Eu Tenho um Disco Voador na Garagem

Cesar Sinicio
Cabine Literária
Published in
44 min readMar 23, 2016

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um conto de natureza ficcional e semi-científica, por Cesar Sinicio Marques
com ilustrações de Wiru
link para compartilhar: http://bit.ly/discovoadorgaragem

Noites sem lua eram as preferidas de Thiago e aquela era uma quarta feira particularmente especial: mostrava um céu com muitas estrelas, como pingos de orvalho na terra escura. Milhares de pontos brancos cruzavam o negrume do céu e ele poderia passar a noite toda observando a paisagem noturna, a olho nu ou com seu telescópio. Thiago gostava de noites assim, quando as estrelas ficavam mais destacadas e o fenômeno mais facilmente avistável. Na escuridão das noites de lua nova passava horas debruçado na janela a esperar. Ele era um Ovniólogo, como gostava de se chamar: um curioso estudante do ensino médio que adorava histórias sobre seres de outros planetas, alguém que acreditava que eles realmente podiam existir. Mais que isso, acreditava que poderia entrar em contato com essas criaturas extraplanetárias e para isso montara um clube de pesquisas sobre o assunto com seus colegas da escola.

O título de “clube de pesquisas” tinha muito de clube e pouco de pesquisa, é verdade: ele não tinha feito muito esforço para estudar os tais objetos e seres. Não era um grande estudioso de qualquer assunto que fosse, mas a curiosidade em conhecer um mundo diferente do seu era tamanha que, dessa vez, ele tinha realmente se empenhado. O que significava dizer que lia revistas quase inteiras e ensaiara um ou dois capítulos de livros que comprara em sebos. E isso era algo de se espantar!

Na tarde do dia seguinte, dois amigos chegaram empolgados na casa de um adormecido Thiago — a sede do clube — onde se reuniam para trocar qualquer informação que encontrassem sobre discos voadores. Margarete, uma menina alta com o cabelo multicolorido (a cada três semanas a cor era diferente, embora o tom predominante fosse ruivo), a quem chamavam de Maga, trouxera seus sorrisos fáceis e opinião contundente. Fernando, cabelos compridos e pretos como suas vestes, conseguira um livro que encomendara pela Internet. O volume contava a experiência de pesquisadores russos que teriam contatado seres de outros planetas. Thiago ficou louco para descobrir a técnica que tinham utilizado e, de pronto, começou a folhear as primeiras páginas buscando no índice o que queria, no seu melhor estilo vamosdiretoaoqueinteressa:

— Página 44.Como eles se comunicaram. É isso!

Fernando e Maga sentaram-se no sofá, enquanto Thiago revirava o livro e mal puderam se aconchegar quando ouviram um grito de satisfação. Com um sorriso enorme no rosto ele apontava uma foto grande mostrando os russos que conseguiram a fantástica experiência de contatar seres alienígenas. Ele folheou mais páginas, perscrutando-as como se fossem o céu noturno e, então, seu rosto deu sinais de que não havia estrelas.

— Mano, não acredito! Esse livro é o livro que escreveram sobre o livro dos caras que viveram a experiência.

— Tô confuso! — titubeou Fernando.

— O livro que conta a experiência em detalhes, escrito pelo grupo de pesquisadores russos, nunca foi traduzido. Esse aqui é tipo o “Desvendando o Código Da Vinci” dele. — olhou-os desolado — Só uma análise, não o texto

original.

— Hmm! Pode ser que eu conheça a solução — sorriu Fernando.

* * *

Treze livros em seis semanas! Eduardo tentava imaginar como conseguiria realizar tal façanha, enquanto digitava os horários das aulas optativas que faria esse ano na Faculdade de Filosofia. Sentia que perdera muito tempo no primeiro ano, tendo feito apenas as matérias básicas e obrigatórias, e agora se inscrevera em mais uma porção delas para compensar o tempo perdido. Adorava como as diferentes culturas apreendiam o mundo, e estava planejando incluir na lista algumas aulas de japonês, embora não conseguisse imaginar em que horário poderia fazê-las.

— Deixa ver… tem a aula de natação, que eu posso mudar de horário ou, então, posso desistir do teatro. — falava consigo mesmo com a cara torcida, comendo a tampa da caneta sem perceber.

— Eduardo! Tem gente te chamando — gritou sua mãe, do pé da escada.

Eduardo correu os olhos pelo quarto antes de computar exatamente o que a mãe dissera. Além da cama bagunçada, havia uma escrivaninha com um computador que acabara de ganhar de presente de aniversário, um contrabaixo que acumulava poeira enquanto prometia a si mesmo arranjar mais tempo para se dedicar à música, além dos muitos, muitos livros.

— Já desço, mãe! Peça que entre, por favor… seja lá quem for… — a última parte falou baixinho.

Salvou os arquivos em que estava trabalhando, anotou num papel o que ficara pendente e desceu as escadas, colocando seus óculos redondos. Eduardo, ainda da escada, olhou para a sala e reconheceu apenas um rosto, Fernando, um amigo da escola que nunca mais vira. Ao lado dele, uma menina ruiva como rosto bonito e comprido e um menino que imediatamente roubou sua atenção. Olhos castanhos como uma bola de gude e um sorriso quase assustador. Suas feições eram delicadas, embora ele tivesse certo ar rústico — a pele porosa lhe pintava o rosto de um jeito charmoso — e não fosse o fato de que Fernando acenava furiosamente pedindo que se aproximasse Eduardo continuaria a explorar a visão por horas.

— Chega aqui, brother! Deixa eu apresentar dois amigos! Essa é a Margarete — disse, apontando para a menina, que sorria timidamente –, mas a gente chama ela de Maga. E esse aqui é o Thiago.

— Thiago…

Eduardo vidrou o olhar por tempo o suficiente para que o silêncio ficasse constrangedor, mas o outro não pareceu se intimidar:

— Prazer! — disse estendendo a mão.

Os três contaram a ele sobre o grupo que tinham e explicaram os motivos pelos quais acreditavam seriamente na existência de seres de outros planetas visitando a Terra. Eduardo ouvia com atenção, sem tirar os olhos de Thiago que sorria empolgado enquanto contava sobre quantas revistas de Óvnis tinha em casa (não mencionara que até pouco tempo só lia as manchetes da capa) e sua teoria de que o nome certo para estudiosos de fenômenos dessa natureza no Brasil deveria ser Ovniólogo e não Ufólogo.

— Olha só, UFO é a sigla em inglês pra Unidentified Flying Object que quer dizer Objeto Voador Não Identificado — Explicou, todo senhor de si. Ora, a gente fala assim sobre os objetos, certo? Ninguém diz: “Oi, vi um ufo hoje” — continuou, com uma careta — a gente diz é que viu um óvni!

— Falando assim parece que a gente avista esses objetos todos os dias — interrompeu Margarete, brincalhona.

— Ah, você entendeu! — replicou Thiago. — O fato é que se a palavra existe em português, pra que vamos usar outra?

O máximo que Eduardo entendia sobre extraterrestres era o que aprendera com os filmes de ficção científica que tanto gostava. Os outros até deixaram que ele falasse sobre os filmes com entusiasmo, mas recusavam-se a acreditar que seres interplanetários se parecessem com fantoches de silicone e borracha.

— É claro que eles têm forma humana — Margarete discutia. Nosso corpo vem evoluindo para uma melhor subsistência em planetas como a Terra e seres que vêm até aqui têm que ser parecidos com a gente, ou não teriam interesse em vir pra cá!

Fazia certo sentido. O que não fazia sentido era o fato de que aqueles três estavam ali falando sobre “aliens” havia mais de duas horas com Eduardo sem que ele entendesse o por quê. E ele decidiu perguntar:

— Mas gente, por que é que vocês vieram aqui me contar essas coisas? Com certeza não é só porque eu gosto de ficção científica, né? Tipo, ficção é ficção! Vocês acreditam nessas coisas de outra forma — olhou sem graça para todos, especialmente para Thiago, e continuou — me desculpem se pareço grosso, mas o Fernando sabe que não recebo visitas o tempo todo — disse isso arrumando os óculos no rosto. — É que… bem, é meio esquisito vocês chegarem aqui, do nada, com seus discos voadores.

Todos olharam para Fernando, que ficou um pouco sem graça. — É o seguinte, Edu. Lembra quando você ajudou minha banda num show que a gente tava sem baixista um tempo atrás? Eu sempre te achei um cara legal e queria te convidar pra fazer parte da turma, meio que pra compensar o favor que você fez e tal!

