Invisível no Pampa — Por que a literatura ambientada no RS rural não retrata personagens gays?

Thiago S. de Souza
Cabine Literária
Published in
6 min readAug 17, 2016
Na literatura gaúcha, não se tem notícias de personagens homossexuais no Rio Grande rural.

Quando se pensa no homem do Pampa, o imaginário forjado no Rio Grande do Sul traz à memória o gaúcho de bombacha, laço na mão, à vontade e majestoso sobre o lombo de um cavalo também viril. Másculo, forte, heterossexual, sua mulher sabe que deve esperá-lo em casa com a comida quente, mesa posta. O tom de voz é sempre mais alto do que o necessário, as palavras são curtas e grosseiras. Quem destoa desse estereótipo é visto com desconfiança e preconceito, um estrangeiro que supostamente envergonha as tradições do Estado.

Na literatura gaúcha, não se tem notícias de personagens homossexuais neste Rio Grande rural. Ninguém sabe ao certo o que leva o escritor a ignorar a ideia de que, na solidão do Pampa, um homem possa se envolver e se apaixonar por outro. O professor de Literatura da UFRGS Luís Augusto Fischer não consegue se lembrar de ter esbarrado em um gay nas suas leituras de ficção sobre o interior do Estado: “Não sei dizer os motivos de não serem representados, mas, mesmo na literatura dos Estados Unidos relativa ao cowboy, isso me parece ser raríssimo também, não é?”

“O homossexual não era tão visível, tão identificado, se protegia muito. Ele era invisível para a sociedade e, consequentemente, para a literatura. Os autores tinham certo pudor para tratar disso”, admite Luiz Antonio de Assis Brasil, reconhecido escritor de romances históricos. “O assunto era interdito, o preconceito, visível, agora é que as coisas estão amainando. O mesmo ocorre com outros assuntos percebidos como tabu e que agora estão sendo desvelados, como a ditadura militar”, opina a crítica literária Léa Masina.

Fischer explica que, embora não tenha criado personagens do Pampa gays, Assis Brasil fez um arranhão no mito gaúcho. Em seu livro A prole do corvo (1978), um sujeito é tido como covarde por não ser o tipo gaúcho-valentão-macho e resistir em ir para a guerra. “Tem uma análise que faz uma antítese entre o Capitão Rodrigo, do Erico, e o meu personagem”, observa Assis Brasil. “Ao situar o seu relato num espaço histórico tornado mitológico (a Revolução Farroupilha) por interesses evidentes daquele patriciado, Assis Brasil evitou a celebração épica do gaúcho — auto-imagem elogiosa da oligarquia rio-grandense, tão comum em textos artísticos e historiográficos”, escreveu Sergius Gonzaga à época da publicação do romance.

O épico O tempo e o vento (1949–1961), de Erico Verissimo, não admite a possibilidade de haver um homem gay no interior do Rio Grande do Sul ao reconstruir sua fundação e história política. “O silêncio é bastante significativo. Assentada em um tipo misógino, como o gaúcho histórico, e guerreiro, como o literário, não é esperado que tenhamos esse tipo de figuração mesmo”, comenta o historiador Jocelito Zalla. Em meio a guerras, confrontos marcados por banhos de sangue e disputas extremas de poder, a figura do gaúcho é reafirmada como o homem destemido por natureza e capaz de tudo — menos de se envolver afetivamente com outro homem.

No entanto, em Incidente em Antares (1971) Erico sugere que a homossexualidade estava escondida da sociedade: na trama, os mortos “acusam”, entre outras coisas, alguns vivos de serem gays, meio que expondo essa ideia de que a relação entre pessoas do mesmo sexo era considerada constrangedora na época, por isso permanecia invisível. “A infidelidade conjugal e a homossexualidade velada são trazidas ao conhecimento do povo, no sentido de desmascarar os falsos defensores da moral e dos bons costumes”, explica a professora de Letras da UFRGS Márcia Ivana de Lima e Silva, em artigo sobre o livro. Há ainda o personagem Menandro Olinda, pianista suicida da trama, que, por ser uma figura culta, é visto por alguns leitores como um homossexual no armário. “Uma tópica comum em culturas muito machistas é associar arte e ‘degeneração’ sexual”, diz Zalla.

