Messias de Duna Capítulo 19: O Amaldiçoado Governo Divino

Bruno Birth
brunobirth
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8 min readDec 30, 2020

“Ele deixou Alia,
O ventre celestial!
Santo, santo, santo!
Léguas de areia-fogo
Confrontam nosso Senhor.
Ele enxerga
Sem olhos!
Um demônio o aflige!
Santa, santa, santa
Equação:
Ele chegou ao valor do
Martírio!”

O artigo a seguir se baseia em minhas reflexões. CONTÉM SPOILERS DO LIVRO DOIS.

O caos disfarçado de quietude marca este capítulo. Por todos os cantos da Fortaleza de Arrakina soldados, sacerdotes e todos os outros tipos de seguidores de Muad’Dib questionam a imortalidade e força de seu divino imperador.
Os qizarates (responsáveis por propagar a religião de Lisan Al Gaib) se esforçam para, por meio de suas palavras poéticas, ressignificarem a perda da visão de Paul como mais um aspecto de sua existência sobrenatural e santa. Os seguidores de um deus que morre ou messias terreno que cai precisam encontrar explicações que mantenham sua fé e seus idealismos intactos. “Sim, nosso deus morreu, mas veja! Ele ressuscitou!”, “nosso iluminado líder caiu, mas temos outro”. A arrogância do ser humano procura esconder seus mais profundos equívocos das mais diversas maneiras possíveis.
A reincidência da humanidade no crédito ao conceito de “messias” é capaz de moldar todo e qualquer idealismo em uma cadeia de erros históricos e repetitivos. Os considerados líderes iluminados erram e seus seguidores rapidamente enxergam que talvez tenham depositado sua fé no líder errado e, portanto, o verdadeiro messias ainda está por vir. O erro parece nunca estar nas crenças e sim nos líderes que delas ascendem. Mas aí lhe pergunto:
Como podem os líderes messiânicos evitar o erro se as crenças que os criaram estão erradas por essência? Digo, não podem.
Não existem messias, não existem salvadores da humanidade. Enquanto não aprendermos isso, estamos condenados ao fracasso reincidente.

Destaco agora uma conversa entre Paul e Chani, na qual surge uma reflexão sobre a natureza humana e viabilidade política. Um diálogo que levanta grande questionamento sobre o significado de liberdade e como esta afeta a vida em sociedade.
Veja o que Paul diz:

“Não se pode fundamentar a política no amor. As pessoas não se interessam pelo amor: é desordenado demais. Elas preferem o despotismo. O excesso de liberdade engendra o caos. Não podemos permitir isso, podemos? E como transformar o despotismo em algo que se possa amar?”

Essa afirmação é complicada em vários níveis pois o conceito de liberdade é considerado abertamente como inalienável. Os países do ocidente, por exemplo, costumam alardear que possuem sistemas políticos de democracia baseados na liberdade. Mas será mesmo que nós ocidentais somos livres?
É sabido que vivemos sob um regime econômico de classes, criado e estabelecido após séculos de escravidão e exploração dos países do hemisfério sul por parte dos chamados “países de 1° mundo”.
Façam aula de história com Stilgar e lembrem-se: para se entender os contextos do presente, é necessário se aprofundar na história.
E nossa história não é bela. A existência indiscutível de uma aristocracia branca, oriunda de hereditariedade exploratória, o racismo estrutural, o machismo estrutural, a heteronormatividade e a hegemonia cristã (construída com muito sangue no passado) pautam quem de fato possui liberdade nas democracias liberais.
O capitalismo não se alimenta da distribuição de oportunidades iguais. Até que ponto em um mundo assim a liberdade não pode ser considerada um mero arremedo ou uma mentira?

Ainda sobre os ocidentais e a política, são imensas as críticas direcionadas aos países orientais, como a China, cujos sistemas de governo são considerados autoritários.
Pois bem, são em tempos de crise que as diferenças entre ideologias se tornam mais facilmente detectáveis. O Coronavírus, entre muitas circunstâncias extremas, levantou o questionamento da liberdade, pois o combate à pandemia em países do ocidente, com povos que têm como característica a desconfiança em líderes políticos e até mesmo na ciência, foi muito diferente do combate nos países do oriente, com povos que não colocam sua liberdade individual acima do bem coletivo e são ensinados tradicionalmente a seguirem uma disciplina de obediência às autoridades responsáveis.
O resultado está aí para todos verem, os números de mortos no ocidente não é só maior que no oriente como também há um desgaste absurdo no planejamento de atividades dos ocidantais no combate ao pior vírus até o momento no século XXI. Clique AQUI para ver mais detalhes sobre a comparação Ocidente-Oriente no combate ao Coronavírus.

