que tive enquanto assistia.
A primeira coisa que preciso dizer aqui é que Mad Men se trata em maior parte da abissal diferença que existe entre homens e mulheres no chamado mundo civilizado. Sim, eu sei como parece óbvio afirmar isso, mas, na verdade, o que parece claro muitas vezes não é. São vários os vídeos espalhados pelo Youtube que tratam de Mad Men, ou melhor dizendo, da persona de Donald Draper (personagem principal), como alguém a ser idealizado, copiado, tornado modelo de masculinidade.
Eu poderia passar dias aqui falando sobre o quão equivocada e simplória é essa forma de acompanhar Donald Draper ou qualquer homem dessa série; a crítica elaborada e aprofundada do quão doentio é o modelo machista da sociedade ocidental (tanto a nível pessoal como nos âmbitos coletivos) está presente em todos os episódios de Mad Men e fala por si só, grita por si só, escancarando as diversas formas de disrupção psicológica e frustrações sociais causadas pelo machismo estrutural. A própria ideia de “relações baseada em mentiras” que a série cria em seu nível de detecção mais superficial está completamente embasada na crítica ao falido mundo machista que Mad Men constantemente faz.
Estar em 2021 falando de algo tão óbvio só mostra como uma série cujo contexto narrativo é os anos 1960 infelizmente possui aplicabilidade que permanece atual. Muita coisa mudou, mas o caminho ainda é absurdamente longo.
Bom, já que Mad Men é uma série de construção de personagem, vou falar agora das que mais me chamaram a atenção, já deixando claro que esse artigo não é um dossiê; se assim fosse seria melhor escrever um livro. Desenvolverei as reflexões pontuais que mais me prenderam e que estão atreladas aos aspectos narrativos de como a série se ilustra e expliquei acima.
Lembram que falei do aspecto de construção de mundo ser algo categórico para a narrativa de Mad Men? Pois bem, a agência de publicidade Sterling Cooper funciona como uma micro célula da sociedade norte-americana dos anos 1960, com todos os ingredientes presentes.
Os pretos estão nos postos mais baixos de trabalho, uniformizados de modo que seu figurino acaba se tornando uma triste ironia, uma vez que o aspecto “vestimenta” é uma característica visual muito forte, uma ferramenta do enredo de Mad Men que diz muito sobre as personagens da série; seu humor, estado de espírito, atitude, e etc. Os negros não têm direito a personalidade, uma afirmação ilustrada não só por sua cor de pele mas pelo simplório figurino que a eles é reservado: o uniforme. Quando os negros aparecem na série chegam a causar um pequeno choque visual (que é inaudito, mora nos silêncios propositais do roteiro) pois realmente não fazem parte daquele universo, do modo como ele é construído, elaborado por alguém e para alguém que não são eles. De fato, os negros são quase que mudos, a não ser quando permitidos pelos brancos a falarem, o que acontece quase que nunca.
As estrelas da micro célula social Sterling Cooper nessa primeira temporada são, ao meu ver, Donald Draper e Joan Holloway. A dupla representa como homens e mulheres devem agir para alcançarem posições de sucesso e prestígio na sociedade. Ambos são duas faces da mesma moeda, entendem o mundo no qual estão inseridos e se utilizam de suas regras para estarem onde estão e disso tirarem proveito. Apesar de se alimentarem do hedonismo civilizado ocidental, ambos são infelizes, representando a síntese da rede de mentiras e frustrações que realmente é o mundo de Mad Men.
Mas não se engane! Apesar de Don e Joan serem duas faces da mesma moeda, é preciso lembrar que as faces de uma moeda diferem entre si, o que quer dizer que o peso de Don ser Don é bem diferente do peso de Joan ser Joan. As ações e consequências para os dois são muito diferentes por conta de seu sexo. Joan paga mais caro do que Don simplemente por ser mulher. De novo, o que parece ser óbvio muitas vezes não é.
Para falar mais das diferenças de ser homem e mulher em Mad Men é mais interessante falar de Joan, em vez de Don. Primeiro porque o status quo de privilégio social do homem é tão claro que se torna até mais interessante e reflexivo partir para a análise feminina deste mundo; e segundo porque para falar de Joan com mais propriedade nessa esfera de reflexão, é preciso também falar de Peggy, uma outra mulher que, junto a Joan, cria uma atmosfera complementar de como funciona o papel da mulher revolucionária no mundo machista.
Sim, Joan e Peggy são mulheres revolucionárias, o que torna impressionante a narrativa gradual e desenvolvida em camadas de Mad Men, pois estas mulheres em nenhum momento erguem bandeiras de revolução na série. A estrutura das relações dentro da micro célula social Sterling Cooper aliada à personalidade de Joan e Peggy as torna militantes inconscientes, as obriga a serem revolucionárias mesmo elas não sabendo que são.
Joan e Peggy são diferentes. Se engajam de modo diferente.
