Gosta de quadrinhos? Vá ler um mangá.

Ou "5 motivos para não julgar um quadrinho pelo lado em que fica a capa".

Pedro Drable
Cabine Literária

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Como qualquer garoto da minha geração, eu cresci cercado por histórias em quadrinhos de todos os tipos. Desde as geniais tirinhas do Calvin e do Recruta Zero, passando por Turma da Mônica, Garfield e, obviamente, chegando com força nas revistas de super-heróis.

Exatamente nesse ponto, o “como qualquer garoto” se perde em um abismo enorme, que separa um grupo específico de jovens dos seus pares. Esse abismo se chama mangá.

Sim, porque qualquer jovem tem como modelo de herói personagens como Homem-Aranha, Batman, Homem de Ferro e por aí vai. Mas na minha infância, ler mangá te colocava em um grupo específico de garotos, numa época em que os nerds ainda não eram os "líderes do amanhã". Ler mangá era equivalente a jogar Magic no recreio ou varar a noite mestrando uma mesa de Vampiro: a Máscara (ambas atividades que eu praticava constantemente). Para você, insanamente divertido. Para os outros, uma mancha social grave.

Hoje, estarmos vivendo um boom de valorização dos quadrinhos americanos, livros de fantasia medieval e aventuras intergaláticas (obrigado, Hollywood, HBO, Netflix e todos os envolvidos, amo vcs s2 s2). Ainda assim, os mangás continuam em um cantinho escuro e feio na mente de muita gente. Vários amigos meus (eu estou falando com você, Fábio) são nerds de carteirinha de quadrinhos americanos mas não tocam em um mangá por pensar que é coisa de… nerd? Pois é. Também acho que não faz sentido.

Pensando nisso, resolvi elencar alguns dados e motivos para convencer o maior número possível de amantes de quadrinhos a tentar ler um mangá na vida. O universo é rico demais pra ser simplesmente considerado um subgênero. E digo sem medo que, em comparação com títulos mais comerciais, muitos mangás superam em vários pontos os quadrinhos americanos famosos.

Tudo bem. Você não sabe nada de mangá e não acredita em mim. Sem problemas. Me dá a mão e me deixa te apresentar esse mundo maravilhoso que você devia conhecer.

Vamos?

1 — Mangá não é um gênero.

A primeira grande falha na hora de se recusar a ler mangá é tentar resumir todos os títulos e autores em um tipo de gênero. "Não leio porque não gosto das histórias infantis.", "Não curto essas coisas que ki e bolas de energia", "Acho ridículos os olhos grandes e músculos ainda maiores", "Detesto as roupinhas de colegial"... Rapaz, tudo isso não resume nem um décimo das histórias que existem embaixo da categoria "mangá". Esse termo é usado no Japão pra fazer referência a qualquer tipo de quadrinho, desde tiras de jornal a grandes séries de super-heróis. Quando você ouve "mangá", provavelmente visualiza os gêneros shonen e shoujo, que são mangás para jovens de até uns 14 anos, respectivamente para meninos e meninas (sem juízo de valor ou segregação de gênero, é literalmente o que os nomes "shonen"e "shoujo" querem dizer).

Aqui entram as histórias que deram origem aos desenhos japoneses que a gente viu na infância, como Dragon Ball, Cavaleiros do Zodíaco, Yu Yu Hakusho, Sailor Moon, Sakura Card Captor e por aí vai. Esse é o tipo de mangá mais famoso do mercado, mas resumir o universo a histórias de heróis marciais com olhos desproporcionais é tipo achar que só existe quadrinho do Batman.

2 — Cada mangá tem um universo próprio.

Quando você cria uma história, existe um negócio importante a ser preservado que se chama "verossimilhança interna". Resumindo rápido, é o seguinte: seu mundo pode ser fantasioso, mas algumas "regras" da matriz da história precisam ser mantidas, ou a narrativa soa mentirosa. Tipo: o Super-Homem voa, é invulnerável a danos físicos, tem super velocidade, visão de calor, sopro de gelo etc… até aí tudo bem. Mas se ele resolve, digamos, voar rápido ao redor da Terra pra fazer o planeta voltar no tempo, simplesmente não funciona. O problema não é o fato dele voar, mas O PLANETA TERRA. A gente sabe mais ou menos como esse pedaço de pedra supervalorizado funciona e fazer a rotação do planeta mudar de lado não vai fazer o tempo correr pra trás. É inverossímil. E os grandes quadrinhos americanos vivem pecando nessa seara.

Considerando o universo Marvel: você já parou pra pensar na densidade demográfica absurda de heróis em Manhattan? E mesmo indo pro mundo da DC, pense em Star City, Gotham, Metrópolis… todas as cidades fictícias ficam pertinho uma da outra pra galera se encontrar e brincar de Liga da Justiça aos sábados. Isso não é bizarro?

A gente gosta dessa coisa de grandes grupos de heróis como os Vingadores, mas isso dificulta a criação de histórias e linhas de tempo coesas, bem como um balanceamento de poder que faça sentido. Porque convenhamos, se o Super Homem quiser, resolve a bagaça toda sozinho. Então, pra que serve a Liga da Justiça?

