Messias de Duna Capítulo 16: Os Caminhos da Religião

Bruno Birth
brunobirth
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6 min readDec 26, 2020

“Por mais exótica que a civilização humana se torne, não importam os progressos da vida e da sociedade, nem a complexidade da interface máquina/ser humano, sempre aparecem interlúdios de poder solitário em que o rumo da humanidade, o próprio futuro da humanidade, depende das ações relativamente simples de indivíduos isolados.”

O artigo a seguir se baseia em minhas reflexões. CONTÉM SPOILERS DO LIVRO DOIS.

Como vocês sabem, a religião é um dos pilares fundamentais da estrutura literária do mundo de Duna. Frank Herbert estabelece muitos dos parâmetros das sociedades de seu universo futurista com base em uma análise antropológica do papel da religião na formação e manutenção das civilizações deste mundo fictício. Entender o peso da religião é crucial para se entender os povos de Duna.

O que Frank Herbert faz no mundo de Duna é praticamente um ensaio, uma série de amostragens que exemplificam a nossa realidade e o papel nela exercido pela crença, prática e instituição religiosa.
Essa análise da religião traz ilustrações variadas, gerando compreensões que muitas vezes não são percebidas por muitos, pois os desavisados apenas absorvem a realidade social religiosa e não procuram questionar sua origem, seja no aspecto histórico, antropológico, social, filosófico, e etc.

Dentre as várias amostragens da esfera religiosa presentes na Saga Duna, Frank Herbert se concentra neste capítulo na relação entre os ávidos fiéis, sedentos pelo toque sobrenatural, e o sacerdote, aquele que transmite a palavra divina e envolve a todos num elo de imortalidade espiritual.
O sacerdote no caso está mais para um deus, na verdade uma deusa. Alia preside um culto em seu templo abarrotado de fiéis mendicantes. Pedintes atrás de dinheiro ou atrás de conforto psicológico, que para eles é puramente espiritual.
Escondido em meio ao povo está Paul Atreides, que assiste e analisa todos os detalhes do culto noturno. É através dele que Frank Herbert nos traz sua análise, sua singela contribuição para a compreensão do significado do pacto religioso.

Quão impressionante é o cérebro humano, com sua capacidade cognitiva sem igual entre os seres vivos. Preciso relembrar uma passagem do livro Um, quando o então jovem Paul Atreides, que se preparava para o teste do Gom Jabbar, diz:

“…a consciência animal não vai além do imediato nem penetra a ideia de que suas vítimas podem ser extintas, o animal destrói e não produz… …o ser humano exige uma rede de contextos para enxergar o seu universo…”

Em Sapiens, livro do historiador israelense Yuval Noah Harari é enfatizado o modo como a mente dos animais processa tudo o que vê na realidade, desde rios e montanhas até outros animais, se mantendo estritamente ao que é detectável e palpável, graças a simplificada e objetiva composição de seus cérebros que, como descrito no trecho de Paul supracitado, executam atividades cognitivas que se prendem às necessidades imediatas.
Já a mente humana, com uma estrutura cognitiva complexa ao ponto de ser capaz de executar as mais diversas elaborações de absorção, compreensão e interpretação da existência, possui a capacidade de ir além do que existe e projetar o sobrenatural.
Os outros animais não têm um cérebro complexo o bastante para projetar a imagem de uma mulher com asas, por exemplo. O ser humano, que visualiza uma ave e consegue (por imaginação) associar tal imagem a uma mulher, tem.

