As máquinas sobre o muro

Problemas podem te ajudar a escrever melhor. Escrever melhor pode te ajudar a resolver problemas.

Felipe Castilho
Cabine Literária
3 min readOct 8, 2015

--

por Felipe Castilho

Escrever deveria bastar.

Todos nós, aspirantes a alguma relevância artística (sendo que os relevantes também aspiram a algo mais, sempre), gostaríamos de viver daquilo que mais toma nosso tempo, mais nos desgasta, mais nos enlouquece, mais nos dá prazer, mais muda de bom para ruim dependendo de uma mínima mudança no prisma e na visão desse espectro de cores. Se algo nos detona, pisoteia, mastiga, cospe, joga fora… e depois consegue fazer com que ríamos, sorria:

Você está no caminho certo para morrer alcançando a sua tal relevância.

(Ou de repente você é só masoquista.)

Essa busca pela Imortalidade deve remeter à antiga busca pelo Valhalla, gravada em nossa memória coletiva através de milhares de anos de falhas, de buscas infrutíferas, de tentativas de darmos sentidos a nossas vidas curtas (e de lá, do além arco-íris, ninguém voltou pra falar se o tal Salão repleto de hidromel existe mesmo. Adianto que existe um bar em Porto Alegre que faz o melhor hidromel que já tomei, mas acho que eu não estava morto quando experimentei. Acho.)

Mas talvez, e só talvez, escrever seja algo mais seguro que entrar em berserk e perseguir inimigos de peito aberto. Ou talvez escrever seja algo tão mortífero quanto.

Você vê que eu não consigo afirmar ou negar nada com esse texto? Que ele é completamente em cima do muro?

É porque passamos nossa vida andando sobre ele, nos equilibrando, pé ante pé. Hora ou outra caímos para lá ou para cá, mas sempre procuramos andar nessa linha tênue onde podemos enxergar os dois lados que nos cercam (e não estou falando de opiniões que andam em cima do muro. Estou falando de nós, pessoas reais, que se machucam quando caem tanto de um lado quanto de outro. Gente de carne, osso e ferimentos que muitas vezes são abertos por causa de opiniões).

De cima do muro, enxergamos as nossas contas para pagar, e o fim de semana por vir. A esposa, namorada, companheira. O chefe, o cliente, o agiota. Vemos também uma boa quantidade de idiotas. Você enxerga todos, e distribui seus pontos de relevância para cada um conforme lhe aprouver, enquanto as engrenagens referentes à sua criação, a escrita, não param. Elas ficam operando em segundo plano, com uma bateria de longa duração. E sempre parecem querer dizer “você deveria estar escrevendo”.

E quando você está escrevendo, outras engrenagens continuam funcionando. “Você deveria estar se preocupando com as coisas da vida”.

O que eu proponho é a instalação de um terceiro conjunto de engrenagens, bem ali, em cima do muro que divide a sala de máquinas da Criação com a sala de máquinas das Coisas da Vida. Deixe esta funcionando também, o tempo todo.

Em Matrix (aquela história do Buda cyberpunk), nos momentos decisivos e nos momentos de maior perigo, Neo (o Keanu Reeves, que já foi Siddharta em outra encarnação cinematográfica) enxergava a realidade como ela é. Um punhado de cifras verde-esmeraldas, números, letras…

Abra seu editor de texto. Letras. Abra aquele boleto bancário em cima de sua mesa. Números. E tudo se resume à isso. Tudo é a mesma coisa. As engrenagens do muro são mais importantes que os lados dele.

Jogue os problemas e as preocupações em sua ficção (não todas. O leitor não é seu psicanalista) no seu editor de texto.

Sinta sua história um pouco mais palpável.

Sinta os seus ombros um pouco mais leves.

Nem que seja até o próximo turno de trabalho. Daqui a seis horas, inclusive. Vá dormir.

--

--