Como Enes Kanter vem lutando contra o autoritarismo na Turquia

Heitor Facini
buzzerbeaterbr
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9 min readJun 20, 2017

Contrário ao governo do presidente Recep Tayyip Erdogan, o pivô vem sofrendo ameaças constantes a sua liberdade

O jogador do Oklahoma City Thunder vem sofrendo atentados gigantes a sua civilidade.

Enes Kanter vem tendo um ano muito conturbado. Dentro de quadra teve de lidar com a saída de Kevin Durant do Oklahoma City Thunder, a inconstância da equipe e a lesão na mão ao socar uma cadeira — que o fez perder boa parte da temporada. Fora dela, ele teve de se virar com os problemas que vem acontecendo no cenário político turco, seu país de origem.

No dia 20 de Maio, o pivô foi detido em um aeroporto romeno por conta de seu passaporte cancelado pelo governo Turco. A informação veio do próprio jogador. Ele acredita que o motivo seriam as diversas críticas feitas por Kanter ao atual presidente do país, Recep Tayyip Erdogan.

Kanter brincou com a situação de estar detido no aeroporto com a hashtag #FreeEnes (Liberem Enes)

A represália a Kanter não parou por aí. No dia 26 de Maio, informações do jornal “Daily Sabah” indicaram que o governo turco tinha emitido uma ordem de prisão contra o pivô do OKC. Segundo as informações, o governo turco acusa o jogador de fazer parte de uma organização terrorista. A razão por trás dessa desconfiança é o fato dele apoiar o líder religioso Muhammed Fethullah Gülen.

“Ei, Mundo! Meu pai foi preso pelo governo turco e pelo Hitler de nosso século. Ele provavelmente vai ser torturado como muitos outros”

Mais para frente, em 02 de Junho o pai de Kanter também foi preso. O jogador revelou em sua conta no Twitter com as seguintes palavras: “Ei, Mundo! Meu pai foi preso pelo governo turco e pelo Hitler de nosso século. Ele provavelmente vai ser torturado como muitos outros”. O mais curioso é que Mehmet Kanter, pai dele, é contrário às opiniões do filho e pró governo. Relatos do Washington Post e da agência de notícias turca Dogan News, Mehmet foi liberado da prisão. Segundo comunicado divulgado pelo jogador, o pai foi preso por conta das opiniões contrárias de Enes ao governo turco. “Se você olhar o que estão fazendo na Turquia, tudo o que querem fazer é para que eu pare de falar”, declarou em entrevista ao Washington Post.

A falta de respeito pelos direitos humanos no seu país natal é o que vem afetando Kanter. “A falta dessas liberdades é o que ocasionou a manifestação do jogador partidário da adoção de medidas mais liberais, respeito pelas práticas democráticas, o equilíbrio entre os poderes e eleições livres periódicas” comentou Maximiliano Martin Vicente, doutor em História Social pela USP e professor do departamento de Ciências Humanas da UNESP.

Além disso, Kanter também tem uma fundação, a “Enes Kanter Light Foundation”, que propaga os ideais de Gülen e de todos que os seguem. Segundo o jogador, esses ideais seriam de respeito aos direitos humanos, diálogos inter-religiosos e o desenvolvimento da educação.

“Se você olhar o que estão fazendo na Turquia, tudo o que querem fazer é para que eu pare de falar” — Enes Kanter

A Política Turca

Pelo menos no papel, a Turquia é uma república parlamentar. Ou seja, tem um presidente que fica com as funções de representar a Turquia perante ao mundo e de atuar na política internacional; e um primeiro ministro que exerce as funções executivas dentro da política interna. Hoje o primeiro ministro é Binali Yıldırım do Partido da Justiça e Desenvolvimento. O presidente, como já citado acima, é Recep Tayyip Erdogan.

Erdogan (á dir.) é o atual presidente da Turquia e perseguidor de Kanter. Yildrim (à esq.) é seu primeiro ministro.

Antes de ser presidente, Erdogan já participa da vida política turca há um bom tempo. Em 1994 foi eleito o prefeito da principal cidade do país, Istambul. Mas foi em 2003 que entrou diretamente em contato com o poder na nação, quando virou primeiro ministro. Desde lá, não saiu do topo da pirâmide política.

