Folga Organizacional: quando o ótimo é inimigo do bom
A sociedade em que vivemos hoje não tolera o desperdício. Excessos são vistos de forma negativa e como prejudiciais em quase todas as esferas. Percebemos isso na falta de simpatia por quem acumulou muita riqueza, no preconceito contra pessoas acima do peso, na vigilância cerrada sobre a utilização exacerbada de recursos da natureza, entre tantos outros casos.
Algumas vezes, o excesso de recursos é realmente um desperdício e como tal traz um prejuízo associado para algum envolvido (impacto na saúde do obeso e escassez futura de recursos naturais, por exemplo). Deve, portanto, ser eliminado. Em outros casos, no entanto, esse excesso pode e deve ser encarado de forma positiva.
No âmbito das organizações, a redução de custo aparece como a solução mais frequente para levar as empresas ao sucesso em um mercado cada vez mais competitivo e globalizado. Dentre os programas de redução de custos, as iniciativas mais comuns são relacionadas à mão-de-obra, sob a forma de downsizing ou eliminação de postos de trabalho.
A Folga Organizacional, que vai na contramão desta tendência, é um conceito pouco conhecido no meio corporativo. Não há sinal de uma racionalização consciente da folga no mundo dos negócios, ou seja, as empresas não a planejam. Quando esta existe, é acidental e muitas vezes indesejada.
Pode-se definir Folga Organizacional como o “colchão” de recursos (humanos, físicos, financeiros, intangíveis) que permitem à organização adaptar-se com sucesso à mudança, através do fornecimento de meios para adequar estratégias ao ambiente externo.
Tal conceito tem como cerne despertar a consciência para a importância das organizações, ou melhor, as pessoas que a compõem, terem espaço para respirar, que é o primeiro passo para a sobrevivência.
Exemplos de recursos que podem compor a Folga Organizacional podem ser vistos na figura abaixo.
Figura 1: Exemplos de Recursos da Folga Organizacional
A aplicação destes recursos que constituem a folga organizacional é tão ampla que realmente surpreende o fato de ela não ser mais valorizada no meio corporativo, sendo, ao contrário, alvo de tantos cortes e eliminação através de programas de redução de custos e downsizing. Seguem abaixo algumas das suas principais utilizações.
1. Estímulo ao Comportamento Criativo/Inovação
Este talvez seja um de papéis mais diretos da folga, já que é difícil associar aspectos como inovação e criatividade a restrições de orçamentos e controle acirrados de prazos e custos. A folga possibilita a busca de projetos inovadores porque protege as organizações das incertezas destes, estimulando uma cultura de experimentação e permitindo que projetos que possam não parecer justificáveis em termos financeiros, mas que podem vir a trazer benefícios para empresa, sejam aceitos. Assim, permite que haja espaço para criar e espaço para fracassar. Além disso, a existência da folga libera a atenção gerencial, que também é um recurso escasso, uma vez que em organizações com pouca folga, a atenção dos gerentes é focada no desempenho de curto prazo e não em projetos inovadores de longo prazo.
Do ponto de vista psicológico, é mais provável encontrar inovação onde há folga, pois esta protege as organizações de riscos e porque a experimentação é menos questionada.
É importante destacar que, por outro lado, a existência da folga pode vir a reduzir a disciplina no processo de experimentação. Projetos com alto risco e retorno esperado negativo, por exemplo, podem ser realizados simplesmente porque existem recursos disponíveis.
2. Influência na Tomada de Decisão
A folga organizacional impacta a dinâmica de tomada de decisão da empresa de forma considerável. A existência desta favorece que não se busque a melhor solução possível do ponto de vista da racionalização de recursos, já que há disponibilidade destes. A sua ausência, no entanto, faz com que a empresa não tenha recursos suficientes (tempo, capital, pessoas) para levar a busca às últimas instâncias.
A presença da folga, apesar de ser positiva no processo de tomada de decisão, uma vez que a busca por alternativas acaba sendo mais rápida, também tem aspectos negativos, uma vez que reduz a busca, nem sempre levando à melhor alternativa.
3. Estímulo ao Crescimento da Firma
Outro papel bastante intuitivo da folga organizacional é permitir o crescimento da empresa. Como crescer sem capacidade disponível?
De uma forma direta, a existência da folga fornece a possibilidade da empresa experimentar novas estratégias, entrando em novos mercados e/ou introduzindo novos produtos, comprometendo recursos na investigação destas novas oportunidades.
Além disso, quando o crescimento vem da diversificação de produtos ou geográfica, a empresa normalmente opera em níveis de escala pequenos nesta nova área, funcionando assim de forma menos eficiente, já que os recursos para esta expansão normalmente são adquiridos de forma discreta.
Assim, o crescimento é consequência direta da existência da folga, que funciona como um grande incentivo. A existência de recursos produtivos e de conhecimentos especiais não utilizados faz com que a empresa busque uma finalidade para eles.
4. Gestão de Coalizões e Resolução de Conflitos
Existe uma constante busca por recursos dentro de uma empresa, em qualquer nível de atuação. Esta busca gera conflitos e estimula a atividade política, que normalmente se faz através de grupos que formam coalizões. A existência da folga reduz a atividade política, pois, com mais recursos, há menos conflitos no processo de alocação destes e assim, menos necessidade de barganhas e formação de coalizões. A folga permite que as oportunidades sejam distribuídas para todos os participantes. A disponibilidade de recursos, assim, poderia ser considerada como a solução para os conflitos.