Para continuar a construção da reflexão global deste capítulo, também preciso resgatar o “Poder da Voz” das Bene Gesserit, muito presente no livro Um. Se vocês bem se lembram, discuti vagamente em análise do livro anterior a natureza dessa habilidade. Vale ressaltar aqui.
Em uma hipotética conversa entre dois indivíduos, os variados tons de voz, bem como a construção semântica dos diálogos de um, são absorvidos pelos neurotransmissores auditivos e visuais de outro, podendo ser interpretados das mais diferentes formas possíveis pelo cérebro do indivíduo receptor, que vai ou não acabar aceitando o que está sendo dito por seu companheiro de conversa. Isso é o Poder da Voz em sua utilização mais bruta possível, pois na maioria das vezes é natural e não deliberada.
Existem outros níveis dessa habilidade, nos quais certas pessoas trabalham para construir entonações e argumentações, assim como trejeitos, completamente voltadas a persuasão de outros. A oratória, tão usada por políticos e, isso mesmo, pastores de igreja, configura um nível mais elevado de “Poder da Voz”.
A partir da persuasão ou dissuasão, esta habilidade funciona de várias formas, como através cultivo de medo (intimidação) ou no ensejo e promessas de recompensas (detecção de interesse), por exemplo.

Una agora a capacidade cognitiva humana de imaginar o sobrenatural ao Poder da Voz. Então adicione todo o contexto de evoluções sociais e culturais que construiu toda a história da humanidade e que foi debatido no famoso capítulo 22 do livro Um, em particular a ânsia do ser humano em se sentir parte de algo maior, de modo a mitigar os considerados sofrimentos da vida mortal e passageira. Tão mal interpretada por nós humanos é a existência.
Sim, meus caros e caras, o resultado de tudo isso são os caminhos do imenso poder de mobilização religiosa.

Quando Alia fala, os povos tremem ante a sua voz, a sua palavra. Este é outro grande aspecto do processamento mental humano. Dentre os muitos pensamentos do livro Simulação e Simulacro, o filósofo francês Jean Baudrillard discute o conceito de hiper-realidade, que representa as diversas maneiras de se portar que os humanos aderem para os mais variados contextos presentes em nossa realidade, sendo artificiais ou não.
Me contendo no âmbito social da hiper-realidade, a mente humana processa uma forma de agir diferente quando um indivíduo está em um shopping center, em um show de rock ou em uma igreja. Em outras palavras, o meio influencia no processamento cerebral de uma pessoa e, consequentemente, em seu comportamento em relação ao que acontece naquele meio. A “criação de atmosfera” nada mais é do que a relação entre o coletivo em dado tipo de reunião e o aspecto individual de cada um a participar da reunião.
Faça o esforço de imaginar os receptores dos sentidos de uma pessoa presente em um culto religioso. Novamente afirmo, são várias as formas de interpretação da realidade presentes na cognição humana, o que inclui o sobrenatural. Além disso, o “poder da voz” é real e de grande influência, não só do pastor sobre o púlpito, como do companheiro de culto ao lado, que “sente” o espírito em seu corpo se exaltar. Afinal de contas o que significa “sentir o espírito” se não um efeito placebo metafísico?
O comportamento coletivo tem poder de influenciar o indivíduo e as palavras de cunho divino (embebidas em douradas promessas de elevação existencial) podem ganhar um caráter considerado até mesmo palpável num cenário como este.

Também, claro, em se tratando de humanidade, não é cansativo relembrar que é tão fácil acreditar e seguir, não é mesmo? Já falamos tanto sobre a necessidade que os humanos têm em encontrar um salvador, um messias, que lhes traga uma verdade mastigada e fácil de engolir.

Para fechar este capítulo, devo poeticamente recordar a reflexão que trouxe sobre os Atreides terem sido engolidos pelo mar fremen e obrigados a exercerem o papel de salvadores divinos de Arrakis.
Ao fim do culto de Alia, Paul, independente de sua pressa ou paciência, independente de sua vontade de ficar ou partir, se torna apenas uma pequena célula levada e espremida pela multidão de almas desesperadas pela salvação e pela bênção da deusa Alia e Muad’Dib, o Lisan Al Gaib.
Se trata de uma cena marcante que remete ao que Scytale disse a Edric sobre o Jihad de Muad’Dib:

“O Jihad usou Muad’Dib.”

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Bruno Birth
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