A assustadora geração de pessoas descartáveis

Você consegue lidar com os seus problemas?

Augusto Assis
Cabine Literária

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por Augusto Assis

Não existe nada como a sensação de ter um livro favorito na vida. Um livro do qual você sente falta dos personagens e pensa “o que eles fariam?” ou “o que eles diriam?”. Pensando sobre o meu livro favorito e o nosso mundo de hoje, eu acho que eles morreriam de desgosto. E de vergonha.

Antes de mais nada, vamos pegar um pouco de contexto. Vou destrinchar um pouco a vida do peruano Ricardo Somocurcio (Ricardito), o personagem destaque do livro Travessuras da Menina Má — de destaque, mas não protagonista, visto que esse papel é ocupado por ela, que chamaremos por menina má, mesmo.

Ricardito a conhece na sua adolescência durante uma festa. Uma moça sensual e bastante carismática. Vejamos como ele lembra dela nessa época:

“Lily dançava num ritmo saboroso e cheio de graça, sorrindo e cantarolando a letra da canção, erguendo os braços, mostrando os joelhos e balançando a cintura e os ombros de tal maneira que todo o seu corpinho, modelado com tanta malícia e tantas curvas pelas saias e blusas que usava, parecia se encrespar, vibrar e participar do baile dos pés à cabeça. Quem dançava um mambo com ela sempre saía mal porque, como acompanhá-la sem se atrapalhar no turbilhão endiabrado daquelas pernas e pezinhos saltitantes?”

Lindo, né? O autor é o Mario Vargas Llosa, que é meu marido imaginário, inclusive. Obrigado, de nada.

Sem dar spoiler, vamos apresentar o enredo: Ricardito achava que Lily era uma chilena. Pelo menos é assim que ela se apresenta. Ele descobre que o nome dela, na verdade, não era Lily. E mais: ela não era chilena, mas sim uma peruana de uma família humilde. Ela desaparece e os dois acabam se reencontrando e se desencontrando diversas vezes durante a vida.

A mulher é o cão.

Ela mente para o Ricardito e para o resto do universo. Ela muda de identidade, de marido, de cidade. O romance é absurdamente bom. Entre momentos de amor e de ódio, a menina má leva o Ricardito (e o leitor) do céu ao inferno e vice-versa.

“E, com sua personalidade gélida, não hesitava em me procurar, convencida de que não havia dor, humilhação, que ela, com seu poder infinito sobre os meus sentimentos, não fosse capaz de apagar em dois minutos de conversa.”

Ela tira o cara da zona de conforto dele, das suas próprias ambições de vida, da sua paz de espírito, mas o amor dele passa por cima disso muitas vezes — chega até a ser irritante.

E você com isso?

A satisfação do cliente em primeiro lugar

Nossa sociedade é organizada para que tenhamos sempre a sensação de “felicidade”. A propaganda vende, junto com os produtos, uma lista de conceitos essenciais que não estão ali de verdade. “Sempre livre”, “Amo muito tudo isso”, “Abra a felicidade”, “Porque você vale muito”, “O tempeiro de amor”, “A vida com S é mais gostosa”, “Compre batom, seu filho merece batom” “C&A — O poder da moda”. Enfim, a felicidade foi empacotada.

A indústria tem uma solução perfeita para qualquer tipo de problema que você possa ter. Se você se sente sozinho, deprimido, impotente, cansado, provavelmente já existe uma oferta perfeita dentro da sua casa oferecendo felicidade, liberdade, poder, amor verdadeiro. Nos acostumamos tanto com esse modelo, que isso se estendeu por todos os aspectos da nossa curta existência.

Chegamos a um nível em que, se um relacionamento dá problemas, terminamos imediatamente. Se temos alguém em nosso círculo que nos fez mal, não somos capazes de superar ou perdoar. Se um aparelho quebrou, nós não consertamos, jogamos fora. Se o país está com problemas, não discutimos soluções, queremos trocar o presidente. (Esse assunto de política dá pano pra manga e vamos conversar a respeito no futuro, mas por mais descontente que você esteja — e com razão — , saiba que trocar por trocar não resolve nada).

A baita falha nisso tudo é que nós nunca dialogamos, pensamos, agimos em conjunto, cooperamos. Não que tudo possa ser salvo sempre, mas será possível que nada mais mereça a tentativa? A segunda chance está morta e enterrada. Se não está me trazendo benefício, eu me livro. É assim que parece ser.

O entretenimento cura nossa dor na alma. Os alimentos cheios de açúcar curam nosso cansaço e depressão. Os produtos light e cosméticos curam a nossa rejeição ao próprio corpo. Os comprimidos curam nosso medo de doenças. Os charlatões nos curam do nosso medo da morte.

