Atletas têm voz na luta contra o racismo nos Estados Unidos, enquanto no Brasil são silenciados

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8 min readJan 16, 2017

Com menor acesso a educação e a informação, o debate não é feito aqui, mesmo numa situação de calamidade

Estrelas da NBA usam premiação norte-americana da ESPN para se posicionar contra a violência policial (ABC/Image Group LA)

Por Felipe Haguehara e Heitor Facini

No dia 1 de Setembro, quinta-feira, Colin Kaepernick, atleta do San Francisco 49ers, time de futebol americano, ajoelhou-se e abaixou a cabeça enquanto o hino nacional estadunidense tocava à frente de 47.407 espectadores no estádio. Não foi a primeira vez que ele protestou no momento do hino. Desde o início da pré-temporada ele ficava sentado enquanto todo mundo ficava de pé. Colin disse em entrevista pós-jogo ao próprio site da NFL: “Não vou me levantar e mostrar orgulho pela bandeira de um país que oprime o povo negro e as pessoas de cor”.

Estados Unidos tem tradição em utilizar o esporte para protesto (Foto:NFL/Divulgação e Dominio Publico)

A partir disso, Kaepernick recebeu uma enxurrada de críticas através das redes sociais. O usuário loganA82 disse em uma postagem no Twitter que esperava que alguém invadisse a casa de Colin e ele precisasse chamar um policial para defendê-lo e não fosse atendido .

Mas, também recebeu apoio através de uma hashtag #VeteransForKaepernick. O usuário Corey Bliss, ex soldado do exército norte-americano, postou que era “negro antes de servir e continuou negro depois” junto com a hashtag.

O quarterback não foi o único atleta a demonstrar seu posicionamento político explicitamente em público. As super estrelas da NBA LeBron James, Dwyane Wade, Chris Paul e Carmelo Anthony se manifestaram no dia 13 de Julho deste ano, na abertura do Prêmio Anual de Excelência em Performances Esportivas, ou ESPYs, distribuído anualmente pela ESPN norte-americana. Dwyane Wade, ala armador do Chicago Bulls se pronunciou dizendo que “a mentalidade de atirar para matar tem que parar. O país tem de parar de não enxergar valor em vidas negras. A retaliação tem de parar. A violência em Chicago, Dallas, Orlando tem de parar. Basta”. Lebron James, ala do Cleveland Cavaliers discursou dizendo que “todos nós, atletas profissionais, devemos nos educar, dar voz, usar nossa influência e renunciar a toda violência e, mais importante, voltar as nossas comunidades, investir nossos recursos, ajudá-los a se fortalecer. Temos todos que fazer melhor”.Chris Paul, armador do Los Angeles Clippers, disse que tem de seguir o exemplo de caras como “Kareem Abdul Jabbar, Jesse Owens, Muhammad Ali, John Carlos, Tommie Smith e inúmeros outros”.

O caso de John Carlos e Tommie Smith, aliás, é um dos mais emblemáticos da história. Nas Olimpíadas de 1968 Tommie venceu os 200m rasos e John ficou com o bronze. No pódio, ergueram os punhos fechados, um gesto dos panteras negras, para demonstrar apoio às lutas pelos direitos civis nos Estados Unidos.

Jovens negros correm mais perigo de vida

O que motivou esses posicionamentos foram os recorrentes abusos cometidos pela polícia norte-americana. Casos como o de Michael Brown, que levou seis tiros (um deles na cabeça) ficaram famosos e geraram diversos protestos ao longo do território dos Estados Unidos. A polícia diz que ele reagiu a uma abordagem policial. Dorian Johnson, que acompanhava o jovem disse que ele estava com as mãos ao alto. Outro caso que repercutiu, foi o assassinato de Oscar Grant III, que foi rendido e enquanto deitado de bruços no chão tomou um tiro. Segundo o oficial que disparou, o jovem estava pronto para reagir com um taser, o que se provou irreal por filmagens de câmeras de segurança e amadoras.A história acabou virando o filme “Fruitvale Station” de 2013, estrelado por Michael B. Jordan.