Eduardo olhou desconfiado para o sorriso amarelo de Fernando e os outros dois desviaram o olhar. Thiago deu uma leve cotovelada no ombro de Fernando e ele engoliu o sorriso.

— E tem também uma coisa — disse, acariciando o ombro atingido. Você chegou a aprender a ler em russo? Eu lembro que depois de ler “Crime e Castigo” você começou a se interessar e como sempre foi meio autodidata… Eduardo enrubesceu de raiva. Era sempre a mesma história: na escola sempre fora desprezado por ser esquisitão, mas se aproximavam dele na hora de pedir cola ou pra fazer trabalho em grupo. Não podia acreditar que depois de sair do colegial ainda teria que passar por aquela situação. Sentiu-se ofendido e logo os outros perceberam.

— Podem me dar o texto que querem que eu traduza e vão embora daqui! AGORA!

Fernando tentou se explicar, mas Eduardo estava com cara de poucos amigos; restou aos três fazer o que ele tinha pedido. Deixaram um pedaço de papel com o nome do livro e saíram pela porta da frente, acompanhados pela mãe de Eduardo. Dona Mara fechou a porta e voltou com um sorriso.

— Fazendo amigos, Edu? Eu sempre te disse que livros não eram a melhor companhia, ainda mais porque você nunca estuda algo que valha a pena. E você viu aquela garota linda? Margarete o nome dela, não é? É o nome da sua prima que está estudando no exterior! Bom nome, sim! Eu diria que você tem mesmo é que conhecer melhor essa menina, porque já faz tempo demais que você fica aí sozinho no seu quarto; precisa mesmo arrumar uma namorada!

Eduardo tamborilou os dedos sobre o bilhete com o nome do livro, fechou os olhos com força e segurou o turbilhão de sentimentos que lhe invadiam o corpo magro.

— Vou subir. Eles me pediram ajuda com isso aqui; depois, eu levo pra eles.

A mãe sorriu contente, imaginando, provavelmente, que ele levaria a tradução para Margarete e a pediria em casamento. Eduardo subiu cabisbaixo, os sentimentos correndo em disparada pelas suas veias, do coração para o cérebro, do cérebro para o estômago, deixando-o meio tonto. Sentia saudades do tempo em que as cobranças e complicações eram menores e seu maior dilema era escolher o sabor do sorvete que iria tomar.

Na verdade, não sabia se estava triste porque lhe pediram que traduzisse o texto. Talvez Fernando realmente estivesse interessado na participação dele no grupo. O que doía mais era ver que Thiago despertara nele algo que tentava havia tempos esconder de si mesmo. Eduardo sempre pensara ser um cara normal. Um esquisitão, é verdade, nerd, CDF, caxias, e tudo o mais; no entanto um intelectual normal. Até o dia em que olhou para outro garoto que jogava xadrez durante as aulas de educação física e ele lhe sorrira de volta. Tentara esquecer aquele sorriso por semanas, mas era estranho o fascínio que a cena exercia sobre ele. Achou que estava ficando maluco, lembrando-se do sorriso de um menino enquanto alguns caras da sua idade já levavam as namoradas para passeios íntimos em seus carros. Era certo que nunca tinha se interessado por garotas, mas provavelmente era só uma questão de tempo até que aparecesse uma menina especial. Ou não? O sorriso do menino do xadrez voltara à sua mente com tanta força que ele resolveu se deitar. Dormir ia fazer aquelas perguntas todas se calarem. Quando se deitou, entretanto, outra imagem mais recente e mais viva somou-se àquela. Um novo sorriso, o sorriso de Thiago. Sem muita alternativa, ele pegou os CDs com as trilhas sonoras da sua trilogia espacial favorita e, depois de trancar a porta para certificarse de que não seria interrompido, tentou adormecer ouvindo a música instrumental regida por John Williams deslocando-se ao som dos violinos para o deserto duplamente ensolarado de Tatooine.

* * *

Desde que saíram da casa de Eduardo, os três conversavam a gritos. Fernando, revoltado, dizia que acabara de perder definitivamente o contato com um grande cara e Margarete o consolava com um abraço. Thiago, no entanto, parecia mais triste que Fernando.

— Esse carinha é mesmo diferente — disse, pensando em voz alta — Acho que também teria me sentido ofendido, e não sei se traduziria o texto, se fosse ele.

— Eu tô falando, ele é muito gente boa. É verdade que nunca sai de casa e é ligado demais em estudar, mas quando ele tocou com a gente e depois saímos pra comer pizza foi muito louco! Não tinha um assunto que o cara não discutisse na boa. E ele manja todos os sons de heavy metal que a gente toca.

Um silêncio daqueles angustiantes e intermináveis invadiu a conversa, enquanto Fernando tomava a direção da sua casa, deixando o grupo, e Margarete e Thiago seguiam para o lado oposto.

— Cara, cê não falaria com ele, assim, pelo menos pra não ficar essa situação tosca? — perguntou Thiago.

— Tava pensando nisso agora mesmo, Thiago. Amanhã, dou um pulo lá e converso com ele. Não sei muito bem o que posso falar, mas de repente ajuda!

* * *

No outro dia Margarete saiu de casa depois do almoço, tocou a campainha da casa de Eduardo e foi atendida por uma sorridente mãe:

— Margarete! Você veio! — a menina não sabia o que a assustava mais: se a aparente previsibilidade da sua chegada ou a mãe do menino, que nem vira direito no dia anterior, saber seu nome. — Eu sabia que tinha gostado do meu menino! Entre, entre. Espere aqui na sala que vou chamálo; ele está lá em cima no computador, sabe como é, sempre estudando; você sabe que ele está na faculdade, não sabe? Está de férias agora, mas as aulas devem começar na próxima semana. Edu será um homem charm… — e não parou até que sua voz sumisse escada acima.

Algo no modo de como tudo aquilo era surreal lhe dizia que aquela era a primeira visita feminina que Eduardo recebia.

— Peraê! Já desço! — gritou ele.

Eduardo desceu agitando umas folhas de papel, a cara emburrada olhando Margarete, que permanecia sentada no sofá ao lado da mãe, as mãos cruzadas sobre as pernas e um sorriso cheio de expectativas.

— Descobri que os autores disponibilizaram o texto do livro sob a licença Creative Commons… — Eduardo notou o olhar de incompreensão das duas — Hmm… tipo, o texto tá disponível para download legal e gratuito desde que não se use isso pra ganhar dinheiro! — Explicou — Eu comecei a explorar o texto e a linguagem não é muito complicada, mas vai levar algum tempo e… — Margarete percebeu certa semelhança no jeito ininterrompível de falar que Eduardo herdara da mãe e olhava pra ele com uma cara de medeixafalarporfavor — enfim, as primeiras duas páginas estão aqui.

A menina encarou-o e, sem graça, desviou o olhar. A mãe de Eduardo disse que ia “deixa-los a sós” e saiu, ficando à espreita.

— Olha Edu, posso te chamar de Edu? — Ela sequer lhe deu tempo de responder, antes de continuar — Eu e o Thiago conversamos e a gente achou que foi meio grosseira a nossa aparição aqui ontem, mas nossa intenção não era usar você. A gente poderia ter feito uma vaquinha e achado um tradutor, eu usar o santo Google! Mas o Fernando ficou falando do baixista legalzão que ele conhecia e que aprendia línguas sozinho e que adorava ficção. Achamos que seria legal ter alguém culto de verdade no clube, pra variar.

Eduardo apreciou-a desconfiado. Aquela conversa ainda cheirava a interesse, mas pelo menos ela não viera só para buscar a tradução. A mãe passava de vez em quando por trás do sofá e lançava olhares sorridentes para Margarete, que corava.

— Quer ver minha coleção de Blurays? — perguntou, de repente, ao que a menina, ainda meio sem jeito, aceitou.

Os dois subiram até o quarto enorme de Eduardo, que ocupava praticamente todo o segundo andar da casa.

— Aqui está o meu refúgio. Eu tenho um amigo na internet que diz que quando se precisa fugir do mundo basta ir ao cinema. Bom, eu criei o meu aqui — disse, apontando orgulhoso para o equipamento digital de última geração.

— Uau! — Margarete tinha quase certeza de que já vira um quarto daqueles em algum desenho animado e imaginava que se apertasse algum daqueles livros ou discos no lugar certo abriria um compartimento secreto. — E o que você tem de filmes legais por aqui?

— Olha só, aqui tem alguns europeus do circuito alternativo. É difícil encontrar essas coisas com legendas em português. Dublagem, então, nem se fala!

