Clarice Lispector quebra barraco

Sobre como recuperar a capacidade de ser gentil

Augusto Assis
Cabine Literária

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por Augusto Assis

Você já pensou em como nós, a humanidade, temos um talento natural para o barraco? É quase um indicador de evolução. Imagino cientistas falando “Nós temos o telencéfalo altamente desenvolvido, polegar opositor e uma capacidade de causar que não perde pra ninguém.”

Temos também um grande arsenal quando se trata de meios de comunicação. Telefone, carta, e-mail, Skype, Messenger, WhatsApp, Hangout, FaceTime, entre outros. As opções são infinitas, e sites como o Facebook acabam funcionando também como um fórum. Lá, uma pessoa pode iniciar ou participar de uma discussão, e seus amigos podem responder em comentários. O problema em tudo isso é que nós aparentemente não sabemos discutir.

É como se estivéssemos com frio e perdidos numa mata, cercados de gravetos, mas não soubéssemos como fazer fogo a partir deles.

Na época do Iluminismo, os intelectuais de diversas áreas se encontravam em cafés para discutir ideias. Agora, não precisamos sair de casa. Todos esses meios permitem que qualquer pessoa com acesso à internet mantenha contato com seus amigos ou desconhecidos o dia inteiro, todos os dias.

Esse (incrível) mar de possibilidades, no entanto, parece estar saindo como um tiro no pé. Criou-se uma confusão entre “poder falar” e “saber falar”. Todo mundo virou dono de sua própria verdade. Esses dias, eu estava olhando as novidades no meu Facebook até que me deparei com a imagem abaixo:

Num primeiro momento, eu achei graça.

Principalmente da jovem no canto, toda trabalhada na tristeza e carregando um coraçãozinho desenhado no papel. Depois de alguns instantes olhando para o círculo eu me dei conta de algo terrível: a mocinha era eu.

Lembrando de todas as discussões que eu tinha visto ou participado nos últimos tempos, eu me toquei de que nenhuma delas tinha levado a conclusão alguma. Salvo casos que levaram algum babaca a ser bloqueado. O que também não resolveu a questão.

Eu faço parte do grupo de pessoas que tenta trazer alguma luz aos dois lados. Sempre fui a favor do “Discussão sim, treta não”. No entanto, eu não acho que a maioria esteja comigo. Da redução da maioridade penal à clonagem humana, as conversas sempre acabam com “Você é um burro!”, “Você que é!” e ofensas a todos os familiares do indivíduo — que, por acaso, nem estavam na discussão.

Isso quando a própria publicação não era ofensiva a algum grupo (seja de gênero, sexualidade, etnia, origem ou religião) previamente. Nos comentários, memes de toda sorte gritando como alunos de quinta série: “Briga! Briga! Briga!”, “Só vim pra ver a treta!” etc. Não estou dizendo que eu quero que a internet vire um lugar sagrado e politicamente correto, onde as pessoas não tenham sua liberdade garantida, inclusive para ser estúpidas. Mas ninguém quer usar essa liberdade para ter boas discussões?

A grosseria e o sarcasmo se tornaram o campo de defesa daqueles que tapam os ouvidos para qualquer ponto de vista diferente do seu próprio ou qualquer tema que desafie seus princípios. Você não concorda comigo, então eu vou te rebaixar, te humilhar na frente de quem quer que seja. Como ousa desafiar o dono da verdade?

Esse comportamento deturpa a internet.

Ao invés de ser um espaço de discussão que propicie o desenvolvimento como indivíduo, ela reforça ideologias ignorantes. Como por exemplo, os de que menina que usa roupa curta merece ser abusada, de que gays devem se esconder em seus “armários” e que bandido bom é bandido morto. Como se os comentaristas de plantão fossem os juízes sobre quem merece ou não ser tratado como gente.

Precisamos de Clarice

No meio desse barraco onde todo mundo grita e ninguém ouve o outro, eu lembrei de Clarice Lispector. De longe, a escritora mais intimista com a qual eu já entrei em contato. Clarice sentia tudo: a solidão de um ponto, o angúsita de uma minhoca prestes a ser devorada, o desespero de um bandido morto por treze tiros.

Ler Clarice é sempre uma experiência que vai muito além da leitura. Pelo menos eu, fico dias e dias pensando em tudo que ela disse. Vejo suas narrativas no meu dia a dia, na fala de algum conhecido, num gesto do meu pai. A graça da escritora é justamente isso: entender a si mesmo e, fazendo isso, entender o outro. Porque, na verdade, também somos o outro, no ponto de vista do coleguinha.

Clarice Lispector e o trem

Andar de trem constitui uma experiência 1) demorada 2) provavelmente desconfortável 3)estressante. Não adianta ter pegado metrô, eles são muito mais rápidos e têm ar-condicionado. Trem não.

Bem, de vez em quando, eu pego trem às seis da tarde. Esse é o horário em que aquela máquina do mal está mais lotada com estudantes e trabalhadores que estão voltando para casa. O que eu vejo é um montão de gente cansada, suada, praticamente dormindo em pé. Todo mundo espremido uns contra os outros, tentando se equilibrar. E, ainda assim, mesmo depois de um dia que não foi exatamente como um spa, essas pessoas têm a gentileza de pedir desculpa veementemente caso esbarrem com mais força em alguém do lado; dão lugar para idosos (e não só os assentos preferenciais, que são deles por direito); têm o bom humor de dizer “Opa, pisei no seu pé moça?”, sabendo que, na verdade, não há mais onde pisar.

Cadê essas pessoas na minha geração?

A internet ainda é território predominantemente jovem. Essas pessoas que ficam em casa enquanto seus pais estão enfrentando esse mesmo trem, são grossas, estúpidas e, não se esqueça, donas da verdade. Elas têm nas mãos o poder de discutir temas que afetam a vida de todo mundo e fazer algo gigantesco como as passeatas de junho de 2013. No entanto, tudo isso está perdido entre um berro/caps lock e outro.

Será que o problema é justamente essa falta de olhar no olho? De se sentir tão próximo que não haja maneira de desumanizar o alvo da grosseria?

Precisamos lembrar a eles de pessoas do jeito Clarice de ver o mundo. Lembrar da sensibilidade que, de fato, enxerga o outro e não o julga ou perde as estribeiras. Nós podemos ser muito mais do que isso. Estamos todos obrigatoriamente juntos nesse negócio aleatório e difícil que chamam de vida. Precisamos recuperar nossa capacidade de sermos gentis.

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Augusto Assis
Cabine Literária

o aquecimento global já está acontecendo. apenas alguém que, como humano, depositou toda sua fé em ajudar em um problema que parece sem saída.