Mas meu ponto aqui não é nem exaltar o oriente em detrimento do ocidente, pois é sabido que tudo tem seus prós e contras; não existe um lado dourado do mundo, onde as pessoas não sofrem.
Apenas utilizo a fala de Paul quando diz “liberdade demais causa o caos” para ilustrar que muitas vezes nosso próprio conceito de liberdade pode estar equivocado e que em situações de crise, sociedades humanas mais voltadas à disciplina reagem melhor.
Nem precisamos ir ao nível de larga escala; pense no seu dia-a-dia. Quantos de seus afazeres e objetivos seriam alcançados sem o senso de obrigação (que teoricamente tira a liberdade) neles impostos?
Como falei, essa afirmação de Paul Atreides traz reflexões de variados níveis.

Mais adiante no diálogo, Paul complementa a reflexão sobre a ineficiência da constituição, trazida em capítulos anteriores, quando diz:

“O que é a lei? Controle? A lei filtra o caos e o que passa por ela? A serenidade? A lei: nosso ideal mais elevado e nossa natureza mais baixa. Não observe a lei muito de perto. Se o fizer, encontrará as interpretações racionalizadas, o casuísmo legal, os precedentes da conveniência. Encontrará a serenidade, que é só mais um sinônimo de morte.”

A parte final dessa afirmação de Paul vale a pena ser ressaltada pois existe uma grande relativização da morte em nossa sociedade. As pessoas civilizadas são levadas pelo sistema e pela mídia a sentirem-se horrorizadas por certos cenários de mortes e desgraças, enquanto que outros devem, se não ser completamente ignoradas, analisados de um modo mais brando, sereno, como Paul diz. Como falei na análise do capítulo 5, o conceito de constituição erroneamente padroniza as populações, desumanizando-as num processo que a muitos acaba passando por desapercebido.

Eis que um aspecto de grande importância correlação a “Ciência da Mente” ganha espaço nessa parte do capítulo. Em especial em análise a essência de Paul Atreides.
A identidade humana é formada a partir do acúmulo de memórias (como explicado no capítulo 22 do livro Um) baseadas nos aprendizados diversos e experiências que nos acompanham durante a vida.
Para além disso, já falamos a exaustão como a mente humana possui uma cognição que nos permite trilhar as linhas do passado (vasculhando lembranças) e do futuro (projetando o que vai acontecer) ininterruptamente, com percepções mutantes que estão a todo momento moldando nossas concepções da realidade e da vida.
Tais características fazem com que nós humanos sejamos seres que se transformam com o passar do tempo, e Paul não é exceção. O Paul Atreides de Messias de Duna é muito diferente do Paul Atreides de Duna.
Deixe-me explicar melhor.

Conforme a vida de um indivíduo passa, o acúmulo de memórias variadas supracitado aumenta, alterando a forma como este indivíduo interpreta a natureza, a vida. Essa alteração causada pelo decorrente acúmulo de conhecimento muda a forma como este indivíduo projeta os acontecimentos futuros imaginados anteriormente, assim como as interpretações de lembranças.
Quantas vezes, por exemplo, você não mudou seus planos para o futuro, conforme os acontecimentos do seu dia-a-dia tomaram outros rumos? Ou quantas vezes você perdoou injúrias do passado por simplesmente (depois de algum tempo) reavaliar as lembranças de tais brigas sob outras perspectivas?
O acúmulo de memórias (conhecimento, experiência) faz isso com a mente humana.
E Paul Atreides sente isso. Veja este trecho:

“Sua mente carregava tamanho fardo de lembranças mutiladas. Para cada instante de realidade havia incontáveis projeções, coisas destinadas a nunca existir. Uma identidade invisível dentro dele recordava falsos passados, e o peso deles às vezes ameaçava esmagar o presente.”