— Conheço muito pouco sobre filmes alternativos, mas tem umas legendas de filmes que eu vi ultimamente que deixaram muito a desejar…

E começaram a discutir quando era apropriado ou não ter legendas ou dublar filmes e emendaram com um interessante papo sobre o cinema brasileiro, enquanto Margarete vasculhava o resto do lugar, notando que só havia uma poltrona no quarto todo.

— Você nunca trás ninguém pra cá, né?

Eduardo corou e cuidou de voltar a falar de cinema, desviando instintivamente o olhar do da menina. Como ela permanecesse séria e quieta, ele resolveu falar.

— Ficar sozinho é bacana! Como você vai ler um livro, por exemplo, com alguém te olhando, entende?

— E foi por isso que você ficou chateado com a gente ontem, não foi? A gente vem aqui e invade seu mundo, você conversa e de repente parece que era só interesse.

Se desde que ela fizera a primeira pergunta Eduardo já não a olhava, agora grudara de vez os olhos no piso liso, enquanto arrastava os pés e mantinha as mãos nos bolsos da calça sem nem perceber.

— Olha Edu, eu confesso que quando o Fernando me falou de você, o meu verdadeiro interesse era só o de traduzir o texto de graça e pronto. Mas ontem, enquanto a gente conversava, eu achei você um cara legal e hoje eu tenho mais certeza disso. Por que você não vem amanhã pra reunião na casa do Thiago?

As palavras soaram doces e pareciam sinceras! E, além disso, havia uma estranha melodia ressoante no trecho “casa do Thiago” que dizia ainda mais a Eduardo. Embora ainda confuso com aquela história e sem saber ao certo se gostava da ideia de participar de um grupo de garotos que acreditavam em ETs, Eduardo começava a gostar de ter com quem conversar sobre suas ideias. Podiam não ser estudantes de filosofia ou nerds assumidamente fanáticos por Guerra nas Estrelas, mas pulsava nele a vontade de vê-los novamente.

— Claro! Quer dizer… sim, tudo bem. Eu… hmm… como eu faço?

— Me dá seu MSN que eu te passo o endereço. A gente normalmente leva pipoca ou refri, mas não se preocupe com nada dessa vez, não.

Depois de trocarem email, Margarete foi para casa. Ligou para Thiago e contou que conseguira o início do texto e que o restante viria até a reunião da semana seguinte. Embora Thiago perguntasse a cada cinco minutos se Eduardo tinha ou não ficado chateado, Margarete quis manter segredo e manteve-se firme e séria e disse que não teve chances de descobrir.

* * *

— F ernando, seu besta! Abaixa esse som ! — a voz da irmã chegava fraquinha através da porta trancada do quarto, embora ela gritasse. Fazia horas ele estava lá dentro, cantando alto. Sentia-se mal por tudo que acontecera e nem andava muito animado com a perspectiva de ir à próxima reunião.

— TEM GENTE NO TELEFONEEEEEE! EU VOU DIZER QUE VOCÊ MORREU! AAAH! POR QUE EU TENHO UM IRMÃO TÃO CRETINO?! — continuava ela, aos berros, cada vez mais alto. Fernando desligou o som um pouco contrariado e abriu a porta, dando de cara com sua irmã, vestida com sua costumeira cara de seeunãofossesuairmãtemataria , que praticamente arremessou o telefone sem fio nele.

Margarete, do outro lado da linha, teve um bom trabalho para convencê-lo a ir à próxima reunião. Fernando queria ir até a casa de Eduardo se desculpar, mas ela lhe disse que seria melhor deixar as coisas esfriarem e ele acabou por ceder e concordar. A próxima semana seria cheia de surpresas.

* * *

Eduardo preparara uma mochila com uma série de revistas em quadrinhos sobre invasões alienígenas — apesar de ter sempre preferido os mutantes e esquisitões da Marvel aos enviados de outros planetas da DC. Feito isso, recheou o iPhone com trilhas de filmes e séries de ficção científica, para não se sentir completamente deslocado. No caminho ainda passou estrategicamente por uma banca de jornal onde encontrou um sugestivo DVD com o título: “Preparem-se para a chegada! Os tipos, raças e as intenções dos extraterrestres ” e acabou incluindo-o na lista de coisas na mochila. Levou-a na frente, como quem usa uma armadura. Lá dentro, ainda estavam algumas páginas a mais do texto que passara as últimas noites traduzindo. A mãe sugerira que levasse algo para impressionar Margarete, mas Eduardo fingiu não ouvir a sugestão.

O caminho que indicava o mapa tirado do Google Maps não era muito distante e caminhadas eram corriqueiras para Eduardo. Embora fosse bastante ligado aos estudos, ele nunca deixava de caminhar ou andar de bicicleta ou ir às aulas de natação, o que o fazia ficar sempre em forma — além, é claro, da vigilância quanto os excessos de carboidratos e calorias, exercida de forma sutil por sua mãe. De fato, se tirasse os óculos redondos, colocasse roupas mais modernas, não falasse tanto de livros e não emendasse em discussões filosóficas ao conversar sobre qualquer tópico trivial… bem, ele tinha tudo para ser popular, mas era nerd por opção.

Seguiu o mapa impresso e avistou uma casa bastante simples com um portão de madeira gasto pelo tempo, entreaberto. A descascada pintura amarela dava uma aparência ao mesmo tempo velha e aconchegante e a laje era plana, com uma grade baixa ao redor. Procurou por uma campainha, mas não encontrou. Meio sem graça, começou a se perguntar se deveria bater palmas ou ligar do celular, quando ouviu seu nome.

— Edu! Que bom que te encontrei primeiro! Os meninos ainda não sabem que você vem! O Nando já deve estar aqui, então, é hora do show!

Eduardo começava a gostar daquela menina. Caminharam juntos, passaram pelo portão de madeira e ela bateu na porta cinco vezes.

— Agora você sabe a senha do clube. Não conte a ninguém, ok? Eduardo viu a porta se abrir e seus olhos cruzaram com os de um Thiago espantado, do outro lado.

— Você… veio aqui… — grunhiu — E nem tá com cara de chateado!

— Eu venho em paz! — brincou ele — Leve-me ao seu líder!

Fernando correu até ele e deu um monte de socos leves no ombro do antigo colega de classe. Era o seu jeito menino de dizer que sentia muito e que estava feliz por vê-lo ali.

— Cara, foi mal eu… — começou.

— Nada de explicações. Eu já entendi e não teria vindo se visse algum problema. Menos conversa e mais da tal pipoca que a Margarete contou.

— Não fala Margarete, é Maga — disse Thiago, indicando o sofá com semblante tranquilo. — Espera que vou lá aprontar!

Pipoca pronta, as cópias nas mãos de cada membro do clube e olhares ansiosos. A única pessoa que tinha de fato lido aquilo era Eduardo. E, embora todos olhassem para as folhas de papel em suas mãos, havia uma urgência para que ele dissesse algo a respeito.

— A experiência desses pesquisadores russos foi bastante ousada, eu diria. Talvez até… enfim, dois dos membros tinham grande ligação com parapsicologia, que pra mim não é exatamente uma ciência. Mas, de qualquer forma, eles eram um grupo de sete ou oito universitários que queria fazer contato telepático com seres extraplanetários.

— Contato telepático? — gritaram os três em coro.

— Pois é, eu também achei bem esquisito. Parece mais ficção científica que meus quadrinhos, mas nas páginas seguintes da introdução, quando eles detalham a experiência, parece que eles realmente conseguiram algo. Eu preciso confessar que estou ansioso por traduzir o restante!

— Mas será que eles descrevem como fizeram a experiência? — perguntou Thiago, os olhos brilhantes de curiosidade.

— Dá uma olhada na última página aí — disse Eduardo, apontando para as folhas soltas.

O barulho das páginas era tudo o que se ouvia e, em seguida, estavam todos analisando um diagrama que descrevia uma espécie de passo-a-passo da experiência que havia sido realizada em Moscou.

— Tem algumas palavras que eu não consigo entender, mas dá pra pegar mais ou menos o que eles fizeram e acho que depois de ler mais do livro, a coisa vai fazer mais sentido! Se a gente olhar aqui…

Mas eles não chegaram a olhar para o papel, pois a porta se abriu de repente, deixando entrar um vento forte que espalhou a papelada por toda a sala. Thiago levantou-se para fechála e parou, os olhos espantados, na frentea poucos passos da entrada. Quando a porta se abriu por completo, lá estava ela:

— MÃE? — disse Eduardo, com voz rasgada. — O que você tá fazendo aqui? E justo AGORA ?

