Mad Men Temporada 3: O Voo do Passarinho

Bruno Birth
brunobirth
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5 min readSep 12, 2021

A temporada 3 de Mad Men colecionou momentos de ruptura e mudou o destino de vários personagens em um roteiro que se mostrou mais agudo do que o habitual até aqui. Não, a direção da série não mudou sua abordagem artística para com a obra, cujos detalhes expliquei no artigo da temporada 2 (leia clicando AQUI), mas é fato que a terceira temporada de Mad Men, como resumirei, é um marco de virada no enredo da série.

O foco da temporada 3 (e o meu foco neste artigo) é o casal Don & Betty, ou melhor dizendo, a derrocada final e inevitável da história de um casamento tóxico desde sua concepção. Essa narrativa em específico não teve início nessa temporada, mas sim mais ou menos na metade da segunda temporada, quando os roteiristas passaram a investir um pouco mais na construção da infidelidade reativa de Betty e a estadia forçada de Don fora de casa, após ter sido expulso pela esposa traída.
Como refleti rapidamente no artigo da temporada 2, o contexto do mundo de Mad Men mostra com clareza a ideia de que a infidelidade feminina encontra muitos obstáculos a mais para se concretizar, até mesmo no sentido de satisfação por prazer da mulher, do que a infidelidade masculina, que em muitos aspectos é na verdade cultivada culturalmente, se escondendo até mesmo atrás de um intrincado sistema de falso moralismo patriarcal, sendo o grande exemplo disso na série o casamento de Roger Sterling com a muito jovem secretária Jane. Para se casar com uma mulher muitos anos mais jovem, Roger abdicou de um sólido e respeitado casamento tradicional, se tornando motivo de chacota silenciosa para todos os homens próximos e de igual status ao dele, o que só quer dizer uma coisa: O homem sábio do mundo patriarcal selvagem jamais deve se prender a uma mulher apenas, mas possuir várias que lhe deem prazer; contudo, o homem civilizado também precisa fundamentar sua existência social nas bases de um casamento tradicional, a fim de construir uma família brilhante (formada por uma mulher de sua completa posse e filhos que ilustrem sua virilidade e posteridade) que lhe dê orgulho e posição de respeito perante a sociedade.

Mas voltando às diferenças da infidelidade feminina correlação à masculina em Mad Men, sempre nos foi mostrado como Betty gosta de se sentir bela e desejada; uma mulher claramente entregue a desejos fúteis, capaz de criar todo um universo pessoal de mentiras que lhe garanta a sustentação psicológica da ficção de uma vida perfeita para si mesma, um conto de fadas que só funciona em sua cabeça.
Mas Betty é também uma das muitas mulheres condicionadas desde o nascimento a adentrarem o pétreo e inevitável funil dos conceitos deturpados de qualidade de vida e felicidade humanas pautados inteiramente por um mundo machista branco, cujo sistema trabalha organicamente para a todo instante privar a sociedade de sequer cogitar a ideia de maior liberdade de escolha feminina ou de respeito à existência de ideologias femininas.
Ao entender isso, o espectador logo detecta como Betty está presa a um casamento que essencialmente não teria sido sua escolha se o mundo - sistemicamente e ideologicamente - fosse mais aberto às vontades femininas e pensamentos existenciais femininos.
Apesar de casada, Betty sente falta de seu passado de liberdade e glamour (contexto oposto à vida pacata de dona de casa), possui intensa e arduamente refreada vontade de se sentir desejada por outros homens (atitude oposta ao laço monogâmico do matrimônio), sem falar na alarmante falta de interesse no cuidado com os próprios filhos (postura oposta ao sonho ideológico de ser mãe). Mesmo com todas essas características contrárias ao que se pode considerar ideal para um casamento tradicional, Betty se casou, sendo o motivo global disso a forçada posição que, somente pelo fato de ter nascido mulher, a ela foi imposta pela cultura patriarcal.

E quando você pensa que a tragédia de Betty não pode ficar pior, eis que devo agora falar de seu parceiro de casamento. A mulher - até mesmo inconscientemente, pois o sistema machista trabalha nas esferas consciente e inconsciente social - abdicou de tudo o que poderia alimentar sua essência humana para seguir o respeitado tradicionalismo matrimonial, e então se descobriu acorrentada a um relacionamento tóxico, espelhado no mais vil, completo (e diverso) descaso de um marido traidor, que não enxerga nela nada além de um mero objeto sem expressão, sem vida.
Eu não consigo nem descrever com palavras suficientes o quão desumana, extremamente egoísta, nojenta, imoral, e etc, é a forma como Don Draper destrói a vida de Betty e sua família ao longo do tempo de casamento, sendo que sua atitude cotidiana para com a esposa não foge dos normalismos do sistema social selvagem que o favorece por ser um homem branco e endinheirado.

É poético ver como Betty avança com força as marchas em direção à ruptura do status quo de sua vida com Don a partir do momento que seu pai (última figura de autoridade masculina em sua formação pessoal) falece de modo abrupto. Confesso que, diante de tudo o que a série tão meticulosamente construiu sobre o papel de homens e mulheres em Mad Men e sobre especialmente os dois personagens em questão, me foi supreendente e muito interessante acompanhar os passos da mulher em direção à prática reativa e moralmente despreocupada da infidelidade, a desconstrução de sua inocência (que mesmo uma pomposa viagem a Roma não foi capaz de reverter), e por fim o encorajamento irredutível da busca pelo divórcio.
O desesperado, raivoso e ultrajado Don Draper grita:

“Você sempre teve o que quis!”

Betty não deixa o medo, vergonha ou qualquer sentimento repressivo desviar seus olhos dos do adúltero espúrio a sua frente e se mantém calada. Na verdade, o único presente na cena que sempre teve o que quis foi Don Draper.
A ex-esposa de Don está longe de ser uma mulher perfeita, mas assistir a mulher encontrar no bolso do esposo a chave que lhe possibilitou abrir a gaiola dourada de Draper e garantiu seu voo para longe valeu cada episódio da temporada 3 de Mad Men.

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Bruno Birth
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