Revisitar as concepções e certezas de seu passado, confrontando-as com os desdobramentos que estas proporcionaram ao seu presente, e ainda sob uma amadurecida e diferente visão existencial, transformada ao longo de 12 anos de império e envelhecimento pessoal. Este é o cenário no qual Paul Atreides está mergulhado, ou melhor dizendo, afogado.
A cegueira de Paul Atreides não poderia ser mais assertiva, uma metáfora prática.

Falando na cegueira de Paul, a audiência para encontrar os culpados foi convocada. Vários fremen estão presentes no imenso átrio da fortaleza de Arrakina, tensos e desconfortáveis por não se sentirem à vontade em edificações construídas acima do solo. Seu habitat natural e tradicional é o subsolo cavernoso.
É incrível essa pontuação de Frank Herbert pois é mais um detalhe de minuciosa capacidade de construção de mundo do escritor americano.
Alia está designada a presidir a audiência, mas antes, enquanto sozinha, lê uma carta enviada a ela e a Paul por lady Jessica.
A advertência da mãe aos seus filhotes é um dos pontos altos deste capítulo.

“Vocês estão criando um paradoxo letal. O governo não pode ser religioso e autoritário ao mesmo tempo. A experiência religiosa precisa de uma espontaneidade que as leis inevitavelmnete suprimem. E não há como governar sem lei.”

Não é preciso falar muita coisa depois dessa exortação, não é mesmo? Sabe quando você ouve, por exemplo, que os cristãos (tanto os católicos sanguinários da era medieval, quanto os pentecostais preconceituosos da atualidade) em nada têm a ver com os ensinamentos e personalidade de Jesus Cristo? Isso acontece pois o cristianismo historicamente se tornou parte do Estado, exercendo a responsabilidade de gerenciar o código de leis a governar a civilidade. Mesmo depois do Renascimento, época que ficou marcada pela separação formal entre a Igreja e o Estado, a relação entre as duas esferas permaneceu na tradição do ocidente e moldou vários aspectos da sociedade contemporânea.
Não é a toa, meus companheiros e companheiras, que, por exemplo, temos uma bancada evangélica no congresso nacional do Brasil, um país que na teoria é laico. Não é a toa que é de costume nos Estados Unidos fazer juramento com a mão sobre a bíblia. São apenas dois dos inúmeros exemplos da influência hegemônica cristã na estrutura estatal ocidental.
Os cristãos em nada são como Cristo pois a essência da religião cristã se perdeu na supressão do autoritarismo, na padronização dogmática e pautada nas liturgias repetitivas e sem evolução, algo que destoa da relação natural que o humano deveria ter com seu deus.
A espontaneidade do cristianismo, se não se perdeu completamente, está escassa.

Korba, o Panegirista, é o principal acusado de Paul na audiência. Na verdade, Korba não passa de um bode expiatório usado em público para que os traidores entre os fremen se denunciassem, com seus trejeitos. Trejeitos que Alia e Paul estam bem atentos para detectar. A hora de derramar sangue chegou. Então Stilgar surge, com uma postura diferenciada na audiência. Mais uma parte do plano de Paul Atreides em pleno funcionamento.
Enquanto Alia queria a morte imediata de Korba, Stilgar se coloca contra a decisão, relembrando que a Korba é reservado o direito de julgamento fremen.
Esta é uma atitude que não aconteceria se Stilgar não tivesse passado por um processo de leve mudança ideológica causada pela missão que Paul havia lhe dado. Frank Herbert nos apresenta um novo Stilgar, um que conhece a história da humanidade e que, a partir disso, remodelou as ideias que possui do presente, se tornando um pouco menos parcial, talvez até deixando de considerar Paul uma divindade.
Alia percebe a mudança. “Você está se preparando para desobecer meu irmão”, ela diz ao ouvido do naib fremen, sem ainda entender porquê Paul não se importa.

O que Alia ainda não sabe é o que Paul Atreides mais quer nesse momento. Os movimentos finais do jogo estão acontecendo e o imperador sabe a importância de agir com certeza para que seu plano se desenrole exatamente como sua presciência lhe diz.
O capítulo 19 é o melhor de Messias de Duna.

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