— Eu só vim saber se você tinha chegado bem e ver quem estava com você, filho. Não estou acostumada a ver você sair sozinho, afinal, você sempre fica trancado no seu quarto, o que eu já falei que não é uma coisa boa. Seu pai concorda, mas nunca fala isso diretamente pra você, o que, aliás, é horrível para sua criação, porque eu insisto em dizer que ele precisa passar mais tempo conosco e…

— Isso! — Interrompeu-a

Eduardo — Agora termine de contar nossos dramas familiares na frente deles. — e só então ela olhou para o filho, que parecia frustrado.

— Eu estraguei alguma coisa? Ah, claro que não. Aliás, convenhamos que não era bem esse tipo de encontro que eu esperava que você viesse a ter com…

Eduardo cruzou a sala em segundos e saiu sem olhar para trás. Com uma cara de detestoquandoelemedeixafalando, a mãe foi atrás dele. Os outros ficaram mudos por um longo tempo.

No caminho de volta, ao contrário, o falatório prosseguiu:

— Se ao menos você me ouvisse e conversasse logo com a Margarete sobre o que sente por ela, você não seria obrigado a andar com esses moleques. Eu acho que vocêpoderia se declarar de uma vez e não precisar ficar fingindo que gosta…

— Mãe! O que é que você sabe sobre mim, sobre o que eu gosto ou sinto? Alguma vez você já perguntou antes de decidir por mim? — Eduardo vociferou, olhando para trás, mas sem se deter.

Ela ficou estarrecida por um instante, mas logo arremedou:

— Ah, lá vem você com essa história de “eunãosoucomoosoutrosgarotos” de novo. É verdade que você fica isolado em casa com um monte de aparelhos eletrônicos e essas revistas e livros, mas dizer que não está interessado na menina é subestimar meus instintos maternos. Eu tenho certeza de que você a ama e…

— Tem razão, mãe. — Eduardo parou e sorriu.

Dona Mara estancou, esbaforida, um sorriso vitorioso começando a preencher seu rosto, quando Eduardo arrematou:

— Eu não sou como os outros meninos, nesse ponto a senhora tem toda razão. Só que eu não estou interessado na Margarete. Aliás, nunca estive interessado em menina nenhuma em toda a minha vida e nem acho que um dia eu vá estar! — E, de repente, o medo sobrepôs-se à raiva e Eduardo disparou mais uma vez, deixando uma mãe atônita para trás.

* * *

— Alô, Edu?

— Aham — a voz era a de quem havia chorado.

— Olha, eu sei que talvez não seja uma boa hora e tal, mas queria que soubesse que foi muito legal você ter aparecido e que semana que vem a gente quer muito que você venha.

— Valeu, Thiago. Eu te ligo pra confirmar, ok?

— Fica bem, tá? Fica bem!

Do lado de fora do quarto, sua mãe batia na porta com força. Eduardo tinha ligado o som um pouco alto para não ter que ouvir as batidas e o palavreado sem fim, mas resolveu abaixar o volume e aproximar-se da porta.

— Eu sei que está me ouvindo e eu vou te dizer uma coisa, se você disse pra mim o que eu acho que você disse pra mim nós vamos ter uma conversa muito séria, rapazinho. E o seu pai vai participar, ah se vai! Eu sempre disse a ele, sempre disse que o filho dele era muito esquisito, esse jeito estranho de só ficar em casa. Isso, isso é… é uma monstruosidade, uma aberração. Faculdade de filosofia, onde já se viu?, e seu pai dizia: “deixa que ele decida o próprio bem”. E eu aqui dizendo que bem é o que não cheirava. E eu tinha razão. Aliás, ele deve chegar a qualquer momento e nós vamos colocar essa porta abaixo e você vai ter que explicar direitinho essa história de não gostar de meninas — ela trotou escada abaixo, ainda murmurando sozinha.

Eduardo aumentou o volume do som e ligou para Margarete, para avisar que não achava uma boa ideia ir à reunião seguinte. Sentia que nem sobreviveria até a semana seguinte.

— Oi Maga! Eu só tô ligando pra avisar que não vou na próxima reunião. O Thiago me ligou e eu disse que confirmaria. Você pode avisar pra ele que não vou?

— Bom… posso… mas, o que foi? Tem a ver com o que aconteceu hoje?

— Ah, minha mãe é assim preocupada mesmo. Sabe como é, ela quer o meu bem. Acho que ela tem razão sobre algumas coisas. No fim das contas, essa história de reuniões nem é muito minha cara.

— Desculpa te contrariar, Edu, mas eu vi bem a sua cara de empolgação hoje na casa do Thiago. Se não quiser falar tudo bem, mas acho que tem mais coisa aí do que você tá me dizendo.

— Não é nada mesmo, Maga. Eu só não quero ir na casa do Thiago na próxima reunião…

— Tem alguma coisa a ver comigo? Essa implicação da sua mãe e…

— Tem… tipo, não! Olha… você pode vir aqui em casa? — Eduardo estava confuso, mas precisava compartilhar aquilo que a menina podia entender que ele sentia.

— Tô indo praí!

* * *

A campainha tocou e uma ansiosa Dona Mara correu até a porta esperando ver seu marido — que não costumava tocar a campainha — , mas ela não se lembrou disso. Ao abrir, ficou surpresa, confusa e muda — o que constituía evento raro em sua constelação de reações possíveis. Margarete desejou boa noite e pediu licença para subir até o quarto de Eduardo.

— ABRE! — gritou, tentando ser ouvida debaixo dos violinos que soavam das caixas acústicas.

Eduardo abriu a porta e deixou-a entrar. Nem sabia por onde começar. A menina sentou-se ao lado dele na cama e afagou seus cabelos.

— Você já se apaixonou, Maga? — começou, sem saber exatamente como começar.

— Acho que sim. É difícil dizer, porque essas coisas são tão únicas pra cada um, né? Mas eu já gostei muito de um cara… — suspirou — Foram bons momentos. Tem a ver com estar apaixonado você não querer ir no Thiago?

Eduardo respirou fundo e virou-se repentinamente para a amiga, sussurrando um apelo quase desesperado:

— Eu tô afim de você!

Margarete estranhou a declaração repentina e afastou-se gentilmente, enquanto Eduardo forçava um sorriso.

— Isso é sério, Edu? Olha, eu não gosto de brincadeiras desse tipo e… na boa…

— Desculpa, eu… não quis dizer isso. Queria até poder dizer, porque você é a menina mais legal que eu conheço. Mas, a verdade é que não é de você que eu tô afim. Tipo, na reunião…

— Tava eu, o Fernando e o Thiago lá, então…

Eduardo não sabia se ria ou chorava diante da expressão de eusempresoubeporqueeusoumesmomuitointuitiva da menina.

— Mas, é só isso?

— MAGA! — gritou em desespero. — Eu tô morrendo aqui e você vêm dizer que é SÓ isso?

— Não, peraí. Eu não quis dizer só nesse sentido. Deve tá sendo tenso. Agora entendi porque sua mãe tava com aquela cara de irada lá embaixo. Você contou pra ela, né?

Ele acenou que sim.

— Hey, relaxa, cara!

— É que, meu, eu nunca estive com ninguém em toda minha vida. Então, eu nem sei o que tá acontecendo. Eu deveria estar apaixonado é por você, né?

— Eu sei que sou maravilhosa! — retorquiu a menina, fazendo pose.

— Mas, sério. Não tem nada errado nesse seu gostar. A gente se amarra em quem o coração escolhe.

— Eu acho que o meu tá escolhendo o Thiago.

— E eu acho o Thiago uma boa escolha!

E os dois se abraçaram e ficaram ali, colados um bom tempo. Enquanto isso, no pé da escada, Mara tentava juntar as peças do quebra-cabeça que se formara em seus pensamentos. Por via das dúvidas, decidiu que o filho estava tão apaixonado pela menina que ficou confuso e acabou inventando aquela história só para deixá-la preocupada, mas que em breve se casariam.

— Está na hora de eu ir pra casa, Edu. E acho que não vou mais precisar falar que você não vai na próxima reunião, né?

— Você acha que eu devo ir? Mas, e minha mãe?

— Depois da minha passagem por aqui tantas vezes em tão pouco tempo e do tanto que ficamos aqui trancados, acho que ela não vai te pedir explicações por algumas semanas! — falou, piscando.

— Você não vai contar para o Thiago, vai?

