Duas vezes Clint

André Timm
Cabine Literária
Published in
4 min readMay 4, 2017

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Em frente ao espelho, Timothy treina falas clássicas de Harry Callahan. Aperta os olhos, ajeita o paletó e se encara. Só pra entrar no clima, no papel. Não que precise, mas é que Timothy acredita que o fato de ele se tornar Clint durante as cenas traz alguma veracidade ao trabalho.

A mulher de Timothy esmurra a porta do banheiro. Grita que ele precisa levar as crianças à escola, passar no supermercado e na lavanderia. Timothy diz que já vai. Faz de conta que saca uma pistola do coldre, mira o próprio reflexo, atira e pergunta: “Está se sentindo com sorte hoje, marginal?”

Há quase vinte anos Timothy é o dublê oficial de Clint Eastwood. Se fosse por Clint, ele mesmo faria as cenas. Mas depois que os estúdios perceberem o tamanho do prejuízo se ele morresse ou se ferisse, começaram a incluir uma cláusula em seus contratos que torna obrigatório o uso de um dublê em cenas mais arriscadas. Então, carro rolando despenhadeiro abaixo? Timothy. Perseguição policial pelas ruas de São Francisco com explosões e capotagem no final? Timothy. Cavalo selvagem galopando furiosamente? Timothy.

Timothy realmente se parece com Clint, embora nas cenas de ação costume se levar em conta mais o porte físico e o cabelo, pois o dublê geralmente aparece de costas ou de longe. O resto se resolve com figurino e truques de câmera. No entanto, o fato de haver uma certa semelhança sempre acaba ajudando, já que permite que o diretor faça tomadas mais próximas e, portanto, mais reais. É o caso de Timothy. Tanto que, se passando por Clint na saída do estúdio, Timothy já deu até autógrafo, só de brincadeira, só pra entrar no papel. Não que precise, mas é que Timothy acredita que o fato dele se tornar Clint traz alguma veracidade para o trabalho.

Timothy apressa as crianças, pega lanches, mochilas. Ao embarcarem no carro, uma mão espalmada bate três vezes na janela. Timothy baixa o vidro. É o vizinho, com o indicador apontado para Timothy, gritando que seu cachorro revirou todo o lixo de novo. Timothy pede desculpas, diz que Magnum anda meio agitado ultimamente. O vizinho diz que a próxima vez que o cachorro revirar o lixo vai ser a última. O caçula de Timothy chora. A irmã pergunta ao pai se o vizinho vai fazer alguma coisa com Magnum. Timothy diz que não e fica pensando o que Mr. Eastwood faria em seu lugar. Ele sempre chama Clint de Mr. Eastwood.

Hoje é dia de gravação. Timothy chega algumas horas antes da cena para a preparação. Clint precisará saltar de um edifício para o outro durante uma perseguição a um criminoso. Na hora do salto é Timothy quem pula. Ele chega e Clint o cumprimenta. Timothy acha que o aperto de mão de Clint é firme na medida certa. Não muito suave, nem forte demais a ponto a soar intimidador diante de alguém amigável.

Timothy estuda o local do salto com a equipe de produção. Faz medições, marcações. Define o ponto onde precisará correr mais velozmente, onde irá apoiar o pé para o salto. Todo o local fica preparado para a cena. Antes, Clint precisa cumprir um compromisso de agenda. Um pequeno grupo de vencedores de uma promoção irá conhecer o set de filmagem e Clint precisa dar um olá, tirar fotos e dar autógrafos.

Quando Clint chega, o pequeno grupo se excita. Todos o cumprimentam, alguns tiram fotos, outros trazem pôsteres de seus filmes para autografar. Um dos integrantes do grupo, um homem de jaqueta de couro, está mais distante. Não traz pôsteres, não tira fotos e nem mesmo parece compartilhar da excitação do restante dos fãs. Timothy acha estranho o homem não se aproximar. Olha para o segurança. O segurança aponta a direção de um lugar qualquer para uma mulher que pede informações. Ela segue na direção indicada e passa perto do homem de jaqueta de couro. Ele parece tenso, olha demais para os lados. Olha para Clint, que sem demonstrar, percebe. Clint puxa a caneta para assinar um pôster. O estranho põe a mão no bolso. Clint aperta a parte superior da caneta para abaixar a ponta retrátil. O homem puxa uma quarenta e cinco de dentro da jaqueta. Timothy corre em direção a Clint empurrando alguns fãs para abrir caminho. Sua intenção é tirar Mr. Eastwood dali antes que o sujeito atire ou, na pior das hipóteses, se colocar exatamente entre Clint e a trajetória da bala. As pessoas correm, gritam, o pequeno grupo se dispersa. Timothy alcança Mr. Eastwood, o homem tensiona o indicador para puxar o gatilho, mas antes que atire, Clint agarra Timothy pelo casaco iniciando um movimento rotatório que faz com que ambos se joguem para trás de um carro cenográfico próximo a eles. O homem ainda tem tempo de disparar um segundo tiro que acerta a janela do carro antes que o segurança atire contra ele. É abatido. Depois da breve comoção, com todos já seguros, Clint verifica se Timothy está bem, o ajuda a levantar e enquanto ajeita a própria roupa e espalma a sujeira da camiseta, todos aplaudem. Timothy, ofegante, agradece a Mr. Eastwood e aplaude junto.

No manhã seguinte, Timothy sorri orgulhoso para a manchete que estampa o jornal na soleira de sua porta. “Clint Eastwood salva o próprio dublê da morte”. Magnum revira o lixo do vizinho. Timothy sorri orgulhoso outra vez.

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