Erico escolhia com cuidado os nomes que dava a seus personagens. Tibério Vacariano, prefeito da cidade fictícia de Antares que lembra o jeito autoritário de Getúlio Vargas, tem essa função burlesca. “De maneira irônica, o chefe de Antares, que faz sempre questão de destacar sua virilidade, recebe nome de uma figura histórica conhecida por suas tendências homossexuais”, avalia Valeria Cristina da Silva, em sua dissertação de mestrado em Literatura Brasileira. Foi o último romance escrito por Erico, publicado em 1971, em plena ditadura militar. O continente, que abre a trilogia O tempo e o vento, é de 1949. Talvez venha daí, dessa distância entre as épocas, o fato de Erico ter se sentido mais à vontade para abordar, mesmo que de forma tímida, a homossexualidade.

Brandino, personagem da novela O príncipe da vila (1982), de Cyro Martins, é um rapaz de uma pequena cidade da fronteira entre Brasil e Uruguai que não carrega as características estereotipadas do gaúcho dominantes na literatura. “Brandino é um sonhador, agrada às mulheres por sua delicadeza e suavidade”, define Léa Masina. “É a personagem que mais se aproxima do gay na literatura gaúcha. Mesmo assim, acho que Cyro Martins pretendeu criar uma personagem diferente, meio fora do espaço. Não tenho certeza se gay.”

***

Ex-aluna de Assis Brasil na tradicional oficina de criação literária que ele desenvolve na PUCRS, Carol Bensimon, 32 anos, é uma das representantes da contemporaneidade da literatura gaúcha. Em seu último romance, Todos nós adorávamos caubóis (2013), criou duas personagens lésbicas, protagonistas de uma trama recheada de afeto. “Minha ideia era construir uma relação ambígua entre as personagens, uma amizade que está misturada com um certo erotismo e cujas fronteiras se confundem”, explica a escritora. Apesar de viajarem pelo interior do Rio Grande, as gurias são urbanas e até mesmo cosmopolitas. Carol também não lembra de ter topado com um gaúcho gay em suas leituras e não sabe apontar com certeza por que os escritores não tratam do tema. “Não sei se há dificuldade, medo ou apenas falta de interesse. Eu apostaria nessa terceira opção. Para quem escreve sobre esse Rio Grande do Sul rural, muito apoiado na tradição, esse homem gay deve ser invisível”, acredita. “Imagino que algumas pessoas deixem de comprar o meu livro por causa da trama. Uma livreira me falou isso. E ela estava falando de pessoas mais velhas. Mas em nenhum momento pensei em pegar mais leve para não chocar.”

Em Luzes de emergência se acenderão automaticamente (2014), mais recente romance da escritora gaúcha de 23 anos Luisa Geisler, Henrique começa a escrever cartas para o amigo Gabriel, em coma depois de bater a cabeça em um acidente banal. Nos textos, vai registrando a vida que continua enquanto o amigo está inconsciente. Assis Brasil vê aí mais que o simples sentimento de amizade. Mas também são personagens urbanas, criadas por uma autora urbana. “O Pampa ainda é um espaço conservador em um imaginário coletivo. E ser gay às vezes é uma transgressão tão grande que parece não combinar. Os autores que trazem estes temas contemporaneamente são autores urbanos, então não é que não queiram tratar do Pampa gay, mas não têm esse perfil de escrever sobre o Pampa”, analisa Luisa.

A temática homoerótica é o eixo central das narrativas de Caio Fernando Abreu, morto em 1996. As obras do escritor gaúcho são reconhecidas por evidenciar a repressão e o preconceito da sociedade contemporânea contra aqueles que tinham a coragem de assumir a verdadeira identidade sexual. Seus personagens, na sua grande maioria, são urbanos. Mas a professora Márcia Ivana aponta, no conto Além do ponto (1982), um movimento interessante na literatura de Caio: o personagem homossexual, protagonista e narrador da história, sai do Interior para a cidade grande, no caso Porto Alegre, onde caminha pela chuva para ir ao encontro do seu parceiro. Esse movimento só evidencia a (triste) necessidade de sair do Pampa para assumir a condição de homossexual.

[este texto foi publicado originalmente na edição de dezembro de 2014 da Revista Experiência da Famecos/PUCRS]

--

--