Escrita, Mercado Cultural e os Demônios da Criação

Andrio Santos
Cabine Literária
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4 min readApr 23, 2017
The Good and Evil Angels, de William Blake.

Artistas são constantemente atormentados pelos Demônios da Criação. Onde quer que estejamos, eles tentam nos fazer transformar tudo num esboço, numa melodia e, no meu caso, numa história. Particularmente, estou sempre tomando notas, traçando pequenas tramas, como se tudo pudesse servir de material para escrever ficção — e talvez tudo possa mesmo. Demônios podem ser expressões de nosso subconsciente, forças da natureza ou entidades malignas. Prefiro vê-los como forças criativas. Por isso, sempre acabo associando-os ao ato de escrever, criar histórias, compor ficção.

Escrita Criativa é um de meus temas preferidos em relação ao fazer literário. Gosto de falar de composição de personagens, de tema, tom, enredo, de discutir referências e de pesquisar. A parte da pesquisa, para mim, é sempre deliciosa. Costumo fazer notas e recortes, fotocópias de imagens e de livros e colo tudo na parede ao redor da minha mesa. Gosto de ler outros autores, principalmente para pegar o espírito de algum personagem inspirado ou de algum tema que eu queira usar na minha história. Acho que a técnica, aliada a criatividade, pode tornar o processo de escrita apaixonante. E o meu processo, às vezes, quer ser sinestésico: muitas imagens, café, chocolate, livros, recortes, vinho. Para mim, funciona. Mas também não é só isso.

Pelo que tenho visto, o número de pessoas escrevendo hoje, no Brasil, é gigantesco. Isso é muito bom. Há cada vez mais gente escrevendo, buscando novas formas de divulgar seu trabalho e tentando encontrar o seu lugar nesse panteão caótico que é a produção cultural hoje. Há autores novos e novas publicações todos os dias. Então, como conseguir se destacar? Eu sou originalmente formado em comunicação social e acho que algumas ideias do marketing, da publicidade e do próprio jornalismo ajudam na hora de entender qual é o público para o qual se escreve. Além disso, é possível adaptar conceitos para tentar bolar estratégias, formas e meios de alcançar esse público e ter retorno. Trata-se de tudo aquilo que é chamado de Economia Criativa. E acho que compreender e conseguir aplicar isso é uma habilidade não só inestimável, como fundamental para um artista nos dias de hoje.

Mas agora eu entro em um ponto espinhoso, possivelmente polêmico, e acho que até um pouco impressionista: aquilo que gostamos e em que acreditamos. Uma das coisas mais lindas que já vi foi o Eric Novello, autor de Exorcismos, Amores e uma Dose de Blues, dizer em um painel na Odisseia de Literatura Fantástica de 2014 que, para criar uma boa obra, ela precisa ter algo de você. Não apenas concordo, como carrego isso no peito. Toda vez que começo a escrever, penso em colocar algo de mim no texto, alguma coisa em que eu acredite. Literatura, para mim, sempre foi sobre abalar o senso comum, questionar o status quo. Seja da menor à maior instância da vida: o que se veste, o que se come, o que se diz, como nos comportamos em relação ao outro.

Então, seria de se esperar que um texto meu tivesse algo de subversivo. Gosto de contradizer certas convenções e ideias estabelecidas. Na verdade, acho necessário. Meu último romance, O Réquiem do Pássaro da Morte, foi escrito a partir do ponto de vista de um personagem maldito, um homem que se maquia e usa roupas com rendas — porque isso não é algo que se espere do estereótipo masculino; também porque eu gosto de maquiagem e de usar essas coisas. Outra personagem que criei foi uma domadora, Âmbar, pragmática e um tanto cínica, meio baixinha, cheinha e sexy. Não é como um estereótipo da “mulher linda” ou da “mulher fatal”. Mas isso é só para ilustrar o meu ponto.

Porque esse é o ponto espinhoso: saber mediar o que acreditamos, aquilo que realmente desejamos criar, com a forma pela qual vamos divulgar isso para o mundo. Em outras palavras: achar o meio termo entre o mercado e a nossa expressão criativa. Não estou dizendo que isso é o certo, eu nem considero que existam certezas fixas a respeito desse assunto. Mas é nisso que acredito nesse momento. Acho que há leitores para todos nós, gente interessada em muito do que está sendo feito no Brasil nesse momento. Esse público não pode ser ignorado ou subestimado. É claro que não é simples ou fácil, e o caminho é longo. Mas o caminho está aí para ser traçado. Eu, enquanto artista, só posso agir dessa forma, do contrário, não seria honesto. Neste caso, honestidade não é idealismo. Não estou romantizando algo, mas perseguindo um sentido de autenticidade. Tentando encontrar minha própria voz.

Esse texto é sobre isso, uma provocação, um questionamento sobre o atrito entre o que queremos criar e o que mercado consegue vender. Mas o mercado também é fluido e também possui suas próprias convenções — ideias que podem ser subvertidas. Já vimos muito disso e ainda veremos mais, com certeza. Como disse Neil Gaiman, ninguém sabe quais são exatamente as regras, então podemos fazer nossas próprias regras, encontrar nossa própria forma de trabalhar com nossa arte. Mas precisamos fazer. O ponto é esse. O primeiro passo é a ação — e os demônios que me atormentam são todos de ação e criação. Quais são os seus?

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Andrio Santos
Cabine Literária

Jornalista e acadêmico, escrevo ficção e estudo o demônio nos livros iluminados de William Blake.