O Papel da Indústria 4.0 na Transição para a Economia Circular

Gustavo Nobre
Business Drops
Published in
7 min readSep 1, 2019
Photo by Mark Merner on Unsplash

A recente e crescente conscientização de governos e da sociedade civil em relação a questões relacionadas à preservação dos recursos naturais do planeta, seja através de imposições regulatórias e/ou exigências do mercado consumidor, tem resultado na oferta de produtos e serviços cada vez mais eco-friendly. Isso pode ser observado não só nos recém surgidos mercados, que seguem as tendências comportamentais dos jovens do século 21 (onde as experiências têm maior valor do que as posses), mas também por novas versões, agora mais sustentáveis, de produtos já existentes. Esse fenômeno fez com que o conceito de Economia de Circular, apesar de já existir há décadas, se tornasse mais evidente e presente na agenda de organizações públicas e privadas (incluindo as do terceiro setor) a partir do início dos anos 2010.

No entanto, esta transição, apesar de socialmente e ambientalmente positiva, ainda preocupa algumas organizações no que se refere ao aspecto econômico, principalmente junto aos mercados já existentes. Os produtos/componentes “não-sustentáveis” ainda são economicamente mais atrativos, uma vez que os processos industriais atuais são ainda baseados no estabilizado modelo linear e são, portanto, economicamente mais eficientes. Versões mais sustentáveis de produtos já existentes possuem em sua grande parte maior custo de produção (incluindo o de obtenção de matéria-prima reciclada) e por isso ficam mais caros para o consumidor. Há, entretanto, um componente-chave que tem permitido maior aceleração no processo de transição para a Economia Circular, representado por um conjunto de tecnologias emergentes que chegaram para ficar, e que compõem a chamada “quarta revolução industrial” também conhecida como Indústria 4.0.

A primeira revolução industrial foi caracterizada pelo uso da energia a vapor em máquinas, substituindo o artesanato; a segunda introduziu a eletricidade; a terceira apresentou os computadores e a tecnologia da informação; agora é a vez dos dispositivos inteligentes e conectados através de sensores (Internet das Coisas — IoT), gerando, processando e armazenando dados como nunca antes (big data — segundo a Forbes, 90% dos dados da história da humanidade foram gerados nos últimos dois anos), somados a evoluções na área de Inteligência Artificial através do aprendizado de máquinas (machine learning), computação na nuvem, bioinformática, impressão 3D, blockchain, dentre outros. Essa evolução, somada à popularização e ao barateamento da tecnologia, tem viabilizado aplicações em praticamente todas as áreas. E na transição para a Economia Circular isso não é diferente…

Exemplos de Aplicações Práticas:

Bens de Consumo

Vamos usar como referência um produto de uso cotidiano e contínuo por praticamente todos os cidadãos: tênis — composto por diferentes tipos de plástico, nylon, borracha, celulose etc. Apesar desses componentes poderem ser reaproveitados / reciclados após o fim da vida útil do calçado, alguns desafios precisam ser superados pelos fabricantes: como fazer com que os tênis usados retornem para unidades fabris ao invés de serem descartados em lixões? Como descolar e separar os componentes adequadamente para que um não contamine o outro? Como produzir novos produtos atrativos pro consumidor? E como viabilizar tudo isso a um custo compatível com o de se obter as matérias primas da forma tradicional? Com algumas mudanças no modelo de negócio da empresa e aplicação de tecnologia de ponta isso é possível. O primeiro passo é descentralizar o processo produtivo, aplicando o conceito de (re)manufatura distribuída: ao invés de uma grande fábrica central, opera-se com várias pequenas unidades fabris, fisicamente muito próximas (ou até mesmo integradas) a revendas, e que também podem atuar como pontos de coleta de tênis usados. Boa parte da logística reversa ficaria, então, por conta dos próprios consumidores, que seriam motivados a deixar seus tênis velhos na própria loja. A fabricação dos tênis seria realizada por impressoras 3D que iriam operar sob demanda através de pedidos realizados por aplicativo próprio nos smartphones dos clientes, que poderiam montar o produto conforme várias opções disponíveis. E, para melhorar a experiência junto ao cliente, ao invés da compra do tênis, usuários pagariam uma mensalidade de valor baixo e teriam o direito de trocar de tênis a cada x meses (de acordo com o plano de assinaturas). Para quem estiver com dificuldades de entender o funcionamento do modelo, basta comparar a compra de um DVD numa loja com a assinatura de um serviço de streaming, como o Netflix — é o mesmo princípio: os usuários não seriam donos dos tênis, mas teriam direito ao uso mediante o pagamento de uma mensalidade (é o chamado PaaS — Product as a Service. E para baratear o custo dos insumos, os componentes dos tênis seriam modulares e facilmente desmontáveis, tornando o processo de separação para reaproveitamento / reciclagem mais simplificado e barato. Para alguns, um projeto como esse pode ser difícil de sair do papel em razão da revolução proposta do modelo atual e de sua própria viabilidade técnica / econômica. Mas isso já está se tornando realidade, conforme pode ser observado no caso da Cisco.

