Me chamam de louca, por Zadie Smith

Janaína Azevedo Lopes
Cabine Literária
Published in
9 min readMar 25, 2017

Este é um conto de Zadie Smith em que ela trava diálogo com Billie Holiday. Foi publicado como introdução no livro de fotografias da cantora, a ser lançado este ano. O original pode ser lido aqui. A tradução é minha.

Bem, com certeza você não sai por aí menos do que bem vestida, não por esses dias. Não dá pra deixar ninguém te confundir com aquela garota pobrezinha e inadequada, Eleanora Fagan. Não. Que não façam nenhuma confusão. Nem o público, nem o seu senhor, o pessoal do hotel, os policiais ou os malditos agentes da maldita Receita. Você sempre terá seu vison, presente e correto, pendurado assim nos seus ombros. Pegue seu vison, suas pérolas. Mas não cante aquela canção, não está no seu tom. Deixe que outra garota a cante. Aquela do tipo que arranca um sorriso de um policial mesmo que esteja cruzando a Broadway no seu vestido mais velho e simplório. Você não tem esse luxo. Além disso, você ama aquele vison! Esclarece as coisas. Na verdade — e apesar de muitos não estarem a par disso ainda — não apenas Eleonora não existe mais, Billie não existe mais também. Há apenas a Lady Day. Bolsa de jacaré, três voltas de lindos e imensos diamantes no seu pulso — não importa que seja três da tarde. Você cozinha um ovo de conjuntinho e pérolas.

Te emboscaram em Newark pelo período de um contrato, e um dia a esposa de um chefão diz para você Então você não pode mais cantar em Nova York, hein? Quem se importa? Para mim, você sempre parece uma dama. É uma italiana. Ela entendeu. Sem julgamentos. Ela disse “vou cuidar de você. Serei sua mãe. Deus a abençoe, mas seus dias de filha acabaram. E se alguns adolescentes, queridinhos e bobinhos, bem empolgados, pararem você na 110th para dizer o quanto amaram você no Carnegie Hall, o quanto amaram você no Tonight Show, se esforce ao máximo não parecer tão entediada, pegue sua cigarreira de pérolas e lhes dê um cigarro. Amiga, você deve doar vinte cigarros por dia. Você dá tudo, você transborda, como rios encontrando o mar: amor, música, dinheiro, cigarros. O que você tem, todos querem — e quase todos os dias você os deixar levar. Às vezes tudo o que você consegue fazer é segurar o seu vison.

Não é que você não goste de outras mulheres, exatamente, é só que você é cautelosa. E elas são cautelosas com você. Nenhuma surpresa, na verdade. A maioria destas garotas vive em um mundo completamente diferente. Uma vez você já conheceu esse mundo, mas não é o seu lar. Você voltará logo pra estrada. Enquanto isso, eles te olham e vêem que você é solta — mesmo quando está engatada — vêem que você flutua, que ninguém lhe diz quando ir embora, e que não há ninguém chorando no bercinho esperando que você lhe pegue no colo e cante uma musiquinha. Não, ninguém diz quem você deve ver ou onde deve ir, e se dizem, você não precisa ouvir, mesmo que leve um soco na cara. E as mulheres que você normalmente conhece? Elas não sabem o que fazer. Elas não sabem o que fazer com a abençoada, com a garota que luta por suas coisas, que pode ficar bebendo com o clarinetista até que a hora do entregador de jornal chegar. E talvez uma dessas sirigaitas seja casada com aquele clarinetista. E talvez duas delas tenham filhos e uma casinha com cerca e toda aquela história. Então, é claro que ela é cautelosa. Dá pra entender. Claro.

E você sempre foi….ahn, qual é a palavra certa mesmo? Uma dama de senhores? Você atrai homens, todos os tipos deles, e não só os óbvios. Seus melhores “amigos” são homens, se é que você me entende, sim, você tem seu timezinho de queridos que não são diferentes de você, apesar das aparências: eles também não têm uma pessoa fixa com quem ir pra casa. Então, se algum amante parte seu coração, ou a sua cara, você pode contar sempre com sua ganguezinha, confie que eles virão onde quer que você esteja, com cigarros e bebidas, e citar Miss Crawford, e Miss Stanwyck, e fazer drinks, e te dizer que você tem que adotar um cachorro, mesmo. Querida, você tinha que ter um cachorro. Eles nunca duvidam que você é a Lady Day — na verdade, eles sabem que você era Ela antes de ser você.