Com tudo isso, nós continuamos doentes.

Meu pior momento

Perdemos a capacidade de lidar com sofrimento em todas as esferas da vida. Quando eu estava no ensino médio, eu achava que a minha definição de felicidade era ir para uma boa faculdade, depois arranjar um bom emprego. Estar seguro. Não ter entrado na instituição que eu queria foi um trauma gigantesco. Minha felicidade dependia de algo tão falso quanto os produtos lights, e na primeira oportunidade ela desmoronou. Isso foi tenebroso, porque eu descobri a frustração a nível existencial. Pra que eu existia?

Aos dezoito anos (dezoito!) eu já me via como a imagem do fracasso. Fora do ensino médio, sem uma carreira promissora, sem um emprego no qual eu pudesse crescer algum dia, sem uma faculdade que me dissesse “Estamos preparando seu futuro...”. Eu não era mais parte da fábrica: de diplomas ou de consumo.

Sem o apoio da família, que me via como uma perda de dezoito anos de dinheiro, tempo e disposição, eu fui me afundando num período esquisito e obscuro. Eu gastava meus dias comendo lanches e doces — “de amarga já basta a vida”, já ouviu isso? — , assistindo a qualquer coisa engraçada no YouTube que me deixasse mais feliz e passava quase todas as noites bebendo o que fosse, para ver se dormia melhor.

Eu comecei a engordar e por isso eu comecei a me sentir ainda pior. Porque eu não tinha que ser só um bom estudante e um bom funcionário: eu tinha que ser bonito. Ser bonito envolve ter um corpo de estátua grega, usar roupas da moda, frequentar lugares descolados e tecnologia de ponta. O iPhone é indispensável.

O limite dessa fase chegou com os problemas de saúde. Minha taxa de triglicerídeos estava tão alta que eu corria risco de contrair pancreatite (e pancreatite mata). Minha pressão tinha picos diários que os médicos avaliavam como “comuns a um hipertenso de 50 anos”.

Na minha própria frustração por não poder bancar nada disso — eu não estava na fábrica, lembra? — , percebi que eu estava encarando o que muita gente não tinha peito para encarar: a mim mesmo. Nu e simples como um indivíduo, e não como parte de uma instituição ou grupo social. Eu era só eu.

Tomei consciência de que tudo que eu estava fazendo era porque eu me sentia um lixo, ainda que eu não tivesse coragem de dizer isso em voz alta. Percebi que toda aquela tristeza não era uma coisa normal da vida, era algo que tinham colado em mim feito tatuagem, mas que, talvez, percebendo isso, eu poderia reverter.

Primeiro de tudo eu cuidei da saúde física. Ando muito bem, obrigado. Depois comecei a pensar e estudar para cuidar da saúde mental. Quis descobrir em mim mesmo o que valia a pena ou não. Isso é o coração de tudo. Sua vida está valendo a pena? Você está sendo realmente feliz? Ou será que precisa sempre se distrair com algo para não encarar a si mesmo? Existe uma razão para os livros de auto-ajuda estarem sempre no topo da lista de mais vendidos: solução rápida.

Somos todos Ricardito

Eu gosto tanto de Travessuras da Menina Má, porque o livro mostra uma história de amor não idealizada. Uma história de amor real tem problemas. Num romance de verdade você se decepciona, descobre defeitos da pessoa, descobre defeitos seus, mas, se algo é importante — seja um namoro, uma profissão, um curso ou a sua vida — , você precisa se esforçar.

A literatura, mais especificamente esse livro, me fez pensar que as relações humanas não são tão preto no branco como eu pensava ser. Entendi finalmente que as coisas não eram ou divinas ou um completo desperdício. Não importam os contras, é preciso ser obstinado e ter a garra que Ricardito tinha com sua Menina Má.

Não é simplesmente jogar fora, terminar, se demitir, trancar o curso, que vai fazer com que tudo fique bom. O mundo não é cor-de-rosa e está tudo bem em não ser. Amar o mundo exige não idealizá-lo também.

Remediar os problemas é uma delícia. Não sejamos hipócritas: ainda tomo remédios para dor de cabeça quando necessário (o que é muito raro, aliás), ainda bebo quando estou com meus amigos relaxando. Todavia, só remediar todo e qualquer obstáculo não é o caminho mais eficaz para se levar pela vida inteira.

Você tem o poder de pegar seus problemas pela raiz. É difícil. Dói. Provavelmente você vai perder muita coisa que parecia segura e eterna. Mas, com toda a sinceridade do mundo, vai valer a pena.

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Augusto Assis
Cabine Literária

o aquecimento global já está acontecendo. apenas alguém que, como humano, depositou toda sua fé em ajudar em um problema que parece sem saída.