Dá pra medir a fidelidade de uma tradução?

Sobre o momento em que o tradutor fica quase satisfeito com seu trabalho

Carol Chiovatto
Cabine Literária

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por Carol Chiovatto

Apesar do título, não pretendo fingir que existe uma resposta universal e bem aceita para essa pergunta.

MAS há um modo, teorizado por Henri Meschonnic, de verificar a tradução de termos chamados “marcados” e “não marcados”, que pode ajudar a medir algo aparentemente tão subjetivo quanto a fidelidade de uma tradução ao seu original.

Explicando de maneira simplificada, o termo “marcado” é aquele que salta no texto, que você registra durante a leitura por trazer algum efeito específico, como traço cultural, social, regional etc. Por exemplo, uma expressão de gueto em um texto que usa outro registro, ou ainda, gírias, palavrões, algo escrito de modo a imitar sotaques ou falas de crianças, e por aí vai.

O termo "não marcado", a grosso modo, é aquele pelo qual o leitor passa batido, reparando mais no conteúdo do que nas palavras.

Em uma frase como Life has no meaning (“A vida não tem sentido”, em tradução livre), podemos dizer, com relativa segurança, que temos termos não marcados. Agora em Quidditch through the Ages (“Quadribol através dos Séculos”, tradução de Lia Wyler), o nome do jogo é um termo marcado. É uma palavra que, em algum momento, causou algum tipo de confusão no leitor da obra original, por se tratar de um neologismo.

Pausa para explicar que gosto de dar exemplos de Harry Potter porque amo Harry Potter

O chamado “Princípio de Meschonnic” é a sugestão, dada por esse teórico e crítico da tradução, de que se deve traduzir termos marcados por termos marcados, e termos não marcados por não marcados. Ou seja, algo que causa certa confusão ou dificuldade de compreensão no leitor da obra original necessariamente deverá causar o mesmo no leitor da tradução. Assim, Lia Wyler traduziu o neologismo quidditch por outro neologismo: quadribol. Ela não chamou de “beisebol de vassouras” ou qualquer outra coisa.

Outro caso: se um autor tacou um baita palavrão no texto dele, a tradução vai colocar um também, de força equivalente (ao contrário do que as regras de etiqueta politicamente corretas do Brasil impõem aos nossos tradutores de dublagem e legendagem). Se o autor do original disse “What the fuck it that?”, você vai de, pelo menos, “Que porra é essa?”, e não de “que merda é essa?” ou “que coisa é essa?”. O palavrão tem certo impacto no original, trazendo certo efeito de sentido e, para trazer fidelidade, a tradução precisa recriar o mesmo efeito.

Por isso, se uma palavra no texto remete a algo no imaginário do leitor do original, o mais recomendado é que se traduza tal palavra para algo que remeta a algum coisa similar no universo do leitor da tradução. E, ao contrário, se uma palavra causa total estranhamento a um leitor da obra original, ela também deverá causar estranhamento ao leitor da obra traduzida. Daí que, em muitos casos, não se traduz neologismos. Eu não traduzi os nomes dos povos de Oz nas minhas traduções: ficaram Munchkins, Quadlings, Gillinkins e Winkies.

Para exemplificar, falarei sobre um caso de tradução minha, em A Maravilhosa Terra de Oz, relativo ao nome de uma personagem. Já escrevi sobre isso em um artigo acadêmico para uma revista de tradução, mas vou explicar aqui. O nome Woggle Bug foi um dos desafios mais emblemáticos que já enfrentei, relativos a esse tipo de situação.

Bug é um termo que precisava de tradução, uma vez que remete a algo no imaginário dos nativos de língua inglesa, por designar criaturas que existem tanto na cultura de partida quanto na de chegada. Woggle, por outro lado, é uma palavra um pouco estranha mesmo ao leitor de língua inglesa. Bug foi traduzido como “besouro”, pois, mesmo não sendo esta a acepção exata, bug é um termo genérico que pode englobar “besouro”, um animal que parece aquele descrito ao introduzir-se a personagem. Um bug pode ser um verme, uma bactéria, um inseto, um vírus etc., e seu uso se assemelharia, em dada medida, ao da palavra “bichinho” em português. Já woggle apresentou um desafio um pouco mais complicado, pois sua única acepção dicionarizada seria um tipo de nó, cuja primeira aparição na língua, segundo o dicionário Oxford online, foi em meados de 1930 (consta origem desconhecida), portanto, depois que as obras já haviam sido escritas. Por isso, busquei entrevistas e comentários de L. Frank Baum, na tentativa de compreender a lógica da composição do nome.