— Bobo! Isso é uma coisa que só você pode fazer! Mas não se apresse, deixa o tempo fluir… Fui!

Ela destrancou a porta, saiu e a deixou aberta.

* * *

Na quinta-feira Thiago ligou para Margarete, que ligou para Fernando, que pegou sua mochila e encheu de saquinhos de suco e um pacote de pipoca.

Encontraram-se mais cedo para preparar tudo e assim que Eduardo chegasse, começariam a reunião. Ninguém tinha comentado nada sobre o incidente da reunião anterior, mas pela cara dos três se percebia que queriam falar alguma coisa.

— Eu não entendi nada do que aconteceu, sabiam? — arriscou Fernando.

— A mãe do Edu é superprotetora, meninos. E não é sempre que ele sai assim de casa para encontrar um monte de gente que, na verdade, ela só viu uma vez!

Fernando já tinha ido à casa do Edu algumas vezes, mas resolveu ficar quieto, pois a amiga não gostava de ser interrompida em seus discursos.

— Eu conversei com ele e tá tudo bem! Ele vem hoje pra reunião. — arrematou a garota.

Passaram os próximos minutos tentando organizar tudo para a reunião e falavam excitados de como se sentiram ao ouvir Eduardo contando sobre o texto. Thiago comentou que sentia que alguma coisa estava para acontecer.

“É, o Objeto Voador Identificado como Mãe do Edu realmente aconteceu!” — zombou Fernando.

Mais tarde, Eduardo bateu cinco vezes, como combinado, e os três apareceram na porta para cumprimentá-lo. Estavam loucos para começar, e ele louco por um gole de suco com gelo. Foram até a sala e Edu se surpreendeu com a organização que tinham feito para a reunião. Depois de se ajeitarem, ele começou.

— A experiência original dos russos aconteceu com oito estudantes que faziam parte do projeto. Em linhas gerais, eles deixaram um computador pronto para receber texto e, juntos, começaram a se concentrar e a enviar ondas de pensamentos para possíveis naves que estivessem ao redor.

Estavam reunidos na sala, sentados ao redor da mesa de centro. Os sofás tinham sido afastados e as almofadas estavam por todo o chão. Ficaram folheando e lendo as páginas traduzidas até que finalmente:

— Isso é moleza, gente! — pelos olhares de todos, Thiago era o único que não desconfiava da aparente ingenuidade do “experimento científico” — Dá o seu iPhone aqui, Edu!

Ele abriu um aplicativo de texto, o cursor piscando na tela em branco, e o colocou sobre a mesa.

— Vamos lá, gente. O que é que custa? — pediu. Sentaram-se confortavelmente ao redor da mesa, com risos entre os dentes. Mesmo Thiago parecia estar mais se divertindo do que de fato tentando uma experiência de comunicação. Mas, mesmo assim, fecharam os olhos para se concentrarem na tentativa de contato.

— De acordo com os escritos russos, — dizia Eduardo, com os olhos entreabertos — se conseguirmos o contato o cursor deverá mudar de posição. Foi assim no começo da experiência dos caras, até que começasse a realmente escrever algo.

O tempo passou e, no silêncio constrangedor de uma experiência completamente fora do comum, mesmo o empolgado Thiago acabou por ceder.

— Que saco! — disse, enquanto começava a abrir os olhos — Coisa de maluco esperar que um cursor ande sozinho no equipamento… Acho que a gente endoid…

Nesse momento, o aparelho sobre a mesa vibrou, fazendo com que todo mundo subitamente olhasse para a mesa.

Thiago parecia ter deslocado a mandíbula que permanecia largamente aberta enquanto olhava encantado para o iPhone com um olhar de meuprimeirocontatoalienígena.

(na versão primeira do conto, os meninos faziam contato de forma “manual” e a caneta dava uma tremida em vez de um celular. eu acabei optando por mudar o meio pelo qual a mensagem chegava para algo mais crível dadas as inovações tecnológicas do momento, mas quando o Wiru fez as ilustrações o texto ainda era o anterior!)

— O que foi isso? — perguntou Eduardo, espantado. Caraco… eu quase nunca recebo ligação e… — olhando nos registros recentes não encontrou nada — isso não faz o menor sentido!

— Olha eu… talvez alguém tenha esbarrado na mesa, afinal, estávamos com os olhos fechados.

— Eu nem sei como reagir… aconteceu mesmo o que eu acho que aconteceu?

Ficaram comentando o acontecido por um longo tempo. Eduardo, vidrado na expressão de vitória de Thiago, nem percebeu quando ele se aproximou e deu-lhe um abraço apertado.

— Valeu, Edu! Poxa, sem você a gente ainda estaria analisando revistas e lendo esses livros enormes! Te adoro, cara!

Eduardo ficou por algumas horas em completo êxtase, não tanto pela vibração do seu pequeno aparelho eletrônico, mas por uma pulsação quase dolorida no coração. Margarete, é claro, percebeu que ele ficara mais vermelho que de costume quando o menino o abraçou e deu-lhe uma piscada de canto de olho.

Passada a excitação inicial, os quatro olharam para o equipamento e nada mais havia lá. Eles sequer podiam dizer onde estava o cursor inicialmente e, então, decidiram por tentar de novo, dessa vez observando o estado inicial.

Mas antes que pudessem começar, a mãe de Thiago chegou com mais pipoca e o cheiro lhes tirou totalmente a concentração.

— Desculpem a interrupção, mas pela cara, vocês parecem ter descoberto um novo planeta! — disse dona Irene.

— É quase isso, mãe! Se for o que a gente tá pensando, o seu filho vai aparecer em revistas e programas de TV do mundo inteiro!

— Só não vale fazer reality show da bagunça do seu quarto!

— Mãe… — disse frustrado — tem que me lembrar, né?

— Olha, está ficando tarde, melhor vocês continuarem depois.

— Mas…

E ela sorriu, e o filho entendeu.

Já no portão, eles se despediam enquanto, falando alto, reviviam a cena anterior já com recheios fantasiosos de todos os tipos.

* * *

As semanas se passaram e outras experiências aconteceram, enquanto Eduardo prosseguia a tradução. Ninguém acreditava muito que a mudança de posição do cursor e mesmo as ocasionais vibrações do equipamento significassem alguma coisa. A ideia de um contato genuíno parecia cada vez menos real, mas um dia:

— Concentração pessoal! É hora de colocar esse negócio pra funcionar! — disse Thiago.

Não passaram mais que dois minutos, durante os quais os pensamentos de Fernando já tinham se esvaído para o sítio na cidade vizinha onde naquele momento ocorria um festival de bandas de heavy metal, quando um pequenobrilho apareceu sobre o aparelho. Thiago arregalou os olhos, mas tentou não fazer nenhum barulho para não desconcentrar os amigos. Caractere a caractere, as palavras se desenharam na tela: “E stamos na escuta ” e Thiago, ao lê-las, quase desmaiou.

Eduardo arriscou abrir os olhos e, primeiro, olhou para a cara de eunãoacreditoqueissoestáacontecendo de Thiago e, em seguida, para seu aparelho celular. Baixinho, ele chamou os outros colegas. Ao que parecia, eles tinham conseguido contato… e mesmo quando os outros abriram os olhos, o pequeno brilho metálico pairava bem próximo do equipamento.

— O que a gente faz agora? — perguntou Margarete, assustada.

O cursor se mexeu na tela, como se pudesse ouvir a pergunta, e as palavras surgiram: “ Estação espacial próxima, encontro pode ser marcado ”.

— Cês tão lendo isso, galera? — Fernando perguntou — Eu tô lendo, mas não tô acreditando! Eles tão chamando a gente para encontrar com eles vê-los pessoalmente?

“Serra Azul, sábado, 9, 23:00 ”, escreveram os caracteres antes de o brilho desaparecer e a tela ser apagada por completo.

— Serra azul? É onde tá tendo o festival de bandas! Eu tava pensando nisso agora mesmo!

— Se estou entendendo direito, isso é um encontro, ou algo parecido, né? — perguntou uma espantada Margarete, enquanto pegava o aparelho para tentar ligá-lo novamente.

— E o dia é sábado que vem! — comentou Fernando. — Mano! A gente vai ter que se preparar para passar a noite na serra!

— Vocês estão pensando mesmo em ir? — Perguntou Eduardo — Gente, na boa. Tá certo que vimos uma coisa impressionante, mas… bem… isso deve ter alguma explicação! — Ele tentava disfarçar o nervosismo e ao mesmo tempo impedir que sua emoção o fizesse acreditar no que sua razão se recusava a crer possível.

