Baker Street ou Rua do Padeiro?

Sobre tradução de uma língua pra outra ou de outra língua pra uma

Carol Chiovatto
Cabine Literária

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por Carol Chiovatto

Hoje vou discutir um pouco sobre um tipo de escolhas que o tradutor é obrigado a fazer: a orientação da tradução para a língua de partida ou para a língua de chegada.

O pessoal da teoria da tradução chama de língua de partida ou de origem o idioma do texto a ser traduzido (que vamos chamar de “original”, mesmo que, em alguns casos, como no da tradução indireta, este não seja de fato a obra original. Mas isso é assunto para outra hora, pois dá muito pano pra manga). E chamam de língua de chegada ou língua-alvo o idioma do texto traduzido.

Um texto orientado para a língua de partida

tenderá a manter todo o livro no contexto cultural de origem, então haverá uma tendência a deixar nomes de lugares e pessoas como são no original, assim como o contexto geral.

Já um texto orientado para a língua de chegada

tenderá a traduzir tudo e, em alguns casos mais extremos, adaptar a realidade para a da língua de chegada (por exemplo, tirar a ambientação de Nova York e colocá-la em São Paulo). Esta última orientação já teve mais partidários e, claro, não é tão levada a ferro e a fogo. Ninguém faz mais isso hoje em dia e, se fizer, a obra constará como “adaptação”, no lugar de “tradução”.

Ano passado, fui à Semana do Tradutor na UNESP de São José do Rio Preto, e na mesa em que apresentei meu trabalho havia uma dupla de doutorandas da UFMG. Elas apresentavam comparações entre traduções e adaptações de livros infantis, algumas de muitos anos atrás, até décadas, outras mais recentes. O exemplo que me chamou mais a atenção foi uma antiga tradução de Clifford (o grande cão vermelho), hoje popularizado pelos desenhos do Discovery Kids e publicado pela Editora Cosac Naify. A tradução de que falo é de 1995, de Maria Clara Machado, publicada pela Ediouro. Para resumir a história, o título havia ficado Pacheco, o Cão Gigante.

Outro exemplo da orientação para a língua de chegada é o costume antigo de traduzir nomes de autores:

Júlio Verne, em vez de Jules Verne. Este é um dos que perdura até hoje, e pouca gente conhece o nome verdadeiro do autor. Mas antes era comum traduzir nomes. Também acontece com algumas personagens históricas, como reis. Conhecemos João sem Terra, Ricardo Coração de Leão, Guilherme, o Conquistador − e são todos ingleses.

Novas edições francesas de Júlio Verne: As Aventuras do Capitão Hatteras e 20 Mil Léguas Submarinas.

Claro que uma orientação cem por cento para a língua de partida também está distante do ideal (de acordo com alguns parâmetros que vou comentar em outra ocasião). Afinal, algumas coisas de fora da nossa cultura são difíceis de entender, ou ao menos confusas, como − para citar um exemplo trivial − endereços.

O endereço dos tios trouxas de Harry Potter é:

4 Privet Drive.

Assim mesmo. Um leitor que não soubesse inglês, ou que soubesse, mas não entendesse o sistema de endereçamento na Inglaterra, poderia ter dificuldades de compreender do que se trata, algo que não acontece com o leitor da obra original. Agora, todos sabemos o que é Rua dos Alfeneiros, nº 4. Fictício ou não, isso é um endereço, sem tirar nem pôr.

As linhas editoriais têm preferido mesclar as duas orientações, em maior ou menor grau, dependendo do público-alvo do livro. Por exemplo: qual é o endereço de Sherlock Holmes?

221B Baker Street.

A maior parte das traduções atuais usa Baker Street, 221B, ou 221B da Baker Street, o que já é uma mistura. Já até vi Rua Baker, 221B, mas nunca, nunca mesmo Rua do Padeiro, 221B.

Ah, a que se deve essa mistura?

Com certeza, a muita coisa, como tudo. A Baker Street existe, e nos remete a Londres. Com o mundo cada vez menor, por causa da famigerada globalização, tendemos a levar em conta que as pessoas esperem ver endereços em inglês num livro que se passa em Londres.

É claro que isso varia. Em livros infantis, existe uma tendência maior a adaptar nomes de lugares e pessoas, e o motivo de adaptar ou não é escolha do tradutor − mas nem por isso, vejam bem, é arbitrário.

Temos o exemplo de Harry Potter e Lilá Brown. Por que Lia Wyler traduziu Lavender (nome de Lilá no original) e não Harry? É possível que seja porque Harry é um nome mais comum para um brasileiro do que Lavender? Só perguntando para ela (aliás, ela disse em uma entrevista que tinha a ver com o fato de Harry ser protagonista, e o livro seria conhecido no mundo todo etc etc. E veja bem: fico chateada quando falam mal de tradutor, então peço que evite julgar um antes de conversar com ele sobre o que o levou a fazer esta opção e não aquela. É muito difícil fazer opções e conviver com elas, e a Lia é uma tradutora genial, idolatrável até).

Bem, eu poderia citar exemplos até 2020, mas acho que já deu pra entender. Siga o Cabine Literária e o meu perfil no Medium para não perderem meus próximos textos sobre tradução literária.

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Carol Chiovatto
Cabine Literária

Tradutora e escritora. Mestra e doutoranda em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês na Universidade de São Paulo, estudiosa de gênero e estereotipagem.