A Heresia Romântica Vidas Passadas

contra a redenção do amor hollywoodiano

Bruno Maroni
LADO B
5 min readFeb 24, 2024

--

Esperei muito pra ver Past Lives, longa de estreia da diretora e roteirista Celine Song. Por fim, fomos a uma sessão matinal aqui na cidade – quase certeza que eu tinha ido ao cinema às 11h.

Enquanto do lado de fora da sala o Sol dava espaço à chuva, do lado de dentro, a trama contada de Song me transportava por climas amenos e incertos, como devem ser as boas histórias. Esta não é diferente.

Prenúncio da despedida

Cartazes e sinopses de Vidas Passadas podem facilmente enganar espectadores desavisados tão acostumados com um recorte bastante específico de romance cinematográfico. Supostamente, trata-se do drama de duas almas gêmeas separadas por tempo e espaço, que vencem, contudo, a distância graças à força da paixão. Seria assim. Mas Vidas Passadas é um romance herege. A história de Nora e Hae Sung subverte expectativas com seu curso anticlimático, sabor agridoce e desfecho estranho à cultura habituada à redenção afetiva das comédias românticas do universo pop.

Nora e Hae se conheceram durante a infância, numa escola em Seul. Bem quando a garota e sua família estavam prestes a migrar para o Canadá. Os caminhos se opõem.

Ao deixar algo para trás, você também ganha algo mais.

Não é o que você está pensando

Num salto de 12 anos, agora jovens, Nora e Hae retomam o contato remotamente, à base de chats no Facebook e chamadas de vídeo no Skype – no ainda incipiente cenário digital do início dos anos 2010. O sentimento da antiga amizade mais uma vez se aflora, ganhando contornos românticos. Vale destacar que todo pequeno fluxo narrativo é entrelaçado em representações visuais que sugerem escolhas estéticas sutis e cuidadosas. À medida que as fases da vida avançam e o tempo saltam, paletas de cores e enquadramentos de câmera se alteram, dando novas perspectivas e evocando sensações distintas.

Song, uma dramaturga, criou um roteiro elegante e mostra um belo domínio da câmera, que calmamente encontra seu caminho para os lugares onde precisa estar. – Josh Larsen

Aqui as coisas começam a mudar. Uma decisão interrompe o contato. Cada personagem segue sua vida. Nora, que desde a juventude estava em Nova York perseverando em sua carreira como escritora, conhece Arthur e se casa. Hae, na Coréia do Sul, depois de passar pelo serviço militar, por pela faculdade de engenharia e por um namoro frustrado, consegue um trabalho. O tempo salta novamente. Mais 12 anos depois, Hae visita Nova York pela primeira vez. E para o espectador do outro lado da tela cresce à expectativa da redenção pelo reencontro.

Sim, Hae e Nora se reencontram. Mais uma vez, memórias, afetos e suposições se acumulam. Entre passeios no parque e uma volta de barco nos arredores da Estátua da Liberdade, desdobra-se um conceito-chave que tensiona a trama: o in-yun. Esse ditado coreano com raízes na filosofia budista alude à ideia de providência e destino, fala sobre passados múltiplos em colisão (ordenada). Embora sutil, a noção so in-yun insere certa dose de espiritualidade à Vidas Passadas. Soa claro que Nora crê num sentido maior para a vida, e que nossas histórias e amores não apenas choques aleatórios. Há um anseio profundo em curso aqui que satisfaz numa providência pessoal, em Cristo (Cl 1:16–17).

É in-yun se dois estranhos passarem um pelo outro na rua e suas roupas se encostarem acidentalmente, significa que deve ter havido algo entre eles em suas vidas passadas. Se duas pessoas se casam, dizem que é porque houve 8.000 camadas de in-yun ao longo de 8.000 vidas. – Nora

Herege por que, afinal

E se Nora e Hae tivessem ficado juntos? Como seria se tudo fosse diferente?

Na derradeira viagem de Hae para Nova York – cenário, inclusive, para centenas de romances ficcionais – a heresia vence. Vidas Passadas supera a doutrina pop do romance de almas gêmeas e da soberania das emoções. Em seu desfecho, o longa confirma que as vidas passadas dos protagonistas, bem, passaram. De modo algum o tecido complexo de sentimentos que movem as personagens são ignorados. Ambos lidam com uma multidão de lembranças, arrependimentos e a bela, mas traiçoeira, nostalgia. Não há romance proibido, nenhuma aventura afetiva ou paixão eufórica. Não há beijo apaixonado que irrompe de emoções reprimidas. Nada.

O filme de forma alguma diminui os sentimentos reais de arrependimento, dor e nostalgia que naturalmente marcam uma vida vivida no tempo. Nora realmente debate com quem Hae Sung foi, é, e pode ser em sua vida. Isso faz parte do que torna Vidas Passadas tão poderoso. Ele leva a sério emoções complexas, mesmo enquanto as submete a uma sabedoria madura que não está inclinada a descartar o amor em prol do romance. – Brett McCracken, ‘Past Lives’: Mature Wisdom in an Indie Romance

A trilha – tão sensível aos silêncios – e o tom da trama confirmam mais uma despedida. Hae vai. Nora fica. Fica com a dor de um afeto que se vai, mas segura da vida que vive. Ela assume seu presente, abraça a decisão do, provavelmente, tedioso e rotineiro amor que há anos construira com Arthur – mas não por isso vazio de significado. É assim que Vidas Passadas não aposta a redenção de suas personagens ao amor hollywoodiano. Nas linhas convencionais de um roteiro devidamente doutrinado pela mentira da paixão autêntica, ela o abandonaria. É um romance herege. O tipo de amor que a cultura ama, aliás, não é radical o bastante.

Um lamento pedagógico permeia o filme. Com seu peso delicado e força sutil, teor intimista, contemplativo e terno, Vida Passadas é, quem sabe, um alívio para uma cultura desgastada pelo amor fácil. É um lembrete de que amar, viver, gerir escolhas e sentimentos, é sim difícil. E que há beleza nisso.

Isso é minha vida… É aqui onde eu devo estar. – Nora a Arthur

--

--

Bruno Maroni
LADO B
Editor for

Marido da Lari e pai do Tim. Teólogo, jornalista cultural (improvisado) e escritor em formação. Gosto de livros, discos, pizzas e tartarugas.