Um olhar psicanalítico sobre a síndrome de burnout

Samantha Schreiber
Burnoutizadas
Published in
8 min readSep 24, 2020

Entrevista com a psicanalista Amanda Fernandes sobre o esgotamento profissional

Photo by Ryan Cryar on Unsplash

Produzir. Entregar. Performar. Desempenhar. A lógica do mercado — e da vida? — têm trazido consequências sérias para a saúde e bem-estar de muita gente. Em termos de estresse resultante do trabalho, 30% da população economicamente ativa no Brasil sofre com a síndrome de burnout, segundo dados do ISMA-BR (International Stress Management Association no Brasil).

Conversamos com a psicóloga clínica e psicanalista Amanda Fernandes para entender as causas do problema e como ele afeta a vida de milhões de brasileiras e brasileiros. Confira a entrevista a seguir.

Qual é a diferença entre cansaço e burnout?

Amanda Fernandes: O cansaço se trata de uma experiência normal e esperada na vida das pessoas e que tende a ser superada conforme esse sujeito consiga sustentar momentos de relaxamento e prazer. Por isso, se trata de uma experiência pontual decorrente de momentos de maior atividade. O que é comumente designado como burnout, por outro lado, se refere a um quadro que se apresenta de forma mais consistente e persistente no tempo. É um cansaço que não passa com o descanso, uma fadiga crônica. Em poucas palavras, poderíamos dizer que é um estado de esgotamento tanto físico quanto psíquico. A pessoa se sente sem recursos para lidar com as várias demandas que lhe são apresentadas. As noções de normal e patológico para a psicanálise se dão em um continuum em que o que é levado em conta é a intensidade na manifestação de sofrimento de um determinado sujeito. Assim, uma experiência que pode ser extremamente traumática para uma pessoa, pode não ser para outra.

Já no final do século XIX — a partir das mudanças decorrentes da revolução industrial — , um neurologista americano, George Beard, descreveu uma síndrome, a qual chamou neurastenia, a qual ele atribuía às mudanças no estilo de vida das pessoas de uma vida mais rural e tranquila rumo a uma vida urbana muito mais atribulada. Então, naquele tempo, ele já avaliava um conjunto de sintomas que vinham se fazendo cada vez mais frequentes e que comportavam um senso de maior irritabilidade e esgotamento que ele vinculava ao excesso de trabalho e a uma aceleração na experiência do tempo. Aqueles indivíduos eram caracterizados como nervosos, intolerantes e bastante reativos, por vezes. Assim, fica evidente que o trabalho pode, sim, produzir novas formas de sofrer. Trago esse breve apanhado histórico, só para destacar que este não é fenômeno recente e que está muito ligado à nossa forma de vida desde o início da modernidade.

Algumas pessoas são mais propensas a ter essa síndrome?

AF: Na psicanálise, a questão do burnout é tratada como mais uma manifestação sintomática e não como uma síndrome independente de sintomas que se apossaria do sujeito desde fora. Isso quer dizer, basicamente, que o sofrimento está relacionado a forma como conduzimos a nossa vida. Dessa forma, em circunstâncias normais, estamos bastante implicados no sofrimento, mesmo que não consigamos reconhecer isso num momento inicial, e isso é bom e ruim. A responsabilidade é difícil porque implica num questionamento de si, que Freud já fazia a seus pacientes no final do século XIX: “Qual a sua responsabilidade na desordem da qual você se queixa?”. Mas também é bom porque isso significa que podemos fazer algo a respeito, podemos transformar a nossa realidade. A maneira como nos constituímos, os nossos padrões de relação e o modo como lidamos com os prazeres, assim como os efeitos do social, estão todos relacionados. Então, sim, algumas pessoas em função de uma maior fragilidade podem estar mais suscetíveis a essa forma de sofrimento. Há pessoas que são extremamente sensíveis às demandas que lhe são impostas. Sentem que devem corresponder a tudo, a todo o tempo, da melhor forma, nenhum erro admitido! E essas características, somadas a um sistema capitalista selvagem que não cessa de demandar e cobrar, são receita para o desastre.

