Home office, esgotamento e direito à desconexão

É possível garantir as condições do trabalho decente no meio digital?

Samantha Schreiber
Burnoutizadas
5 min readOct 13, 2020

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A pandemia da COVID-19 trouxe novas realidade em termos de trabalho para muita gente. Diversas empresas, que ainda eram bastante analógicas, foram forçadas a se adaptar ao meio digital rapidamente e a força de trabalho também passou por mudanças. Se muitas empresas já viam o home office como uma alternativa antes de 2020, outras encontraram no regime de teletrabalho uma saída para manter as atividades durante os fechamentos totais e parciais das suas sedes.

A adesão ao trabalho remoto se acelerou e o debate sobre os seus impactos também ganhou espaço, não apenas em termos econômicos para as empresas, mas também na qualidade de vida e de trabalho dos funcionários. O direito à desconexão é — ou deveria ser — uma pauta central na discussão, já que home office não é bagunça. Com os avanços tecnológicos e a falta de limites entre real e digital, entre trabalho e vida privada, existe a possibilidade de vivenciarmos o trabalho decente nesses termos?

Mas, afinal, o que se entende por trabalho decente? De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), trata-se do “trabalho adequadamente remunerado, exercido em em condições de liberdade, equidade e segurança, capaz de garantir uma vida digna”.

A advogada e mestre em direito Maíra Brecht Lanner, que pesquisa o tema do trabalho decente no meio digital, explica que o conceito se apoia em quatro aspectos principais: a segurança no trabalho, a remuneração justa, a liberdade de trabalho — tanto em relação à associação sindical quanto ao não-trabalho escravo e o não-trabalho infantil — e o direito de trabalhar. Em seu livro sobre o tema, que será lançado em 2021, a jurista questiona se é possível garantir esses pilares em formatos de trabalho digital.

Hiperconexão e esgotamento

Foto de energepic.com no Pexels

Antes do home office se popularizar por questões de saúde pública, a relação com as tecnologias já vinham sendo tema de debates em diferentes âmbitos. Termos como a “infoxicação”, que ganhou força durante a pandemia, já eram apontados por especialistas como uma das causas do esgotamento de muita gente, dentro e fora do trabalho. É um mar de informação no e-mail, no Instagram, no Facebook, no Twitter, nos sites de notícias, na agenda digital, no grupo da família no WhatsApp, no grupo do trabalho, no subgrupo do trabalho, no grupo dos amigos, nos outros quatro subgrupos com os amigos, mais aquele seminário online, mais o e-book que você salvou para ler, e, claro, ainda achar tempo para a famigerada “vida real”.

No ambiente do trabalho, ferramentas como o WhatsApp e o Telegram, que antes eram até proibidas em ambientes profissionais, foram incorporadas como um facilitador de comunicação e canal informal entre equipes e colegas. Foi aí que, em muitos casos, os apps de mensagens instantâneas passaram a ser o terror do sossego: muitas vezes utilizados no número pessoal do trabalhador, os limites entre o que é trabalho e o que não é se confundem.

Em uma enquete rápida no Instagram do Burnoutizadas, perguntamos qual era o principal fator que impedia as pessoas que acompanham a página de desligar nas folgas e fins de semana. Entre diversas respostas — autocobrança excessiva, sobrecarga de demandas, falta de limites estabelecidos no teletrabalho, etc — , o WhatsApp foi o campeão absoluto de menções. Os mais citados foram os grupos de trabalho com mensagens que não cessam nunca e as demandas fora do horário de expediente, muitas vezes sem registros pelos canais formais estabelecidos no trabalho.

Quando pensamos no teletrabalho, a ferramenta se tornou ainda mais usada e flexibilizou as abordagens. Se antes o gestor ou cliente não ligaria em um domingo, hoje não vê problema em mandar aquela mensagem instantânea. E, mesmo que se diga “pode ver na segunda”, será mesmo que isso está dentro dos limites do aceitável?

O que diz a lei

A França tem, desde 2017, uma lei que garante o direito à desconexão do trabalhador. Empresas com mais de 50 funcionários são obrigadas a criar uma carta de boa conduta, na qual se estabeleçam os horários fora da jornada de trabalho, nos quais fica proibido enviar ou responder e-mails e mensagens profissionais.

Aqui no Brasil, tramita no Senado um projeto de lei semelhante, voltado aos trabalhadores em home office. O PL 4.044/2020 propõe que o empregador não possa solicitar normalmente a atenção de um empregado em regime de teletrabalho — por telefone ou por qualquer ferramenta de comunicação eletrônica — fora do horário de expediente. A ideia da regulamentação é prevenir abusos decorrentes do avanço tecnológicos.

Um dos pontos problemáticos ressaltados por Maíra é que, com a reforma trabalhista de 2017, o trabalho remoto entra como exceção na regra da jornada de trabalho definida. “Quem faz teletrabalho não tem controle de jornada, ou seja, não é preciso marcar que o funcionário está cumprindo 8 horas diárias ou não, e é esse trabalhador que está correndo o risco de ter o direito à desconexão desrespeitado, chegando a uma jornada exorbitante, aumentando os riscos de desgaste mental, de síndrome de burnout, entre outras questões”.

A advogada faz um paralelo com o sobreaviso, outra modalidade que também não entra na contabilização de jornada. “A diferença é que no sobreaviso o trabalhador sabe que precisa estar disponível em determinado dia ou horário e nessas outras modalidades ele não sabe quando poderá ser chamado, o que condiciona o trabalhador a sentir que precisa ficar sempre disponível para o empregador”, complementa.

Trecho da nota técnica sobre o trabalho remoto

Durante a pandemia, algumas medidas já foram tomadas a fim de garantir o direito ao descanso e lazer durante o trabalho remoto. Em nota técnica para a atuação do Ministério Público do Trabalho, a orientação é que empresas e órgãos públicos adotem um modelo de etiqueta digital, no qual “se oriente toda a equipe, com especificação de horários para atendimento virtual da demanda, assegurando os repousos legais e o direito à desconexão”.

Maíra destaca a importância de se discutir o direito à desconexão que, apesar de ganhar mais destaque nesse contexto de pandemia, já vem sendo discutido a nível mundial e é um ponto discutido em pactos de direitos humanos ao redor do mundo. “É uma questão de saúde, tanto física como mental”.

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Samantha Schreiber
Burnoutizadas

Jornalista, entusiasta da linguística e sócia da VOZ Colab. Curiosidade, criatividade, colaboração e movimento 🎈