Thiago estava silencioso, sério, mas com um brilho intenso no olhar. Parecia estar fora dali, meio longe, inacessível. Lágrimas brotaram dos cantos dos seus olhos. Mas ele sorria.

— Vocês são demais, caras! Vocês são demais! — Disse ele, enquanto abraçava todos os amigos ao mesmo tempo.

— Ok, ok! Eu tenho uma barraca grande e nunca a usei. — Eduardo disse, desistindo de vez do ceticismo.

* * *

Fernando não teve muitos problemas para convencer os pais, afinal, ele tinha sua banda e de vez em quando faziam shows de noite. Além disso, já saíra para tocar com seus amigos no interior. Difícil foi convencer o pessoal da banda a ficar sem guitarrista por um fim de semana inteiro. “Mas a gente temshow semana que vem”, argumentavam. E Fernando respondia: “É uma boa oportunidade para vocês entenderem o que aconteceria se eu ficasse doente no dia do show”.

* * *

Margarete chegou de mansinho:

— Paiê! Eu estou marcando com os meninos do colégio de ir num acampamento na serra, pode ser?

— Ah, conversa com a sua mãe.

Segundos depois:

— Manhê! Eu estou marcando com os meninos do colégio de ir num acampamento na serra, pode ser?

— Fala com teu pai, ele que sabe dessas coisas.

— Ele me pediu pra falar com a senhora! Olha, os meninos são o Thiago, o Nando, que você conhece, e o Eduardo, aquele menino que faz filosofia, do clube, lembra?

— E as meninas? — retrucou.

— Bem, na verdade eu sou a única menina do grupo… mas isso realmente faz alguma diferença, mãe?

Margarete sentiu a mãe investigar sua alma com os olhos. Pensou, pensou, e por fim disse:

— Eu não posso tomar as decisões importantes no seu lugar. Se você sabe o que está fazendo e tomar cuidado, eu deixo… Mas convença o seu pai.

— Mãe, valeu!

Margarete ainda passaria mais algumas horas tentando convencer o pai, que só concordou depois dela insistir muito e combinar de levar os meninos para que o pai os conhecesse.

* * *

Eduardo não sentiu que precisaria de autorização, mesmo assim resolveu avisar aos pais, aproveitando que os dois estavam em casa:

— Eu vou acampar com uns amigos na serra no próximo final de semana! — disse, sorrindo.

— Com quem? — perguntou uma mal humorada Mara.

— Thiago, Nando e Margarete, meus amigos.

— Então, essas reuniões estão rendendo resultados, filho? — disse Alexandre, pai do menino, com um sorriso no rosto.

— Sim, senhor! Vamos levar lunetas e equipamentos para ver se conseguimos avistar as naves! Eu vou levar minha barraca, acho que cabem todos lá!

— Ah, o que meu filho não faz para estar perto da sua namoradinha! — disse, sonhadora, sua mãe.

Eduardo corou, pigarreou e disse que precisava acertar uns detalhes, correu para o seu quarto e foi arrumar as coisas. Vasculhando no canto onde guardava sua barraca percebeu que ela não estava por ali. “Pra quem eu posso ter emprestado… Ah, meu primo Danilo”.

— Mãe, já venho — disse ao sair pela porta, apressado.

Parecia que ia chover.

* * *

Thiago correu para casa, mas seus pais não estavam. “Fomos ao cinema, tem pizza no forno, Te amamos”, dizia um bilhete na cozinha. Thiago queria contar logo para os pais aquela experiência incrível, mas saiu de casa, mesmo o tempo não estando muito convidativo para um passeio. Andou pelos quarteirões, fazendo curvas inesperadas sem muito se preocupar com o caminho, mas sim com os próprios pensamentos.

Uma garoa leve começou a cair e Thiago pensou em voltar, mas logo se viu gostando da sensação da água caindo sobre o rosto. Os noticiários e alguns amigos diziam que a chuva das cidades grandes era ácida e fazia mal.

Chegaria um tempo em que realmente o prazer de “cantar na chuva” deixaria de existir? Thiago, mergulhado em pensamentos e radiante de felicidade, quase nem percebeu quem vinha do outro lado da rua.

— Edu? O que você tá fazendo, correndo na chuva?

— Eu estava indo pra casa do meu primo. Acho que deixei a barraca lá e preciso pegar antes do grande dia! — disse sorrindo, enquanto a garoa começava a se transformar em chuva pesada. Abriu o guarda-chuva.

— É muito longe? — perguntou Thiago

— Pouco mais de dois quarteirões daqui. Quer carona no guardachuva? É caminho pra sua casa!

Eduardo, ainda que sem jeito, abraçou Thiago para que coubessem ambos embaixo do guardachuva.

A verdade é que não adiantava muito, pois a chuva aumentou muito em intensidade e os carros passavam fazendo as poças de água espirrarem nas pernas dos dois, que se divertiam ao tentar se desviar.

— Acho que esse guarda-chuva não está servindo para muita coisa… — notou Eduardo.

— Mas é divertido tentar andar com quatro pernas! Fecha o guarda-chuva e vamos ver quem chega menos seco!

A competição resultaria em empate técnico: Eduardo era bom em chutar a água das poças pra molhar Thiago, que por sua vez pulava alto e puxava os galhos das árvores fazendo cair sobre o outro a água acumulada. Riram juntos sem pensar no possível resfriado que poderia se seguir e celebraram, dançando na chuva, um dia de vitórias compartilhadas.

A chuva lavou calçadas e ruas e passou só depois da madrugada, quando Thiago, empolgado, já tinha contado aos pais sobre a experiência e Eduardo já arrumara as coisas para a viagem. O barulho dos pingos no telhado os fez dormir facilmente.

* * *

Foi uma semana corrida, aquela. Eduardo não checara as salas em que teria aula naquele ano na faculdade e corria de um lado para o outro do campus. Nada de reunião na quinta-feira, era preciso ajeitar tudo para o passeio no final de semana e ainda tinha um trabalho importante de “Filosofia Oriental II” para entregar e o clima esquisito com a mãe. A verdade é que por mais que tentasse evitar, o abraço de Thiago naquela noite de chuva tinha inspirado os sonhos mais felizes de sua vida e era só olhar para qualquer lado, ouvir qualquer som, sentir o vento no rosto, para que a lembrança dele voltasse à sua mente.

Na cabeça de Eduardo circulavam pensamentos que misturavam paixão e dúvida. Já não estava mais preocupado por gostar de um garoto, mas não sabia se Thiago poderia, ou iria, corresponder ao que ele sentia e isso era uma nova tortura. Pretendia dar fim a essa confusão assim que conseguisse resolver tudo na faculdade, mas eram tantas coisas que o final de semana chegou mais cedo que o final das tarefas e ele teve que aguentar um pouco mais.

(também no texto original havia a descrição de um sonho, e o Eduardo estudava teatro em vez de Filosofia!)

* * *

Estava tudo preparado. Barraca, cordas, luneta, telefones celulares, um monte de pacotes de bolacha. Os quatro membros do clube encontraramse na casa de Thiago no começo da tarde do sábado. Eduardo pegara emprestada a caminhonete do pai, deixando-a estacionada do outro lado da rua, ajeitaram todas as coisas na caminhonete e Fernando queria ir “surfando” na carroceria, mas Eduardo não queria perder a carteira de motorista — que sequer era definitiva. Tudo pronto, pegaram a estrada e seguiram rumo ao local combinado na mensagem. Deixaram a caminhonete no pé do morro, já que a estrada a seguir era de terra não dava para seguir adiante sem sujar o carro, e caminharam até anoitecer. A subida era cansativa. A chuva dos dias anteriores havia castigado a região e o solo estava lamacento e escorregadio. Com as pesadas mochilas nas costas, os quatro subiam devagar e paravam de temposem tempos para descansar. No começo, ainda arriscaram cantar, como haviam feito na estrada, mas aos poucos até mesmo conversar já era um desafio.

— Sabem que… eu não… estou acreditando… que isso está… acontecendo? — soltou um esbaforido Thiago — Há algumas semanas… a gente era… um bando de gente… sonhadora e agora somos um bando… de gente andando pela serra… atrás de ET! Caraca… Vocês são demais! E… poxa, ufa… vamos dar aquela salva de palmas básica para o Edu, nosso… passaporte para os alienígenas.

— E motorista particular! — brincou Fernando — Fala sério, valeu, velho!

— Ok, ok, do que mais é que vocês estão precisando? — Eduardo entrou na brincadeira — Que eu os leve nas costas?