As vulnerabilidades podem ter um caráter mais pessoal ou mais social, mas estão sempre articuladas. Em situações mais extremas, de um desamparo bastante acentuado em que contam pessoas que ficam relegadas, às margens da sociedade, com as fontes de trabalho cada vez mais precarizadas e dispondo de cada vez menos direitos, pesam muito as dimensões sócio-políticas do sofrimento, ou seja, a forma como a sociedade se organiza e, dentro desse modelo, quem é passível de ser reconhecido e legitimado e quem não é. E, por isso, a ideia é poder democratizar cada vez mais o acesso à psicanálise. Para que essas pessoas possam ser atendidas em suas especificidades e dentro de suas possibilidades.

Como essa síndrome afeta a vida pessoal e profissional de quem a tem?

AF: Então, pessoas diferentes são afetadas de formas diferentes. De uma forma geral, pode-se perceber um incremento da angústia e da irritabilidade que tende a afetar não só as questões relacionadas ao trabalho, mas que, também, começam a minar as relações pessoais desse sujeito. Algumas pessoas chegam a desenvolver sintomas físicos como dores de cabeça constantes, náusea, úlceras, etc. Já a angústia, levada até o limite, pode desencadear crises de pânico, por exemplo. No entanto, independente da forma como esses sintomas se manifestam eles costumam trazer uma série de prejuízos no campo profissional e pessoal e que, sem um tratamento adequado, costumam piorar significativamente ao se atrelar a outros sofrimentos que já não foram bem resolvidos.

A depressão, cada vez mais frequente nos dias atuais, está intimamente relacionada a uma aceleração do tempo. Walter Benjamin é um autor que trabalha bastante a noção de experiência e, principalmente, a falta dela e seus impactos nas subjetividades. O que se percebe muito na clínica hoje é uma dificuldade bastante acentuada das pessoas em contar a sua própria história. Em narrar-se. Numa sociedade que prima por uma quantidade absurda de novas informações, a experiência tende a ficar num segundo plano e os efeitos mais visíveis disso no campo da linguagem é que as pessoas ficam restritas a uma mera descrição de si mesmas ou uma queixa que só contempla a descrição dos sintomas, o que aponta para um horizonte de esvaziamento de si.

O que se costuma dizer popularmente é que “tempo é dinheiro”, mas, na verdade, o tempo não é dinheiro, ou, pelo menos, não deveria ser somente. Tempo é tudo que nós temos e a forma como a gente se constitui e se implica enquanto sujeitos desejantes depende, entre outras coisas, do que fazemos com o nosso tempo.

Nesse sentido, permitir-se ter, dentro do possível, claro, intervalos é fundamental para que o psiquismo possa se manter em movimento, para que possa se manter desejante. O que acontece a longo prazo, quando uma pessoa se enche de atividades e de uma rotina muito dura é o automatismo e a perda do sentido na vida. Claro que também há casos em que as pessoas se utilizam do trabalho como um movimento defensivo justamente para não ter que se pensar. Como uma forma de não se deparar com a angústia porque na vida algumas coisas são realmente muito difíceis de serem pensadas e faladas. O problema dessa estratégia é que com o tempo ela vai se tornando cada vez mais vazada e a angústia cada vez mais intensa e difícil de tratar.

Quais são os fatores externos que mais contribuem para o desenvolvimento ou agravam essa situação?

