Domingos

João Carlos Dalmagro Jr.
Cabine Literária
Published in
3 min readNov 28, 2016

Os domingos são dias preguiçosos e cheios de angústia: trazem consigo os últimos estertores do final de semana e a sentença triste de que mais uma segunda-feira se anuncia à sombra de problemas insolúveis.

Há nesses dias um langor e uma pastosidade irremediáveis, como se as horas se arrastassem pelo simples prazer de nos fazer provar o gosto indigesto da imortalidade.

Durmo muito mal e sei que a semana começará desfalcada e claudicante. Procuro sempre extenuar minhas energias acordando cedo, resistindo ao sono da tarde, correndo pelos parques e deitando na companhia de um livro. Nem sempre funciona.

Há domingos que fazem amargas revelações e que abalam as convicções quanto ao nosso lugar no mundo. Como o último desses dias traiçoeiros.

Havíamos deitado cedo, com a televisão ligada e o ar condicionado baixando a temperatura do quarto a duras penas.

Continuei a leitura de um romance que narrava a vida de um homem de sessenta anos que precisava readaptar-se ao mundo depois de sofrer um acidente e ter amputada a perna direita. Homem lento, do sul-africano J. M. Coetzee. Ótimo romance. Recomendo.

Antes tínhamos deixado a janela do quarto aberta, mas ela fora fechada assim que ligamos o climatizador. Fechamos também as persianas e as cortinas.

Já deitado, vivenciando as agruras do personagem amputado, percebi que uma mariposa havia entrado no quarto e que o nosso gato a perseguia com extrema e dedicada paciência. Logo os dois desapareceram rumo ao corredor que levava à cozinha.

Fiquei preocupado. E se, ao dormirmos, ele conseguisse caçar a borboleta? Gatos fazem isso. Ele a engoliria? Morreria por causa disso?

Já me imaginava telefonando, madrugada adentro, para o médico veterinário, que nos orientaria a levar o bichano às pressas para a clínica. Procedimentos seriam tomados para salvar a sua vida, mas sem garantias.

Aquela preocupação me afastou da leitura e, sem saber por que, me fez decidir que deveria dormir de imediato.

Ainda relutei em largar o livro. Insisti em mais alguns parágrafos. Não adiantou.

Ao desligar a luz percebi que a mariposa havia voltado e estava escondida dentro do abajur. Quando aproximei a mão ela caiu sobre o livro que eu havia colocado em cima do criado-mudo. Suas asas estavam rasgadas e ela se debatia em breves espasmos. Estava ferida. Estava morrendo.

Fui ao banheiro. Enrolei um maço de papel higiênico na mão direita. Peguei a borboleta com suavidade, sem esmaga-la. Ela sumiu na maciez branca do papel.

Joguei tudo no vaso sanitário e dei a descarga. Voltei ao quarto e o gato, que havia surgido de algum outro cômodo, dormia na cama.

Fui à cozinha, coloquei no fogo a chaleira com água para o mate. Abri a janela e pensei que ser Deus era, no fundo, uma maneira de fazer o que deve ser feito sem considerações ou julgamentos. Ser Deus era sacrificar uma vida para que outra pudesse continuar seu caminho de desamparo.

Mas eu era humano e não gostava de domingos, nem de segundas-feiras.

Desliguei o fogão e voltei para o quarto. De uma forma ou de outra, ia demorar para pegar no sono.

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