A pontuação segundo Cormac McCarthy

Alexandre Rodrigues
Cabine Literária
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4 min readApr 11, 2017

Cormac McCarthy recusa aparições a ponto de uma ex-mulher narrar que o casal, sem dinheiro, passava fome nos anos 70 enquanto ele recusava os convites para eventos literários. Em 2008, contudo, o autor de “Meridiano de Sangue”, “A Estrada”, “Onde os velhos não têm vez” e outros ótimos romances rompeu a reclusão para uma entrevista à apresentadora Oprah Winfrey. Continua como único registro da confissão de suas duas grandes influências na maneira de usar a pontuação: William Faulkner e MacKinlay Kantor, autor hoje esquecido, mas que foi o ganhador do Pulitzer em sua época.

Não li MacKinlay, mas Faulkner, assim como McCarthy, gostava das frases curtas. Há outras características: os pronomes que surgem quase do nada, o vocabulário obscuro, cheio de palavras inventadas e uma prosa densa, repleta de figuras de linguagem elaboradas. McCarthy, como Faulkner, é ambíguo e gosta de reter informações, que não fornece ao leitor. Muitas vezes tempo e espaço ficam indefinidos e ambos os escritores são usuários recorrentes de flashbacks.

Quando à pontução, ele destacou três (desculpe) pontos:

1. Aspas.

Não usa. Os diálogos são diretos, sem marcações. Por mais que isso possa incomodar a leitura e contrariar aquilo que se ensina nas oficinas de escrita, é claro que com ele funciona. Escrever o diálogo desse jeito, McCarthy salienta, exige o compromisso de ser claro para não deixar o leitor perdido: “Você realmente tem que estar ciente de que não há aspas e escrever de forma a orientar as pessoas quanto a quem está falando”. Se fracassar nisso, o leitor se perde e a confusão começa a competir com a narrativa.

Um exemplo disso logo no comecinho de “Meridiano de Sangue”.

Amigos, disse o reverendo, ele não conseguia ficar de fora desses antros do inferno, antros do inferno bem aqui em Nacogdoches. Eu disse a ele, disse: Vai levar o filho de Deus ali dentro com você? E ele disse: Oh, não. Não, não vou. E eu disse: Não sabe que ele disse eu vou seguir você por todo o sempre até o fim da jornada?
Bem, ele disse, não pedi a ninguém pra ir aonde quer que seja. E eu disse: Amigo, não precisa pedir. Ele vai acompanhar você em cada passo do caminho, querendo ou não. Eu disse: Amigo, não pode se livrar dele. Ora. Vai arrastá-lo a ele, a ele, àquele antro do inferno ali?
Já viu um lugar onde chove desse jeito?
O kid observava o reverendo. Virou para o homem que falava. Usava longos bigodes à moda dos tropeiros e portava um chapéu de abas largas com uma copa baixa e redonda. Era levemente estrábico e observava o kid gravemente, como que ansioso por saber sua opinião sobre a chuva.
Acabei de chegar, disse o kid.
Bom, nunca vi nada igual.

2. Dois pontos e ponto e vírgula:

“Você pode usar dois pontos se está se preparando para dar uma lista de algo que se segue ao que acabou de dizer”. Usar dois pontos exige uma situação muito específica: enumerar algo, fazer uma lista, etc. McCarthy considera desnecessários os outros usos.

No entanto, não é bem assim. Não há, por exemplo, nenhuma lista em “Meridiano de Sangue” e em “A Estrada”, os dois pontos, mais do que produzir listas, têm um único uso frequente: introduzir falas dos personagens.

Reza mais alto, gritaram alguns, e prostrando-se de joelhos ele gritou em meio aos trovões e à ventania: Senhor estamos secos como charque por aqui. Só umas gotas para os rapazes aqui na pradaria e tão longe de casa.

(Meridiano de Sangue)

Eles se foram e eu fiquei, eles levaram consigo o mundo. Pergunta: Como faz aquilo que nunca será para ser diferente daquilo que nunca foi?

(…)

O menino não respondeu. Em seguida ele disse: O lugar de dar corda não estava funcionando.

(A Estrada)

Quanto ao ponto e vírgula? “Zero ponto e vírgula”.

3. Simplicidade.

“Eu acredito em pontos, em dois pontos, na vírgula ocasional e é isso”. Na faculdade, ele se exercitava simplificando ensaios do século XVIII, retirando pontos e vírgulas. Gostava do estilo dos autores, mas achava-os, como muitos do começo do inglês moderno, travados demais pelo excesso de ponturação. Estimulado por um professor, seguiu fazendo aquilo nas traduções e mais tarde na própria escrita “ para tornar mais fácil, para não tornar mais difícil”.

De fato, eis trechos tipicamente mccarthianos:

A cachoeira caía no poço quase no centro. Um coágulo cinzento a circundava. Ficaram lado a lado chamando um ao outro sobre o ruído.

(…)

Ele abriu o zíper da parca, deixou-a cair sobre o cascalho e o menino se pôs de pé e eles se despiram e caminharam até a água. De uma palidez fantasmagórica e tremendo. O menino tão magro que ele sentiu um aperto no coração. Mergulhou de cabeça e reapareceu arquejando e se virou e ficou parado, batendo os braços.

(A Estrada)

Curto, duro e seco, o que não impede cada passagem de estar cheias de significados e sentimentos que precisam ser escavados até alcançados.

** Publicado primeiro em Fetiche Idílico.

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Alexandre Rodrigues
Cabine Literária

Autor de “Veja se você responde essa pergunta” e “Aquilae non gerunt columbas” e de 11 contos publicados em bielorrusso.