Erdogan, escândalos de corrupção: fim da democracia turca?

Entretanto, chegou o ano de 2013 e com ele a confusão que se instaura até hoje no governo turco. Em Julho ocorreram protestos feitos por ambientalistas contra a demolição do parque parque Taskim Gezi, em Istambul. Quando os manifestantes foram atacados pela polícia, se converteram pouco a pouco a protestos contra Erdogan e sua administração.

Turcos foram as ruas contra Erdogan.

Em dezembro, membros do executivo foram acusados de contrabando de ouro e suborno para adquirirem cargos públicos. Filhos de 3 ministros, figuras do setor financeiro e imobiliário foram presos. 4 ministros pediram demissão. Um deles, Erdogan Bayraktar do Meio Ambiente, declarou que Recep Tayyip Erdogan, na época primeiro ministro devia entregar seu cargo já que sabia de tudo.

Erdogan e Gülen: inimigos mortais

Isso tudo resultou em uma quebra muito grande por parte do governo: a falta de apoio de Muhammed Fethullah Gülen. Até esse ano ele era um dos maiores defensores de Erdogan e seu governo. Mas pelas denúncias, Gülen virou a maior oposição ao naquela época primeiro-ministro. E a quebra de relações foi bilateral, já que Erdogan acusou Gülen de ter feito as acusações contra seu governo.

Na década de 90, Erdogan e Gülen eram aliados.

Ele é um líder religioso, escritor e político. Segue uma linha moderada do Islamismo, aceitando alguns conceitos científico e dialogando com outras religiões. As acusações do atual presidente ainda incluem que Gülen teria criado um Estado paralelo com os seguidores da sua doutrina, o Hezmit. Assim teria influência no judiciário, na política e nas forças policiais. Ele vive nos Estados Unidos desde 1999.

As ideias de Gülen são a base tanto para a ideologia que Enes Kanter segue, quanto para a formação da sua fundação. A “organização terrorista” que ele faz parte é a dos seguidores da doutrina Hezmit. Mas porque ficou forte como organização terrorista?

A tentativa de golpe

A questão é que mesmo sendo extremamente impopular entre a população que estava revoltada com sua administração, Erdogan foi eleito presidente em 2014, saindo assim da função de primeiro-ministro, mas, ficando no governo.

Mas, a coisa ficou feia mesmo no ano passado. No dia 15 de Junho de 2016 os militares do país anunciaram que tinham assumido o poder em prol da ordem democrática. Depois de muitos confrontos nas ruas com a própria população, acabou que o golpe de estado não foi bem sucedido. Militares de altas patentes foram presos pelo governo.

A população foi as ruas protestar contra a tentativa de golpe contra o país.

No fim disso tudo, Erdogan acusou Gülen de estar por trás disso tudo. O líder religioso alegou que é extremamente contra qualquer intervenção militar na política e não tinha nenhuma relação com a tentativa de golpe militar. A partir disso, todos que fossem favoráveis aos pensamentos do líder religioso foram perdendo suas liberdades na Turquia.

“Nenhuma tolerância e compaixão será mostrada a quem apoia o grupo terrorista de Fethullah Gülen ou qualquer outro” declarou o presidente Erdogan no dia 18 de Julho. “Sem comprometer os princípios democráticos e as regras da lei, vamos combater todas as organizações terroristas que colocam o futuro da nossa nação em risco”.

“Nenhuma tolerância e compaixão será mostrada a quem apoia o grupo terrorista de Fethullah Gülen ou qualquer outro” — Recep Tayyip Erdogan, presidente turco

Por outro lado, Gülen se defendeu em entrevista ao The Guardian, dizendo que a tentativa de golpe foi orquestrada para incriminá-lo. “Quando ocorreram golpes na década de 90 eu acabei sofrendo com eles e fui incriminado. Eu não acredito que ninguém no mundo está dando crédito às declarações de Erdogan. Parece que tudo foi orquestrado para me incriminar”, declarou.