AF: Ao meu ver, os fatores externos que são mais prejudiciais são questões econômicas e sociais. A forma como somos moldados a crer que ao possuir mais coisas, seremos mais felizes gera muita infelicidade, pois não é disso que se trata. Ou, pior ainda, que ao possuir a coisa X aí sim chegaremos ao paraíso. O desejo humano não tem um objeto propriamente dito. Ele se move constantemente e quando você consegue aquilo que queria, se tudo der certo, você irá querer outras coisas. Não tem fim. A lógica perversa do mercado é dizer que o desejo tem, sim, objeto e é esse carro ou essa roupa, por exemplo. E o que acontece quando se alcança? Frustração, não era isso, preciso de outra coisa. E para ter todas essas coisas, onde isso nos leva? Mais trabalho! Além disso, a forma como se explora uma necessidade humana bastante básica que é o desejo de reconhecimento também é muito problemática. Metas inatingíveis, quadros que medem e comparam desempenho entre colegas e por aí a fora. Tendo em vista que essas medidas são sempre bastante curtas no tempo. São diárias ou semanais. Se você foi o melhor vendedor mês passado já não importa! tem que trazer resultados agora! E isso é muito problemático e ansiogênico. Lança as pessoas em um sentido errante de que a história não importa. Se você não for o melhor agora, pode ser descartado. Então, se a gente não consegue ver que tem algo extremamente errado com essa forma de funcionamento, estaremos, inevitavelmente, cada vez mais alienados e cansados.

Quais são os sinais de alerta para quem está em uma possível situação de burnout?

AF: Eu diria que é muito importante poder reconhecer os seus limites. Isso parece óbvio, mas não é. Exige um trabalho intenso de poder parar e pensar-se. A partir do momento em que a pessoa se reconhece em uma vida sem sentido, sem prazeres, em que não parece fazer diferença estar vivo ou morto, em que os dias parecem todos iguais, sem conseguir contar com uma perspectiva futura, é fundamental poder recorrer a alguém. Esses são sinais de que a coisa não vai bem. Cada um tem um tempo próprio, mas de uma maneira geral, as pessoas buscam uma análise quando o sofrimento é maior do que elas podem tolerar, ao terem esgotado todas as outras possibilidades. É importante destacar que há formas de tratamento bastante eficazes e que podem auxiliar as pessoas a lidar melhor com os desafios impostos pela vida.

Como funciona o tratamento da síndrome de burnout?

AF: Há muitas formas de tratamento disponíveis e elas costumam ser bem diferentes entre si — quando se trata de abordagens psicológicas — e, algumas vezes, complementares, como é o caso da psiquiatria. Então, há medicações psiquiátricas que podem ajudar a atenuar os sintomas e também várias formas de terapia que buscam restabelecer a autonomia dos sujeitos. Em psicanálise, como eu havia comentado anteriormente, o burnout é mais um sintoma e, por isso, impossível ser pensado isoladamente. O tratamento consiste em se escutar e perceber como se está vivendo, os padrões de repetições a que se está sujeito. A compulsão à repetição se trata daquelas situações em que, por mais que a pessoa se esforce e tente fazer diferente, quando se dá conta está reproduzindo a mesma situação novamente. Como se fosse uma espécie de força que nos atravessa vez após vez e da qual nos sentimos reféns. Alguns atribuem essa força ao destino, ao dedo podre ou aos astros, mas, mais comumente do que se pensa, tem a ver com padrões que são passíveis de serem analisados e desmontados. A mesma dinâmica acontece nos relacionamentos. De fato, o que Freud tinha como o objetivo do tratamento psicanalítico era poder liberar as pessoas para poderem trabalhar e amar sem tantos impedimentos. Além disso, como eu já comentei antes, o tratamento analítico não se baseia em uma moral pré-estabelecida que ditaria o que é mais correto ou tentaria trabalhar de forma a tornar o sujeito mais adaptado ao que é esperado dele mas, sim, conta com um direcionamento ético por parte do analista com relação ao desejo na sua singularidade mais radical e pode ser considerado, nesse sentido, uma prática subversiva e política, pois trata de questionar estruturas dadas como óbvias, de fazer furo em discursos e saberes totalizantes/totalitários e prescritivos.

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Samantha Schreiber
Burnoutizadas

Jornalista, entusiasta da linguística e sócia da VOZ Colab. Curiosidade, criatividade, colaboração e movimento 🎈