Manifesto a favor da zona de conforto

Gisela Sender
Business Drops
Published in
5 min readNov 14, 2019

“Grandes coisas nunca surgem de zonas de conforto”

“A vida começa no fim da sua zona de conforto”

“Tudo o que você sempre quis está um passo para fora da sua zona de conforto”

“Uma zona de conforto é um belo lugar — mas nada nunca cresce lá”

As frases acima são apenas algumas das citações que existem sobre a zona de conforto. Todas pregam que devemos sair dela para alcançar grandes feitos, realizar nossos sonhos, ser feliz. Crescemos aprendendo que a zona de conforto é um lugar horrível para se ficar, que os que ali permanecem são fadados ao fracasso, pois, mesmo que achem que estão bem, o que existe “lá fora” é muito melhor, e, portanto, tem que ser perseguido.

Isso parece ser especialmente verdadeiro no ambiente de trabalho. Somos compelidos a almejar promoções, aumentos salariais, novos projetos, entrando no que apresentamos no último artigo aqui publicado como a “esteira hedônica”, que é a busca eterna e incessante de um alvo móvel que teoricamente nos traria a felicidade.

Conheci uma pessoa que vive o que todos sempre sonharam. Casou-se com o primeiro namorado (que é apaixonado por ela até hoje), mora em uma ótima casa própria, tem dois filhos saudáveis e lindos, trabalha com algo que acredita e adora. Não são ricos, mas vivem de forma confortável. No entanto, todas as vezes que conversamos, ela me diz que se sente chateada pois acha que deveria buscar “algo mais”, ter mais ambição. Na verdade, ela deveria estar feliz, no presente, mas de alguma forma sente-se pressionada a querer mais do futuro. A lógica que nos leva a querer sair da zona de conforto é perversa e pode nos distanciar dessa felicidade, ao invés de nos levar a ela.

Mas de onde vem essa crença?

Tudo começou em 1908, com um experimento com ratos movimentando-se em um labirinto de acordo com diferentes estímulos elétricos. Os resultados deste estudo levaram ao que ficou conhecido como Lei de Yerkes-Dodson, segundo a qual o desempenho melhora com a excitação fisiológica ou mental, mas apenas até certo ponto. Quando os níveis de excitação se tornam muito altos, o desempenho decai. Este processo é frequentemente ilustrado graficamente conforme a figura abaixo:

Fonte: Baseado na Lei Yerkes-Dodson (1908)

Então, em uma visão simplificada, os ratinhos movimentaram-se de forma distinta de acordo com o choque e nós, 111 anos depois, estamos correndo como loucos sem poder nos contentar com o que temos, pois isso poderia nos levar ao tédio.

A teoria em torno da zona de conforto, à primeira vista, parece atender bem à dinâmica nas empresas e funcionar bem como ferramenta de gestão de equipes. Em primeiro lugar, como decorrência direta da Lei de Yerkes-Dodson, a pressão leva as pessoas a terem um melhor desempenho, serem mais produtivas, trazendo melhores resultados para as empresas. E, se a empresa tiver um bom esquema de meritocracia e reconhecimento, as pessoas acabam tendo benefícios também, tais como promoções e aumentos de salários.

Além disso, a aceitação do desconforto trazido por sair da nossa zona de conforto também ajuda as empresas em questões ligadas à gestão da mudança. As pessoas ficam mais abertas a inovações que venham a ser implantadas pois são compelidas a buscar algo novo.

Parece ser um caso típico de ganha-ganha.

Mas e se não for bem assim?

Talvez as organizações não percebam os efeitos colaterais negativos de estimular constantemente que seus funcionários queiram sair da sua zona de conforto.

Trabalhei em uma grande empresa que tinha um processo de recrutamento interno segundo o qual, antes de abrir uma vaga no mercado, a posição era anunciada no portal interno e todos tinham direito a se candidatar, bastando para isso estar há 12 meses no cargo atual. Em princípio parece uma ótima iniciativa, certo? Não se você for gestor de uma equipe, como era o meu caso.

Ao completar 11 meses na função, os funcionários, principalmente aqueles com salários mais baixos, começavam a buscar novas oportunidades. A cada 12 meses, a equipe “rodava”. Como eu trabalhava com um assunto com certo grau de complexidade e uma equipe júnior, um ano era o tempo que eu levava para treinar, dar coach, desenvolver e vencer a curva de aprendizado da minha equipe. E quando a pessoa estava finalmente pronta, ao invés de começar a produzir com toda a sua capacidade, ela saía em busca de “novos desafios”, para fora da sua zona de conforto. Era ruim para mim, muito ruim para a empresa, mas era péssimo para os funcionários também. No momento em que eles poderiam ficar mais tranquilos, entender melhor o que estavam fazendo, e até mesmo contribuir para a melhoria do processo, sendo mais bem avaliados e reconhecidos, eles começavam a aprender uma nova função. Isso é muito cansativo!

Será que não está na hora de trocarmos os “picos de performance”, que podem facilmente descambar para zonas de pânico impactando o bem-estar e a saúde mental do funcionário, por “planaltos de performance”, mais estáveis, como proposto na figura abaixo?

Fonte: Elaborado pela autora, modelo proposto

No modelo proposto, a zona de pânico permanece a mesma, levando à exaustão em caso de alta pressão. No entanto, na zona de aprendizado, as pessoas ficam animadas ante ao desafio e ao novo conhecimento adquirido, porém o desempenho não é tão bom, já que ainda não são proficientes no tema. Por isso, há menos expectativas e consequentemente pressão em relação à sua performance. Quem sabe quando está na hora de iniciar uma nova fase de zona de aprendizado (e sair da zona de conforto) é a própria pessoa, caso sinta-se entediada ou atraída por um novo aprendizado.

A zona de conforto, por sua vez, passa a ser o grande objetivo. Ela possibilitaria um desempenho melhor do que as outras zonas — talvez não o melhor desempenho possível (o pico), mas um desempenho mais estável e duradouro. Mas, em algumas ocasiões, a zona de conforto de alguns é justamente estar sempre saindo da zona de conforto e iniciando uma nova curva.

Assim, segundo esse novo modelo, se você chegou no seu planalto de performance e quer ficar lá na sua zona de conforto quietinho, não se sinta culpado — fique lá por um tempo e aproveite!

Sobre a autora:

Gisela Sender passou a sua vida profissional fugindo da sua zona de conforto. Fugiu tanto que saiu do Brasil há quase um ano. Espera ansiosamente encontrar sua zona de conforto novamente e de lá não sair por um bom tempo…

Referências:

Yerkes RM, Dodson JD (1908). “The relation of strength of stimulus to rapidity of habit-formation”. Journal of Comparative Neurology and Psychology. 18 (5): 459–482. doi:10.1002/cne.920180503

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Gisela Sender
Business Drops

Atua em consultoria de gestão há mais de 20 anos, tendo sido executiva de grandes empresas. Engenheira, mestre e doutoranda em Adm, leciona em cursos de pós.