Nos Estados Unidos, se você é jovem e negro, você já corre perigo. De acordo com dados do FBI do ano de 2015, a cada 100 mil habitantes no país morrem 0,25 jovens negros entre 13 e 19 anos. A situação no Brasil é ainda pior. Segundo dados do DataSus de 2014, a cada 100 mil habitantes morrem 3,75 jovens negros de 15 a 19 anos no país. Mas de certa forma os atletas e as celebridades no país se calam quanto ao assunto.

Infográfico por Felipe Haguehara e Heitor Facini

O caso Aranha

Àqueles que se manifestam há a repercussão na mídia, porém com um deslocamento do foco. No dia 28 de Agosto de 2014, Mário Lúcio Duarte Costa, mais conhecido como Aranha, estava em campo pelo Santos F.C. em partida válida pela Copa do Brasil. Durante os últimos minutos de partida ele gesticulava inconformado para o árbitro que a torcida do Grêmio, seu adversário na ocasião, chamava-o de “macaco” e fazia gestos e sons insultando o goleiro. No momento Aranha respondeu, bateu em seu braço e afirmou “Sou preto, sim, sou negão, sim!”.

O caso ecoou nos veículos e nas redes sociais, alguns dos agressores até foram localizados e identificados através das câmeras das emissoras que transmitiam a partida. A imprensa esportiva focou a narrativa na história de Patricia Moreira, flagrada em vídeo. Em entrevista no programa Encontro com Fátima Bernardes se desenvolveu uma história de pedido de desculpas pelo fato, de uma certa redenção da jovem. O que não levaram em conta foi a gravidade do que ela cometeu. Aranha ressalta que não foi apenas ela que cometeu o crime. “Isso é um erro [pensar que foi apenas Patrícia], porque foram várias pessoas”. Ou seja, foi um ato generalizado, não apenas localizado em uma pessoa ou outra.

Além de Patricia, Eder Braga, Fernando Ascal e Ricardo Rychter foram autuados. Só que ao invés de prisão, suas punições foram a de ter de apresentar-se a uma delegacia antes de cada jogo do Grêmio em Porto Alegre por 10 meses. Após isso o caso foi sendo esquecido na mídia. Marcelo Carvalho, diretor executivo no Observatório de Discriminação Racial no Futebol ressalta que falta suporte às vítimas. “Outro ponto importante que devemos levar em conta é a falta de apoio aos atletas que denunciam racismo, os clubes de futebol não apoiam os atletas que com medo de perder o emprego silenciam. Além disso não devemos esquecer que clubes, assim como os governantes, não querem o povo instruído”, afirma Marcelo.

O projeto produz o Relatório Anual da Discriminação Racial no Futebol, sendo o mais recente referente à 2015. Nele são explicitados 41 casos de racismo no esporte, sendo 35 no futebol. Aranha acredita que muito disso se deve pelo fato da normatização do racismo na sociedade. “A gente aprende a história do Brasil de maneira um tanto folclórica. É contado que todos nós, negros, descendemos de escravos e que por misericórdia da princesa Isabel [uma mulher branca], que assinou a lei áurea, ficamos livres. Não é essa a história real. Isso leva a uma ideia triste e equivocada de inferioridade por raça”. Ele complementa que “por isso é difícil de se posicionar, além do fato de faltar interesse no assunto”.

Mais conhecimento é o caminho

Shamell Stallworth, ala armador do Mogi das Cruzes/Helbor Basquete, é norte-americano. Lá, através do basquete conseguiu se formar em Psicologia pela faculdade de São Francisco. “Lá a gente tinha um monte de atividades para fazer na escola e o esporte era uma delas. Mas, para praticar precisávamos tirar notas altas. Eu não gostava muito de ficar em casa, então acabei me esforçando para praticar na escola”. Ele ainda ressalta, que assuntos de cunho político eram assunto não só dentro das aulas como nas conversas informais que eles tinham.