Joan “joga o jogo” para crescer. Se trata de uma mulher que conhece bem a inferioridade que a sociedade relega ao sexo feminino e usa toda a sua astúcia para se colocar de maneira a elevar sua sobrevivência e ganhar o poder de escolher a quem serve. Dessa forma, Joan não está a mercê de todos os homens, apenas dos mais fortes e influentes. Ao trabalhosamente desenvolver essa posição para si mesma, Joan consegue estar acima de todas as outras mulheres a sua volta (que gostariam de ser como ela, perseguindo o seu modelo) e até de alguns homens (que não se atrevem a enfrentar a casta masculina superior que, de fato, possui Joan). A posição de empoderamento de Joan a faz sacrificar muito de sua própria ideia de felicidade, de seus sonhos, como é possível ver em pequenos momentos de instabilidade emocional, aos quais Joan sempre se esforça para combater. Se trata de um empoderamento feminino pautado pela sobrevivência e que responde ao sistema machista.
Já Peggy trilha um caminho mais árduo, difícil. Ela se mostra um pouco inocente logo de cara, mas nem tanto. Peggy aprende rápido e, diferente de Joan, tem uma personalidade que, se replicada em larga escala, tem potencial de causar disrupção no sistema. Com suas ações, em vez de tentar com o mundo machista se adequar, Peggy acaba gerando a possibilidade de mudança. Até mais fria que Joan, Peggy demonstra cada vez mais representar um perigo real ao funcionamento do sistema, não só para o modo de pensar masculino machista como também para as mulheres que podem entrar em seu caminho e que por Peggy podem ser utilizadas como ferramenta para que ela chegue ao seu objetivo de ascensão pessoal e ideológica.
É muito interessante perceber com o passar da série como Joan e Peggy são, de formas diferentes, mulheres empoderadas, apesar de ambas não serem heroínas; até porquê esse não é, nem de longe, o foco de Mad Men para com qualquer um de seus personagens.
Sobre Don Draper, eu gosto muito do episódio 3 (Marriage of Figaro), especificamente da festa de aniversário de Sally Draper, filha de Don. O episódio funciona como uma amostra geral da abordagem da série. As mulheres só conseguem conversar livremente quando escondidas de seus esposos, sendo que usam tal “liberdade” para julgarem outras mulheres que de alguma forma não se encaixam no modo de vida “moral” e “respeitável” por elas vivido e compartilhado; essa parte do episódio é muito interessante, inclusive, pois mostra o nível de aprofundamento do machismo estrutural, que atinge e condiciona o juízo de valor da maioria das mulheres.
Em outro momento marcante do ep, a vizinha de Betty Draper se achega para rasgar elogios idealizados ao suposto tipo de homem que Don Draper, esposo de Betty, é:
- Que Homem!
- Eu sei!
A idealização de Don e seu casamento se torna uma cena de composição visual poética pois o diálogo de Betty e sua vizinha ocorre justamente quando Don está construindo uma casinha de conto de fadas que deve servir como decoração para a festa de aniversário de sua filha; o símbolo de como as pessoas de fora veem a vida dos Draper e de como ela é realmente, testemunhada pelos espectadores da série. E não é só Don e Draper que protagonizam essa farsa, os convidados da festa ilustram muito bem como na verdade são todos os casamentos pautados pela visão moral do sistema machista e antiprogressista.
Falando na esposa de Don, Betty Draper é uma personagem complexa, perdida dentro de si e dentro do sistema ao qual foi detalhadamente ensinada durante toda a vida a se comportar. A esposa de Draper é peça fundamental ao vazio de identidade que o personagem principal de Mad Men é pois representa uma extensão dele, um complemento de Don. Analisando Betty a partir de Don Draper, é quase que inevitável perceber como ambos são iguais, não se conhecem um ao outro ou a si mesmos, se perdendo dentro dos próprios desejos de estrelismo (ela muito mais obrigada a se refrear que ele, obviamente) e como são disprovidos de essência, cascas ocas. Uma marido e esposa que não conversam, mesmo sendo iguais são incapazes de se conectar.
Voltando à micro célula social Sterling Cooper, é notável como a série faz questão de dividir os homens em castas. É necessário lembrar que uma das maiores pautas do machismo é a competição ininterrupta por poder supremo, seja por luta violenta ou de ego. Há cenas em que há uma briga acontecendo em um grupo de um lado e dois homens em específico (Don e Roger) estão do outro, como se não fizessem parte daquele meio, por estarem em posição masculina superior.
São todos os homens de Mad Men propositalmente imbecis, devo dizer. Não existe alguém como Peggy, que por meio de suas ações tenta mudar como são as coisas no mundo masculino pois Mad Men mostra o mundo como modelado pelo homem branco hétero ocidental, predador e consumista.
A imbecilidade masculina da narrativa de Mad Men contudo é mais aparente de um modo idiotizado na casta inferior dos publicitários de Sterling Cooper e, sem dúvidas, tem como figura principal Peter Campbell. Pete na verdade representa todos os desmiolados que assistem Mad Men idealizando as ações de Don Draper. Pete sonha todos os dias em ser Don Draper, mas no fim do dia não passa de um medíocre que jamais vai conseguir alcançar o prestígio do homem que idealiza.
Enfim, gostei muito da primeira temporada de Mad Men. São tantas as reflexões que, apesar de este artigo ter ficado um pouquinho grande, eu apenas raspei a superfície. Já vou iniciar a segunda temporada e prometo que em breve um novo artigo vai pipocar aqui em minha page. Aguardem.
Me acompanhe nas redes sociais clicando AQUI.