Meio Ambiente

Sensores inteligentes que permitem a comunicação direta entre dispositivos têm aplicação efetiva na proteção do meio-ambiente, como por exemplo, na prevenção do desflorestamento ilegal. Sensores de baixo custo alimentados por energia solar instalados em árvores monitoram o entorno e emitem alertas para órgãos de fiscalização na ocorrência de sons específicos, como por exemplo, motores de veículos ou motosserras. O mesmo princípio se aplica para preservação da fauna contra caça ilegal, por exemplo. Algumas empresas têm usado componentes de aparelhos celulares descartados (GPS, bateria, microfone etc) para fabricação dos sensores.

Segurança

Acredita-se que os riscos da explosão da plataforma de petróleo Deepwater Horizon em 2010 e da ocorrência do desastre ambiental causado poderiam ter sido minimizados com a utilização de recursos tecnológicos modernos. Inteligência Artificial, por exemplo, poderia se utilizada para acelerar e dar mais precisão a decisões relacionadas a operação das máquinas e iniciação de protocolos de segurança, processando dados enviados por sensores submersos baseados em IoT instalados em máquinas, componentes-chave ou no fundo do mar. A mesma tecnologia também pode ser aplicada em detecção de tsunamis, resgates de naufrágios etc.

Agricultura e Pecuária

O Brasil gasta mais de 80% de sua água tratada na agricultura e na pecuária, e boa parte desse volume é reconhecidamente desperdiçado. A utilização de sensores ligados a Internet e alimentados por energia solar permite monitoramento remoto de grandes áreas quanto a umidade do sol e do ar, temperatura, luz, por exemplo, e acionamento automático de irrigação com base em algoritmos pré-definidos.

Manufatura

A indústria de uma forma geral também pode se beneficiar de tecnologia através do monitoramento de emissões de gases de efeito estufa na atmosfera e consequentemente otimizando seu processo de filtragem de emissões através de sensores conectados, não só no processo de manufatura em si, mas também em toda sua cadeia de suprimentos. Redução no consumo de energia também pode ser obtida com sensores que otimizam a utilização de máquinas. Outra aplicação interessante (e que também faz uso do PaaS) de tecnologia está presente no conceito de manufatura compartilhada, onde empresas que possuem máquinas ociosas as oferecem para outras que tenham demanda. E isso tudo ocorre dentro de uma plataforma tecnológica, responsável por conectar as partes interessadas, formalizar os acordos de prestação de serviços e acompanhar o processo de produção. E esse fenômeno já ocorre no Brasil.

Administração Pública

O setor público também pode se beneficiar de tecnologia na transformação de centros urbanos em cidades inteligentes (smart cities) e mais circulares, como por exemplo na otimização da coleta de lixo — sensores em recipientes de lixo avisariam às empresas quanto ao momento da coleta, tornando o processo mais eficiente; e recuperação de valor de resíduos — já existem tecnologias capazes de automatizar, através de inteligência artificial, processos de separação de resíduos, reduzindo custos de reaproveitamento e reciclagem e, portanto, viabilizando iniciativas nesse sentido, além de reduzir a ocupação e poluição de aterros sanitários.

Computação na Nuvem

A já estabelecida computação na nuvem (cloud computing) também tem contribuído diretamente com a EC: organizações inteiras já conseguem ter sua infraestrutura tecnológica completa fora de casa, bastando que haja uma conexão com a Internet disponível. Aplicações de gestão de negócio, tais como sistemas de ERP, CRM já podem ser utilizados sem que haja um único servidor na organização. Mídias físicas tais como CDs / DVD’s / pendrives, unidades de backup etc já não aparecem mais com tanta frequência e tendem a desaparecer.

Não se pode deixar de mencionar também a Green IT (iniciativas tornar a tecnologia da informação mais sustentável), o uso crescente compensação de energia elétrica — net metering (até mesmo em residências) para aumento da participação da energia renovável no consumo de eletricidade e redução de custos, dentre outras aplicações.

As aplicações são inúmeras, e a cada dia novos casos são implantados por governos e indústria, e estudados pela academia e pela ciência. O objetivo deste ponto de vista foi apenas o de trazer alguns exemplos práticos (longe de serem exaustivos) para facilitar o entendimento de como tecnologias emergentes presentes no fenômeno da Indústria 4.0 podem ajudar organizações na tão importante e necessária transição para a Economia Circular.

E você? Já pratica isso de alguma forma ou conhece alguma história? Comente! E se gostou, bata palmas!

Gustavo Nobre é professor do curso “Economia Circular: Desvendando Conceitos e Práticas” do Alumni Coppead. Saiba mais sobre o curso aqui.

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Gustavo Nobre
Business Drops

Consultor Empresarial e Gestor de Projetos há mais de 25 anos, Professor na Área de Administração, Mestre e Doutor pelo Coppead/UFRJ