Por outro lado, uma das coisas mais legais dos mangás é que eles não têm necessidade de ser parte de um mesmo universo. Os "mundos" de muitos mangás são personagens em si, com premissas próprias, verdades internas e uma construção que colabora com a riqueza da história. One Piece, por exemplo, se passa em um planeta cheio de piratas, ilhas com suas próprias regras de física, batalhas de navios e tesouros escondidos. Toda a ação gira em torno de um bando de piratas que planeja conquistar o tesouro mais importante da era. Os poderes dos personagens podem vir de treinamento ou de uma fruta misteriosa que concede uma habilidade especial pra quem comê-la, mas automaticamente torna a pessoa incapaz de nadar (o que causa situações bem interessantes para um pirata). Existem regras internas de One Piece que não se aplicam a outros universos, e tudo bem, porque a história só precisa fazer sentido dentro de si.

Vinland Saga é uma história séria e violenta de redenção de um ex-guerreiro viking que não vê mais valor em matar, e quer descobrir uma terra onde possa viver em paz. Não existem poderes. Ninguém voa ou solta bolas de energia. Uma das cenas mais incríveis do mangá é sobre o personagem principal topando levar 100 socos de um soldado sem revidar, só pra ter uma conversa com um governante. Ou seja, uma das melhores brigas desse dessa história é uma surra homérica, em que o personagem principal apenas tenta se manter de pé.

Apesar das duas histórias terem um forte componente de "navegação", os universos de One Piece e Vinland Saga não compartilham nenhum oceano. Uma coisa não conversa com a outra, e não devia conversar, pro bem das duas histórias.

3 — A história é dos autores, não da publisher.

One Piece talvez seja um dos mangas mais bem sucedidos do mundo. Reza a lenda que o autor, Eiichiro Oda, tem uma equipe pequena e dorme apenas 3 horas por noite pra entregar as edições semanais com a qualidade e o refino que ele busca. Os personagens são dele. Os desenhos são dele. O enredo é dele. Enfim: existe uma mente (ou um grupo pequeno de mentes) que determina pra onde esse negócio todo está se encaminhando.

Com quadrinhos-franquia americanos, não tanto. A confusão é tão braba que muita gente usa os autores de uma época pra fazer referência a um personagem, em frases como "eu adoro o Demolidor do Frank Miller" ou "ninguém faz Batman como Alan Moore".

Curiosamente (ou não), alguns dos melhores títulos de quadrinhos americanos são histórias fechadas, feitas por um autor liderando o projeto com a sua visão criativa do início ao fim. Watchmen, Sandman e Sin City são exemplos de trabalhos com uma pegada criativa própria e qualidade indiscutível. Outras sequências curtas que mostram universos alternativos como Wolverine: Velho Logan ou Marvels (ilustrada pelo surreal Alex Ross) também conseguem esse alto nível de imersão e qualidade na história. Mas pegue o quadrinho médio dos X-Men e a inconsistência de personagens e trama é gritante.

Já os mangás costumam ser mais coesos, com linhas narrativas mais sólidas e um "estilo" que dita o tom da história do início ao fim, no texto e na arte. Por exemplo:

Death Note gira em torno de um caderno que dá ao seu dono o poder de matar qualquer pessoa sem deixar vestígios. O caderno cai nas mãos de um estudante do ensino médio extremamente inteligente, que resolve "limpar" o mundo de todas as pessoas ruins. A história fala sobre responsabilidade, soberba, crime e morte. Os desenhos são carregados de preto, os personagens são longilíneos e parecem psicopatas, os ângulos são meio perturbadores, enfim, tudo ajuda a construir o clima.

Esse mangá já está com um filme sendo produzido em Hollywood. Que tal se adiantar?

Já One-Punch Man é sobre um mundo repleto de super-heróis, onde um herói em especial é tão forte que termina todas as lutas com um soco (daí o nome). Ele não tem a fama ou o estilo de um super-herói alto nível, mas está sofrendo porque ficou tão forte que as lutas perderam a graça. A história cheia de humor gira em torno desse cara e dos desafios que ele enfrenta com um pé nas costas.

Pra ajudar a construir a trama, o personagem principal é “mal desenhado” de propósito, fazendo com que ele pareça estúpido e bidimensional em relação ao resto do universo.O que não significa que ele não possa ser ameaçador quando o bicho pega.

A "propriedade" dos autores de mangá em relação à história faz um mesmo estilo permear todo o trabalho. No geral, quadrinhos americanos sofrem com essa inconsistência.

Tem mais: um mangá que perde a mão corre um risco real de ser cancelado, assim como uma série de tv. Não tem essa de trocar o título de mãos ou dar reboot nos personagens. Vai tudo pro saco.

Isso faz com que os autores se esforcem para manter a história interessante. A sobrevida de títulos mal desenvolvidos só acontece nos raríssimos casos em que o autor conquista uma legião tão grande de fãs que recebe "tratamento especial" das publishers para conseguir terminar o trabalho.(Bleach? D. Gray-man? HunterXHunter? Excessões raras.)