E subiam lentamente, enquanto o sol aos poucos ia abaixando no horizonte, deixando pra trás um tom laranja-violeta no céu. Pararam em um dos pontos altos do caminho e olharam para aquela bela paisagem. Era uma daquelas situações que, caso fossem diretores de um filme que contasse suas próprias vidas, eles gostariam de mostrar sob vários ângulos, afinal, estavam ali, quatro amigos vivendo uma grande aventura, com o céu presenteando-os com um cenário dos mais belos. Mas ainda havia um longo trecho pela frente e o cansaço pairava nos rostos de todos eles. Cansados, porém cheios de empolgação, começaram a subir um trecho em linha reta.

— Sabiam que nessa semana mais um navio petroleiro desapareceu no meio do Oceano Pacífico? — perguntou Margarete, entre respirações entrecortadas.

— E se tiver a ver com os óvnis? — Thiago arriscou — Saiu na revista “Discos” da semana passada uma matéria falando sobre isso.

— O que os caras iriam querer com… Hey! E aquele lance de energia que um dia você falou, Maga? Será que eles precisam do petróleo para abastecer as naves?

Margarete levantou as sobrancelhas, contente que Fernando tivesse prestado atenção a ela.

— Talvez, embora eu suspeite que petróleo não seja uma fonte de energia boa o suficiente para fazer viagens espaciais. Faltava pouco do caminho para percorrer; Margarete e Fernando estavam entusiasmados numa conversa sobre energia quando Eduardo pediu um tempo para que ele pudesse descansar. “A gente vai na frente, mas vamos devagar, pode ficar aí e depois você nos acompanha”.

Thiago ofereceu-se para ficar com ele.

O silêncio era cortado somente pela respiração dos dois; a trilha, estreita nesse ponto, tinha duas pedras altas nas laterais e ambos estavam encostados nelas, um de frente para o outro, exibindo o sorriso satisfeito de estarem a caminho da realização daquilo que parecera tão distante até bem pouco tempo.

Eduardo, no entanto, sentia um nó na garganta e precisava fazer algo a respeito. Começou a falar e engasgou. Thiago lhe ofereceu água do cantil.

— Valeu, Thi! Cara, por que é tão difícil a gente falar as coisas mais simples? — começou Eduardo.

— Como o quê?

— Ah, como quando você quer pedir água e o máximo que consegue é respirar ofegante e olhar com cara de vontade para o dono do cantil, coisas assim… ou como… como falar de sentimentos também?

— Acho que sim. Eu não sou muito bom com essas coisas de sentimentos — disse Thiago, sério — Acho que meninas é que sabem falar disso, a gente é diferente.

— É…

Eduardo desistiu da tentativa de contato. Era torturante ouvi-lo falando daquele jeito. Parecia, para ele, que quando Thiago falava que isso ou aquilo era “coisa de menina” ele estava tentando afastálo. Por vezes, parecia até que sabia de algo.

— Eu nem sei direito o que sinto e, às vezes, acho que sou esquisito, que não sou como os outros. — queria cortar o assunto, terminar de vez com aquilo, mas sua fala o traía.

— Tipo…?

— Ah, sei lá, desencana!

— Agora desembucha, já que começou!

— E se eu te dissesse que… — e parou.

— Pô Edu, fala velho. Eu confio pra caraca em você. Pode confiar em mim, cara.

Eduardo suava frio. Não tinha certeza de quanto tempo se passara e no quão longe estariam os dois amigos à frente. Também não tinha certeza se queria ou não falar o que sentia ali, naquela hora, naquele lugar. Aliás, sentia que tudo aquilo não passava de imaginação, que deveria estar mesmo ficando maluco. Engoliu em seco. E, como em todos os momentos em que ficava perdido, Eduardo falou exatamente o que tentava esconder:

— E se eu te disser que curto caras e não garotas? — e baixou o rosto.

Thiago ficou em silêncio, o semblante meio distante, como se pensativo, enquanto Eduardo procurava um lugar entre as pedras para se esconder daquele olhar. Sua emoção, entretanto, falou mais alto que seu controle e ele soltou, de uma vez:

— E se eu te disser que estou a fim de você?

Eduardo agradecia o fato de a iluminação crepuscular ser pouca àquela hora e, assim, evitar que o vermelho em seu rosto denunciasse que ele sentira que falara demais. O olhar de Thiago ainda vagava perdido no horizonte, enquanto Eduardo queria desaparecer dentro da própria camiseta. Sua testa franziu-se e nesse momento Eduardo quase teve um colapso nervoso. Pensou em todas as coisas que todo mundo iria dizer, nas risadas desdenhosas do garoto falando sobre o viadinho que estava a fim dele para os amigos do colégio e no desespero de sua mãe ao saber de tudo. Fechou os olhos como quem espera a explosão de uma bomba em festa junina, ou, pelas batidas do seu coração, uma bomba atômica, e já ia começar a se desculpar quando Thiago começou a rir:

— Caraca! Por que demorou tanto pra dizer, cara? — falou isso indo em sua direção.

Eduardo não sabia muito bem como agir, pensando que após a risada viria uma reação violenta, um soco, um chute ou qualquer coisa assim, e manteve-se encostado à pedra, enquanto os braços de Thiago o envolviam em um abraço. Quando seu peito encostou-se ao dele, Eduardo sentiu as batidas aceleradas do coração do garoto baterem ritmadas com as do seu próprio coração e não teve dúvidas de que ele também estava nervoso. Não entendia ainda o que estava acontecendo, se o nervoso era de raiva ou de tensão, mas arriscou deixar seus braços enlaçarem as costas de Thiago. Suas mãos tremiam, enquanto ele tentava organizar o pensamento.

— Você não tá bravo? — balbuciou.

— BRAVO? Agora que sei que não sou só eu que tô sentindo esse troço esquisito? Eu tô é aliviado.

Nem em todos os sonhos acordados mais otimistas que tivera, Eduardo chegara a cogitar essa possibilidade. Bem certo era que ele queria que Thiago correspondesse ao que sentia, mas não imaginava que ia acontecer assim, tão naturalmente. Empurrou-o de leve para trás e olhou em seus olhos molhados pelas lágrimas que haviam brotado enquanto se abraçavam. O suor da caminhada desarrumara seus cabelos, mas ele parecia ainda mais belo agora. Os olhares cruzaram-se por apenas alguns segundos, brilhantes na pouca luz, mas o suficiente para eternizar a imagem daquele momento em cada uma daquelas duas vidas que finalmente se encontravam. Os dois rostos curvaram-se em direções opostas, tocaram-se a pele das faces e um calor único invadiu-os ao mesmo tempo. Os lábios roçaram-se de leve e o beijo veio natural, sem medo. Ficaram por ali, se abraçando, por um tempo infinito, aconchegando-se na compreensão e corpo um do outro. Quando Thiago desencostou sua cabeça do peito de Eduardo e olhou-o de novo, sua mirada atravessou-o.

Seus olhos brilharam radiantes, ao mesmo tempo em que ele o empurrava para trás com força. Eduardo sentiu-se péssimo, pensando ter feito algo errado. Thiago, entretanto, sorria cada vez mais e olhava fixamente para frente.

— O que… — quando Eduardo virou-se na direção em que Thiago olhava ele também avistou as luzes. Eram quatro fortes brilhos com movimentos ritmados.

Thiago começou a gritar de alegria.

— Eu não acredito. Eu não acredito, Edu! Olha só o que… — e, enquanto falava, corria em direção às luzes. Mas ao olhar para elas esqueceu-se do chão. E caiu pelo barranco, desaparecendo na lateral da trilha.

Eduardo entrou em pânico e gritou desesperado, enquanto tentava, em vão, segurar sua mão. Eduardo gritava, chamando-o, e os amigos que já voltavam viram quando ele começou a se esgueirar e tentar descer pela encosta. Fernando segurou-o.

— O que aconteceu? A gente tava voltando porque vocês demoraram.

— O Thiago caiu. Eu vou descer.

— Você não vai conseguir, Edu. Olha como o barranco é íngreme, precisamos pedir ajuda. — Margarete tentava manter a calma, mas estava em pânico.

— Vão vocês, eu vou tentar achar ele. Eu vou devagar, não vou me machucar. Vão! VÃO!