A melhoria do acesso a informação é uma das alternativas reais de mudança desse cenário. “Eu acho que o estudo, o acesso às informações certas podem trazer força e conhecimento para que mais negros possam se posicionar em relação a isso”, diz o goleiro. José Paulo Florenzano, professor doutor da PUC-SP, também vê a falta da formação escolar como um dos motivos para o não posicionamento. “Conforme assinala o sociólogo francês, Luc Boltanski, o ‘espírito crítico’, isto é, a postura mental necessária para lançar uma interrogação questionadora sobre todos os aspectos constitutivos da vida social, longe de ser uma disposição inata, constitui-se em uma disposição adquirida. Nesse sentido, a escola, em todos os níveis, desempenha um papel inestimável”, comenta Florenziano.

Ele ainda destaca a opinião de Sócrates, ex-jogador do Corinthians, médico formado e um dos líderes da democracia corintiana — movimento que lutou por maior voz dos jogadores dentro do clube. “Sócrates defendia o entrelaçamento, no Brasil, entre a formação esportiva e a formação escolar dos atletas”.

E, de fato, falta formação aos atletas no Brasil. De acordo com levantamento do site globoesporte.com, apenas 15 atletas entre todos inscritos na Série A do Campeonato Brasileiro tinham concluído, frequentado e desistido ou estavam cursando o ensino superior. No mesmo caso, em comparação aos Estados Unidos, se observa o cenário oposto. Na NBA, apenas 12 de todos os 264 jogadores norte-americanos da liga não fizeram ao menos 1 ano de universidade.

O que acontece no esporte se reflete em toda a sociedade — tanto brasileira quanto norte-americana. Segundo dados da ONU, 95% dos estadunidenses com 25 anos ou mais possuem educação secundária (o que a pessoa normalmente faz entre os 13–17 anos de idade), enquanto no Brasil esse número é de 53.6%. Em se tratando de ensino superior a situação é ainda mais discrepante, o número de matriculados em universidades em relação ao número de pessoas com idade esperada para cursar é de 94%. No Brasil esse número cai para 26%. E nesse ponto Marcelo destaca a importância do espaço universitário, lugar em “que muito se discute política e questões sociais”.

Florenzano, destaca, porém, que apesar da educação ter seu peso determinante, o aprendizado político acontece em diversas esferas diferentes, inclusive no futebol. Para isso ressalta a história da equipe da África do Sul, o Orlando Pirates. “Criado na década de trinta do século passado, na região posteriormente conhecida por Soweto, o time foi responsável por uma navegação social destinada a colocar em questão o regime de segregação racial na África do Sul, empreendendo uma ação cujo alcance transcendia os limites da esfera esportiva.”

A força midiática do esportista

Shamell Stallworth vê como positivo o posicionamento de atletas e estrelas da NBA, como Chris Paul, Lebron James e outros. “Quando personalidades multimilionárias e cheias de prestígio se posicionam eles são ouvidos. Isso pode servir para que eles sejam a voz de milhares outros que não conseguem notoriedade”. Ele ainda ressalta a importância de um presidente negro ter sido eleito para o debate do racismo nos Estados Unidos.

Quando o assunto é o Brasil, o atleta do Mogi das Cruzes não saberia dizer o porquê de não haver esse posicionamento. Ele dá um palpite que “o que é racismo aqui não é tão bem definido como nos Estados Unidos”, mas o jogador diz não ter conhecimento da cultura e história negra brasileira para opinar sobre isso.

O potencial midiático dos atletas pode ser outra variável para mudar esse cenário. Aranha acredita na força que eles têm para o debate “Temos poucas pessoas famosas com conhecimento e capacidade para falar sobre estes temas e seria muito importante que tivéssemos mais. Isso faria que o alcance do debate se tornasse maior e ganhasse mais força.”

Florenzano destacou o exemplo do peso de ações políticas e sociais por parte desses atletas, como foi Muhammad Ali. “A trajetória do boxeador explicitava o engajamento político de toda uma geração para a qual a luta não se resumia ao espaço exíguo do ringue, da quadra ou do campo, revestindo-se de um valor simbólico que extravasava a significação meramente esportiva.”

Marcelo Carvalho ressalta que a voz dos atletas poderia ter um direcionamento de combate ao racismo. “O atleta de futebol no Brasil tem um poder [midiático] que muitas vezes nem ele consegue mensurar, esse poder de influência é muito usado para a venda de produtos, mas infelizmente pouco usado para questões sociais”, opina ele.

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