Flores do excesso

João Carlos Dalmagro Jr.
Cabine Literária
Published in
3 min readOct 21, 2016

“Menos vida!”, brada, à janela de seu apartamento, um dos personagens de Meia-noite e vinte, do escritor Daniel Galera (Companhia das Letras). Em seu quinto romance, Galera trata de rituais de passagem, crises, expectativas e desilusões em um mundo no qual não há “a menor possibilidade de transgressão e transcendência”, “nenhuma verdade adormecida sob a superfície”, porque as “flores que podem nascer em tanto excesso morrem de um dia pro outro.” Pra quem passou da adolescência à juventude no final dos anos noventa e, agora, se depara com os labirintos insondáveis da vida adulta, essas constatações fazem muito, demasiado sentido.

Em 2014 Porto Alegre está paralisada por uma onda de calor senegalês e pela greve do transporte público. As calçadas estão inundadas pelo chorume que transborda dos contêineres de lixo da prefeitura. Quatro velhos amigos se reencontram.

No final de 1990, Andrei, Antero, Emiliano e Aurora chacoalharam a internet, então incipiente de possibilidades, com um fanzine digital — o Orangotango, menção ao finado Cardosonline, que era enviado por e-mail e do qual Galera fez parte — que publicava contos, poesias, resenhas, egotrips. Mas agora, em 2014, Aurora se tornara uma bióloga e pesquisadora às voltas com a hipocrisia da vida acadêmica. Emiliano, um jornalista tentando pagar suas contas e resolver seus relacionamentos afetivos. Antero, marido adúltero e publicitário rico e próspero. Andrei, o único que se manteve fiel àquilo que entendia ser sua vocação — escrever — foi morto de modo estúpido em um assalto.

Emiliano é procurado por um editor oportunista para escrever a biografia de Andrei, que tivera uma vida reclusa e misteriosa, fator que atiçava a imaginação de seus leitores e fãs. E, para biografar seu amigo, Emiliano terá de revolver suas próprias entranhas e as de uma geração que cresceu à sombra promissora da internet, copiosa de possibilidades, o instrumento que faltava para que a comunicação fosse plena. Uma geração que, agora, superados os últimos estertores da juventude, não mostrou a que veio, encurralada entre promessas não cumpridas e a imobilidade gradativa. Uma geração estancada, interrompida, paralisada na velocidade e no excesso, sem capacidade (nem vontade) de digerir e processar tanta informação. Por isso o apelo, o grito, a súplica do personagem à janela: “Menos vida!” “Menos vida!”.

Meia-noite e vinte traça o sentimento que hoje todos experimentamos no nosso cotidiano. Um sentimento incômodo, gestado no final do século vinte como se fosse esperança. Mal sabíamos, porque éramos muito jovens e desconhecíamos as intempéries da vida adulta, que esse feto viria à luz como um largo espectro de desilusão.

Não há glória em reviver o passado e sentir que a devastação que ele provoca no presente leva à vontade de não fazer nada. Mas, se há alguma forma de redenção, algum modo de permanecer incólume, está no paradoxo de firmar os pés no chão e aguardar o vendaval passar. E isso há de ocorrer como no final de Meia-noite e vinte: de forma bela, sublime, comovente e libertadora. Uma flor que não fenece.

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