E os dois correram de volta pela trilha, enquanto Eduardo amarrava a corda que estava no meio dos seus equipamentos a uma árvore na ponta da trilha e tentava descer pela encosta. Não havia corda suficiente e ele precisava de um meio de descer sem se machucar muito. Olhava para baixo, tentando definir os contornos de Thiago em meio às sombras, quando viu um brilho intenso e ouviu um barulho que não soube definir exatamente o que era. Tudo, a partir de então, aconteceu de modo automático, sem controle. Após vencer o barranco, ele correu até onde imaginava que Thiago pudesse estar, mas ele não estava lá. Gritou por ele, procurou em todo lugar, mas ele tinha desaparecido.

— THIAGO, pra onde eles te levaram? Cadê você? — gritava ao vento.

E, caminhando a esmo, as pernas bambas de cansaço e nervosismo, ajoelhou-se a tempo de ver um brilho subindo de perto de onde achava ter ouvido aquele som.

Os olhos queriam fechar-se, o mundo girava ao seu redor, mas ele resistia. Viu algo se aproximando, um brilho intenso chegando mais perto, um corpo esguio e braços longos que vinham em sua direção. Eles o seguraram e daí, nada.

* * *

— Edu! Eduardo!

— O… oi… — abrindo os olhos lentamente, ele tentava reconhecer quem estava ali.

— Mano! Mano! Mano! Mano! — a repetição, o barulho, uma dor repentina…

Eduardo tentava ouvir a voz de Fernando, buscando dar forma um pensamento que, no entanto, não vinha por inteiro. Ao focalizar o olhar, viu-se caído no pequeno trecho descampado. A sua frente, seu amigo com ambas as mãos no rosto, Margarete com o olhar mais sério que já tinha visto e mais à frente um objeto que, mesmo na pouca luz daquela noite sem lua, parecia prateado e brilhante. Saindo dali, encaminhava-se uma figura na direção deles.

O sorriso naquele ser que se aproximava era surreal e ao mesmo tempo encantador, mas que despertava nele um milhão de perguntas. Thiago fez questão de ajudá-lo a se levantar, abraçar-lhe com um carinho quase esmagador e dar-lhe um beijo. Os outros, ainda perplexos, olhavam ambas as cenas e não conseguiam esboçar qualquer reação.

— Mano! Olha isso, Maga! Tem um disco voador ali do lado, e esses dois… eles, mano!

— Thiago, Eduardo! Meu, a gente ouviu um barulho horrível, achamos um jeito de descer pra cá e chegamos a tempo de não deixar o Edu cair desmaiado. O que tá acontecendo?

— Eu também não sei! — gritou Eduardo, espantado, ainda segurando Thiago pelas mãos e olhando para ele em busca de resposta.

— Eu caí. Mas nem doeu — e naquela hora olhou para as pernas, uma mancha vermelha escorria por toda a extensão do lado esquerdo, visível por um rasgo na calça jeans, sua camiseta, avermelhada dos ferimentos, também estava em pedaços próximo à barriga — Eu só queria ver o que tava acontecendo. Eu andei o máximo que pude e vi quatro naves. Elas estavam fazendo manobras estranhas e uma delas… uma delas caiu e eu fui até lá correndo…

Parou e, apoiando-se em Eduardo, sentou-se no chão e começou a olhar o ferimento, aumentando o rasgo na calça.

— Mano! Tem alguma coisa lá?

— Eu não vi nada, só a nave, eu não consegui correr muito, pra dizer a verdade. — e ele sorria, contrastando com o desespero do amigo.

— Thiago! Eu sei que era o que você queria, mas você tá machucado, a gente tá longe de casa, e tem uma nave espacial a menos de cem metros da gente. A gente precisa sair daqui.

— Não! — manifestou-se Eduardo pela primeira vez — Cuidem dele aqui. Eu vou lá ver o que é.

A expressão resoluta não deu margem a que os amigos questionassem. Ele acariciou de leve os ombros de Thiago, levantou-se e foi em direção ao objeto que já não voava. O insólito da situação fez com que seu cérebro recorresse a pensamentos aleatórios. Decidiu que leria mais DC do que Marvel dali por diante, que trancaria a disciplina de “Estudos Antropológicos”, decidiu que não importasse o que acontecesse nunca mais deixaria Thiago sozinho.

Seu coração extraía coragem da vitória que tivera ao mostrar seus sentimentos. Mais cinco passos e estaria lá. Olhou para trás; Thiago o encarava fixamente, franzindo a testa enquanto Margarete ajudava-o a limpar o ferimento da perna, mas tentando sorrir mesmo assim, encorajando-o.

Não parecia muito grande, o objeto. De fato, Eduardo perguntou-se se havia possibilidade de alguma coisa estar ali dentro, pois não parecia haver espaço para mais do que uma pessoa agachada.

Ele tirou o celular do bolso; a iluminação do aparelho ajudou-o a identificar os contornos do objeto, andou em volta procurando por aberturas, fissuras, qualquer coisa que lembrasse uma entrada. Nada encontrou. Não sentia cheiro de queimado, nem ouvia qualquer barulho. Tocou o objeto, já imaginando sentir o frio do metal. Era morno. E ao seu toque ele pareceu estremecer por um instante. Continuou a dar a volta e, então, notou um feixe de luz.

— Hey! Espera. Não vamos deixar você aí sozinho.

Thiago vinha caminhando, com um galho sob o braço para apoiar a perna machucada. Fernando e Margarete vinham logo ao lado, com olhar de nãomeculpefoielequemsaiuandandosemnosconsultar.

O pequeno feixe de luz, diante de todos, aumentou de espessura, contornou por cima e pelos lados, formando uma espécie de moldura. Vagarosamente, uma espécie de painel luminoso revelou-se por detrás de uma pequena placa que descia em diagonal. A parte frontal mostrava caracteres que nenhum deles conseguiu entender, nem mesmo o letrado Eduardo. Thiago aproximou-se e tocou a placa. A nave iluminou-se, deu sinais de movimento, mas em seguida perdeu todo o brilho e mesmo o painel se apagou.

— Não cabe gente aí dentro! — Fernando foi o primeiro a manifestarse.

— A não ser que os aliens sejam anõezinhos.

— Eu acho que esse negócio deve ser controlado de fora. — disse Thiago olhando para cima.

E só então eles pareceram lembrar-se onde tinham avistado as naves no começo de tudo.

Ao longe, um ponto de luz brilhou mais forte por cinco vezes. E desapareceu.

* * *

— Isso é insano, mano! — disse Fernando, com as mãos para cima.

— Olha, agora com a luz do sol surgindo dá pra ver que esse negócio é pequeno. A gente pode cobrir com a barraca e ninguém vai ver a gente levando! — sugeriu Thiago.

— Uma hora a gente vai ter que contar pra alguém — Eduardo interveio.

— Sim, mas até lá precisamos entender o que é isso. Esses… caras, ou seja lá o que for isso, marcaram um encontro com a gente, mandaram essa espécie de sonda aqui, não foi? Talvez a gente consiga voltar a falar com eles usando isso!

— Eu concordo com o Edu! — disse Margarete, pensativa — Olha, seja como for, a gente tá nisso até o pescoço. O Eduardo tá literalmente coberto de lama e o Thiago tá com um machucado assustador na perna…

— Nem tá doendo…

— Eu acho que a gente tem que levar essa história até o fim. Não podemos deixar como está, não depois de tudo pelo que passamos. E discutiram ainda por um longo tempo, até que a luz do sol começou a surgir fazendo tudo parecer muito menos assustador. Enquanto não chegavam a um consenso, Thiago e Eduardo se esbarravam o tempo todo, de propósito, com sorrisos tão grandes que brilhavam mais que o objeto que haviam encontrado, sorrisos que Margarete parecia estar adorando ver. Já Fernando se mostrava mais assustado com aquela situação do que com a aparição da nave e, por fim, também resolveu que levar o objeto na caminhonete seria a melhor opção.

— Eu vou tentar trazer a caminhonete mais pra cima na trilha. Vocês — disse, apontando para Maga e Fernando — tentem arrastar isso pro lugar de onde desceram pra nos achar. Vem comigo, Thiago?

E foram. Desceram a trilha felizes, as mãos resvalando-se com frequência, por vezes trocando olhares demorados. E conversaram, entre risos complacentes, sobre o que tudo aquilo poderia significar para ambos, dali para frente. Não sabiam o que viria a seguir, o que teriam de enfrentar, mas sabiam que suas vidas jamais seriam as mesmas, não depois de tudo o que acontecera, não depois de terem um disco voador na garagem.

imagem do título editada a partir de: http://www.freeimages.com/photo/green-garage-1200445
ilustrações de Will Oliveira:
http://www.facebook.com/dabliuoh/

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