Maximiliano Martin Vicente, doutor em História Social pela USP e professor do departamento de Ciências Humanas da UNESP, acredita que faltam explicações para o caso. “O que aconteceu na Turquia tem a ver com uma tentativa de golpe muito mal explicada contra o governo de Erdogan. Esse motivo se transformou num álibi para que se suprimisse liberdades fundamentais pois se concentrou o poder no presidente e se minimizou o poder do Parlamento”, declarou. “O golpe, desde meu ponto de vista serviu para que Erdogan pudesse adotar um regime bem mais autoritário e centralizador, justamente o contrário que defende o líder religioso Gullen. Entre suas ideias destaca seu envolvimento na cultura da Paz e na defesa das liberdades individuais. A acusação de terrorismo não se sustenta desde nenhum ponto de vista, haja vista sua trajetória”, complementou.

“ Parece que tudo foi orquestrado para me incriminar” — Muhammed Fethullah Gülen.

Erdogan e o fim das liberdades individuais

Na verdade, a restrição das liberdades individuais não começou com o falho golpe militar. Ele estaria tentando calar a voz da oposição desde antes disso. No dia 5 de fevereiro de 2014, foi instaurada uma lei que dava ao governo do país controle sobre os conteúdos postados na rede de internet do país. Em março de 2016, o governo assumiu o controle do principal jornal do país, o Zaman, ligado a Gülen.

O Jornal Zaman, ligado a Gulen, foi tomado pelo governo turco.

Mas, sem dúvida após Julho de 2016 que a coisa começou a ficar feia de vez. De acordo dados do site Público.pt citando o Turkeypurge, até o momento foram: 34.610 funcionários públicos, professores e burocratas diversos demitidos, 95.458 pessoas detidas, 47.685 pessoas presas, 2.099 escolas, residências estudantis e universidades fechadas, 7.317 lugares académicos extintos, 4.272 juízes e procuradores demitidos, 149 meios de comunicação social encerrados e 162 jornalistas presos.

Kanter tenta correr para conseguir a dupla nacionalidade — turca e norte-americana. Ele tem medo do que eles podem acabar fazendo contra ele. “Eles podem me mandar para a Turquia e se eu for um dia para lá, no segundo vocês provavelmente não vão ouvir mais falar de mim”, disse em coletiva de imprensa sobre o temor de sumirem com ele.

Enes Kanter em coletiva de imprensa após ter tido seu passaporte retirado (Associated Press)

“Eles podem me mandar para a Turquia e se eu for um dia para lá, no segundo vocês provavelmente não vão ouvir mais falar de mim” — Enes Kanter

Mais poder para Edorgan?

Por fim, no dia 16 de abril deste ano, 2017, os poderes de Erdogan ficaram maiores ainda. Foi aprovado um referendo que extingue, a partir de 2019, o sistema parlamentarista no país e concentra toda a responsabilidade — e força — do governo nas mãos do presidente. O mandato vai ser de 5 anos com possibilidade de reeleição. Basicamente, Erdogan, que está no comando do país desde 2003, poderia ficar até 2029.

Mas, isso pode acabar trazendo problemas para o atual presidente. “ O referendo travou o processo de adesão à União Europeia. No fim, a decisão poderá acarretar problemas econômicos futuros por não usufruir das vantagens econômicas de pertencer a União europeia”, declarou Maximiliano Vicente.

Edorgan pode ao todo completar 26 anos no poder turco.

Mas, a situação é difícil de se resolver. “Por um lado, a União Europeia vê na Turquia uma espécie de barreira para impedir a chegada de imigrantes nos seus territórios, portanto, precisam dela. Assim, desde meu ponto de vista, a Europa vê o país como um mal necessário. A UE assim joga, com isso, um papel ridículo e altamente hipócrita. Reconhece o autoritarismo, mas o tolera a princípio”, complementou Maximiliano.

Por fim, Maximiliano Vicente conclui que a Turquia vai cada vez mais se afastando da democracia. “Os contrários ao regime estão sendo intimidados e correm sério risco de vida. Tudo isso pode convergir para uma situação insustentável que pode gerar ainda mais violência dentro do país”.

“ A UE assim joga, com isso, um papel ridículo e altamente hipócrita. Reconhece o autoritarismo, mas o tolera a princípio” — Maximiliano Vicente, professor da UNESP

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