É comum contar-se a anedota de que Baum optou por Woggle Bug pensando na sonoridade e que ele gostou do fato de não haver significado para esse nome, gostou do som e decidiu usá-lo como nome de uma personagem. Tal informação é um norte, criando a possibilidade de ponderar sobre a tradução do nome pelo aspecto sonoro e ausência de significado também na língua de chegada. Partiu-se, pois, da aliteração e da repetição de sons arredondados (o som do “o” seguido de “u” em ditongo − pois a leitura de woggle é mais ou menos uógol). Como a aliteração da letra “g” não seria mais possível, já que “besouro” não possui o mesmo som similar, optei por deslocar a aliteração para /z/, aproveitando que em “besouro” também há um ditongo em vogais fechadas, de modo a manter próximo à sonoridade original o máximo possível. Com isso, chegou-se a “Zógol”. O nome da personagem Woggle Bug, em português, ficou Zógol Besouro.

Chegar a esse nome foi um momento feliz, pois é raro um tradutor ficar quase satisfeito com suas traduções.

Da mesma forma, houve casos de palavrões, ofensas graves, que traduzi ao pé da letra. Trata-se de uma passagem no conto Bent Twig (Galho Envergado, de Joe Lansdale, publicado na coletânea O Príncipe de Westeros e Outras Histórias, organizada por George R. R Martin e Gardner Dozois.

Na cena em questão, a personagem Leonard arromba uma porta para salvar o amigo Hap da mão de bandidos. Os dois são meio detetives particulares “da pesada”. Ele entra dizendo: “Queer, roughhouse nigger, coming through”.

Os três termos iniciais são, em algum nível, pejorativos, mas a personagem é gay e negra, e usa estes termos para se descrever antes de dar uma senhora surra nos bandidos. Queer tem sido usado para se referir a homossexuais dos dois sexos, mas não temos equivalente em português, a não ser a mesma palavra, só que usada em contextos diferentes.

Há grupos que se identificam como queers, que tomaram a suposta ofensa e a transformaram em bandeira de luta por direitos. Não era o caso aqui, por isso usei “veado”. Perdi a acepção dos dois sexos, mas mantive a ideia pejorativa (usada como escudo e motivo de orgulho à la Tyrion Lannister), que era o foco.

Depois, roughhouse, segundo consta nos Oxford Dictionaries, é do registro informal, e, enquanto verbo, é “agir de forma violenta” ou “lidar com algo ou alguém de maneira violenta”. E, enquanto substantivo, é uma “perturbação violenta”.

É algo difícil de traduzir, até porque, na frase, a palavra aparece como adjetivo. Então escolhi “maloqueiro”. E aí veio nigger, que é a forma de se referir a pessoas negras quando se pretende ofendê-las (ou que alguns negros utilizam entre si, em situações jocosas, entre amigos etc.).

Em português temos um equivalente que dá conta de tudo isso: “preto”. E minha tradução ficou: “Preto veado e maloqueiro chegando no pedaço”. Usei “chegando no pedaço” para coming through porque esse phrasal verb tem três acepções, e nenhuma delas é diretamente entrar em algum lugar (de qualquer modo que seja), embora seja disso que ele está falando. Ou seja, ele também usou a expressão num registro informal.

O tradutor deveria censurar o palavrão? Diminuir a ofensa? Bem, o trabalho do tradutor é dizer o que o autor do original disse, só que na língua-alvo, e não julgar o que o autor fez ou deixou de fazer.

O Princípio de Meschonnic é um bom parâmetro para ajudar a medir a fidelidade da tradução literária ao original.

Se você quiser saber mais sobre isso, o professor e tradutor Paulo Henriques Britto explica isso de uma forma bem didática neste livro, e aqui é o livro do próprio Meschonnic.

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Carol Chiovatto
Cabine Literária

Tradutora e escritora. Mestra e doutoranda em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês na Universidade de São Paulo, estudiosa de gênero e estereotipagem.