Por outro lado, a folga fornece oportunidade para gestores “ambiciosos” adotarem comportamentos políticos em um esforço para captar mais do que uma parcela justa desta.
Outra visão das coalizões ligada à folga é chamada de inducement. Segundo este ponto de vista, a organização funciona devido ao atendimento das necessidades de suas coalizões internas. No entanto, como é muito difícil para a empresa saber exatamente qual valor deve pagar para cada stakeholder (funcionários, investidores, diretores, etc) permanecer nesta coalizão, este pagamento pode acabar sendo acima do nível mínimo necessário, constituindo uma folga.
Sendo assim, em momentos de necessidade por parte da empresa, poderia ser possível, por exemplo, reduzir o nível de dividendos ou os privilégios dos diretores tais como carros, secretárias particulares e ainda assim mantê-los ligados à empresa.
Por outro lado, ao favorecer as necessidades de um grupo, a empresa corre o risco de não atender os requisitos mínimos de outro grupo. Encontrar o meio termo entre estes dois extremos é manter a empresa dentro de uma “zona de tolerância”, já que não é possível determinar exatamente o valor mínimo desejado por cada grupo de interesse, e, ainda mais, por cada indivíduo.
Assim, ao ter um nível de folga muito elevado para um dos stakeholders da empresa, por mais que garanta a coalizão e minimize o nível de conflito, pode levar a empresa a um desequilíbrio em termos de desempenho.
5. Resposta e Adaptação a Mudanças no Ambiente
A capacidade de se adaptar e de responder às mudanças nos vários ambientes é constantemente apresentada como um requisito para o sucesso das organizações. Desta forma, as organizações devem ter uma flexibilidade estratégica para enfrentar de forma mais rápida as mudanças, cada vez mais frequentes, em ambientes cada vez mais complexos.
A folga exerce basicamente dois papéis em relação a este ambiente em constante evolução: proteção das atividades-chave e flexibilidade de adaptação.
A folga protege as atividades-chave da empresa, permitindo que não seja necessário efetuar mudanças imediatas a cada variação no ambiente competitivo da empresa. Desta forma, a firma tem tempo para avaliar se esta variação realmente demanda uma mudança mais profunda em seus processos e negócios, não realizando mudanças desnecessárias.
A folga também permite maior flexibilidade e agilidade, permitindo uma melhor adaptação às mudanças no ambiente competitivo da empresa.
Desta forma, a empresa pode ter uma expectativa de desempenho mais constante ao longo do tempo, uma vez que contrabalança as variações do ambiente com a utilização de seus recursos sob a forma de folga. Esta seria mais uma utilização da folga como redutora de incertezas e riscos.
6. Motivação dos funcionários
Este talvez seja o grupo de aplicação da folga menos explorado pela literatura sobre o assunto. A falta de folga ou mesmo redução desta nas organizações tem um impacto considerável no comportamento e na vida das pessoas que trabalham nestas empresas.
Uma das maneiras mais diretas de eliminar folga é cortar pessoas. Firmas com altos níveis de folga são mais inclinadas a implementar estratégias de redução de pessoal.
Com a redução do número de funcionários, normalmente aqueles que ficam acabam por acumular mais trabalho. Em tempos de “pico” de demanda de trabalho, estes funcionários realizam horas extras. Este esquema de trabalho, se realizado por um período muito longo, pode levar a consequências como a redução da qualidade do trabalho realizado, o aumento de turnover de pessoal, a queda de produtividade e o aumento do número de erros.
Esta redução de quadro tem outros efeitos, uma vez que as remanescentes passam a não mais ter tempo disponível para o aprendizado organizacional e para a criação de conhecimento. Desta forma, o crescimento pessoal e profissional do funcionário fica comprometido.
Além disso, há um aumento de stress gerado tanto pelo acúmulo de trabalho quanto pelo medo de ser atingido por uma próxima etapa do programa de redução de custos.
Outro ponto digno de nota vem a complementar o aspecto da inovação e da adaptação ao ambiente — uma organização que tem folga, possibilita que seus funcionários tenham tempo e espaço para absorverem mudanças.
A folga é o pequeno investimento que você faz na sua equipe de forma que as pessoas possam aceitar o desafio da mudança e sentir que estão sendo preparadas para ter sucesso.
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Como visto acima, a existência da folga organizacional traz alguns problemas. Porém, traz muitos benefícios. Assim como com os quilinhos a mais, que sempre ajudaram a espécie humana a sobreviver em épocas pré-históricas difíceis e hoje prejudicam a saúde.
Os benefícios da folga não implicam em que os gestores devam deixar de otimizar recursos, mas sim que devam fazê-lo com um olhar que leve em conta a possibilidade de manter alguns deles, mesmo que de imediato pareçam desnecessários. Planejar a existência de folga é o caminho.
Assim, pense bem antes de fazer a próxima redução de custos. Ou a próxima dieta.
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Caso tenha interesse em se aprofundar no tema…
DE MARCO, Tom. “Slack: Getting Past Burnout, Busywork and the Myth of Efficiency”. New York: Broadway Books, 2001.
SENDER, Gisela. “O papel da folga organizacional nas empresas: um estudo em bancos brasileiros”. Rio de Janeiro: Coppead/UFRJ, 2004.