Geralmente, ou a qualidade volta ou os aparelhos são desligados. E o mais importante: como tudo na vida, até os mangás muito bons acabam. O que leva a outro tópico importante.

4 — A maioria dos mangás tem fim.

Tá, eu to sendo um pouquinho injusto nesse ponto. Na verdade nem todo mangá tem final, mas em sua maioria, os quadrinhos japoneses "de heróis" funcionam em sagas, com início, meio e fim. Isso resulta em uma curva de evolução real dos personagens. Heróis ficam mais fortes, vilões ficam mais ameaçadores, visões de mundo mudam de verdade, pessoas morrem, famílias crescem, personagens envelhecem e por aí vai. Por outro lado, um dos maiores problemas dos grandes quadrinhos americanos é a estagnação dos personagens principais.

Os momentos mais interessantes das histórias são bombásticos, como a morte do Capitão América, a revelação da identidade do Homem-Aranha pro mundo ou o destino do Coringa no clássico A Piada Mortal. Mas esses personagens são tratados como franquias do Subway, fontes eternas de dinheiro que precisam se manter “na ativa”. Ou seja, seus momentos determinantes precisam ser remendados pra que tudo volte a ser como era antes. É por isso que a Marvel tem tantos universos paralelos, e que é possível fazer uma lista com as “10 melhores mortes do Coringa”. (Você sabia que o Coringa morre na PRIMEIRA REVISTINHA do Batman? Pois é.)

“Opa, pera lá, eu assistia Dragon Ball Z e aquela galera vivia morrendo.”

Ok, você tem um ponto. Mas nesse e em alguns outros mangás, o pós-morte faz parte do universo da trama, então as mortes/ressurreições não ferram com a história. Ao contrário, são inerentes a ela. Verossimilhança interna, lembra? É bem diferente de inventar um contrato com o demônio pra identidade revelada do Homem-Aranha voltar a ser secreta.

Quando sua história está caminhando em direção a um final, o tempo parece passar de verdade. Naruto teve um fim. Dragon Ball teve um fim. Cavaleiros do Zodíaco teve um fim. Samurai X teve um fim. Demoraram uns 10 anos pra chegar até lá, mas essas séries deram aos seus fãs uma verdadeira viagem, não um passeio em círculos pelas mesmas premissas de personagem. Menos Law & Order, mais Breaking Bad.

E falando em fim, vamos ao último ponto?

5 — Existe mangá de tudo.

Pense em um gênero ou "assunto" que você goste de ver em histórias, seja em forma de filme, livro, quadrinho, sei lá. Então, fera: existe um mangá sobre isso. E isso também. E essa outra parada que você pensou aí, apesar de ser meio esquisito curtir esse tipo de coisa, mas quem sou eu pra te julgar.

Sem pesquisar na internet e sem parar pra pensar muito, consigo lembrar de mangás sobre vikings, piratas, super-heróis, ninjas, assassinos, samurais, música, culinária, artes marciais, basquete, futebol, futebol americano, baseball, tenis, videogame, detetives, detetives sobrenaturais, vampiros, demônios, anjos, alienígenas, magos, deuses, robôs, robôs gigantes (posso parar já?) e até mangás sobre fazer mangás.

A pluralidade de assuntos e estilos dentro da categoria "mangá" é surreal, fazendo com que seja impossível não ter nenhum título sobre algo que você goste. Comigo, já rolou até o inverso: eu passei a gostar de um assunto por causa de um mangá.

Se chama Eyeshield 21. Sim, eu aprendi as regras do futebol americano lendo um quadrinho japonês. Me julgue.

E já que você leu até aqui, considerar a leitura de um mangá não deve mais ser tão bizarro assim, né? Então, pra começar sem compromisso, como quem não quer nada, porque você não procura um mangá sobre um assunto que já te interessa? Fora virar as páginas pro outro lado e ter desenhos em preto-e-branco, você nem vai sentir que está lendo um mangá.

Enfim. Tudo isso pra dizer que…

se você gosta de quadrinhos em geral, devia dar uma chance pro universo incrível dos quadrinhos japoneses. E antes que você diga que quadrinhos americanos não são só Marvel e DC: eu sei disso, e eu gosto inclusive das coisas mais comerciais que ambas já produziram. (eu acompanhei a Saga dos Clones do Homem-Aranha. Você lembra de COMO ISSO ERA RUIM?)

Só queria que menos gente torcesse o nariz pra mangás sem saber exatamente do que está falando. A gente já superou essa coisa de achar que nerd é otário, que RPG é coisa do demo e que todo gamer abriu mão da vida social. Por que continuar deixando os mangás de lado?

Não tem nada de estranho em curtir quadrinhos japoneses. É só lembrar de virar as páginas de trás pra frente e ler da direita pra esquerda. Tá, isso é estranho, mas acostuma rápido. E você vai parar de se privar da produção cultural de um dos países mais criativos e prolíficos do mundo a respeito de quadrinhos e arte sequencial. Meu conselho pra você é simples. Larga esse preconceito, pega um mangá de qualidade e vai ser feliz.

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Pedro Drable
Cabine Literária

Escrevo sobre coisas que eu entendo e não entendo, na maioria das vezes tentando me entender.