Você adota um cão.

Mulheres são desconfiadas, amantes vêm e vão e a maioria te deixa esperando, e vamos falar a verdade, até aqueles queridos que fazem drinks têm seus próprios esquemas, claro. Mas você não tem medo de procurar por amor em todos os lugares. Uma vez existiu uma menina rebelde, Tallulah, como outras moças, mas naquela época, há muito tempo, não podia se comportar assim — e você nem ficava sabendo — e mesmo assim a maioria das damas era louca de atar. Ninguém é perfeito. O que é outro jeito de dizer que ninguém se salva desse mundo. Então de vez em quando, numa sexta à noite, depois que o show acaba e o aplauso cessa, simplesmente não há ninguém nem nada a ser feito. Você só pode contar consigo mesma. O backstage fica deserto, mas ainda estão servindo. Você não está com humor pra conversas.

Mais tarde, você abrirá sua necessaire e viajará com a luz — mas agora, está satisfeita com seu cãozinho. Na verdade você já teve uma cachorrona enorme, mas ela vivia quebrando copos, e daí ela morreu, mas agora você tem esse anjinho. Pepi. Um cachorro não mente, um cachorro não trai. Cachorros lembram você de você mesma: eles te dão tudo o que têm, estão abertos para o mundo. É um risco! Há pessoas que chutariam um cachorrinho minúsculo como o Pepi só pra ter o que fazer. E você sabe como é isso. Esse cachorrinho e você? Almas gêmeas. Onde você esteve esse tempo todo? Ele é tipo aqueles cachorros que se ouve falar, que sentam no túmulo do dono por anos e anos e anos. Esses dias você teve uma visão disso. Você estava na estratosfera, sem nenhum corpo, quase lá com Deus, você estava pendurada em portões de pérolas, e ninguém nem nada conseguia fazê-la voltar. Um idiota te batia, outro babaca jogava água na sua cara — nada. Então esse anjinho de cão lambeu bem no seu olho e você voltou à terra só pra sentir, e três horas depois você estava no palco, ganhando dinheiro. Cachorros são bons demais pra esse mundo.

Talvez muitas pessoas não imaginariam, mas você pode ser a melhor tia, madrinha, babá, quando você está no clima, Você pode olhar para um bebê no outro lado da sala e fazê-lo sorrir. Uma habilidade e tanto! A maioria das pessoas sequer desenvolve isso! As pessoas estão sempre dizendo para esses bebês o que fazer, o que pensar, o que dizer, o que comer. Mas você não espera nada deles — e esse é o seu segredo. Você é uma das poucas que apenas gosta de fazer um bebê sorrir. E eles te amam por isso, não se engane, te adoram, e se fosse possível você ficaria mais tempo, você ficaria e brincaria, mas você tem contas para pagar.

Na verdade, lá embaixo nesse exato instante tem cinco ou seis desses companheiros com a mente nos negócios, alguns você conhece bem, alguns não, alguns você nunca viu antes na vida, mas eles estão todos envolvidos com suas contas de um jeito ou de outro, e se eles dizem que, se você não se importar, gostariam de te acompanhá-la até o clube. São só dez quadras, mas eles querem levá-la até lá. Eu imagino que alguém acha que você não vai chegar lá sem todos esses — como chamar? Acompanhantes. Acho que alguém está preocupado. Mas com ou sem seus acompanhantes, você chegará lá, você sempre chega, você é pontual, exceto aquelas exceções quando coisas excepcionais acontecem quando simplesmente não têm solução. Enfim, quando você abre a boca, tudo é perdoado. Até você se perdoa. Porque você é excepcional, e exceções devem ser feitas. E não é que, sempre que uma dama sobe ao palco, ela está na hora certa?

O cabelo demora, o rosto demora mais um pouquinho. É tudo trabalho, é tudo uma espécie de armadura. Você ficou magrinha um tempo atrás e alguns caras não gostaram, um até lhe disse que você ficou com um rosto de máscara egípcia da morte. Bem, que bom! Você usa, é sua. Lábios vermelhos e agora esse rabo de cavalo balançando — as gardênias estão no lugar, as gardênias pertencem à Billie — e se alguém pergunta exatamente de onde esse novo tufo de cabelo vem, você vai olhar pra quem quer que esteja perguntando isso e dizer, Bem, estou usando, então acho que é meu. É o meu cabelo na minha maldita cabeça. Está arrumado assim em torno da minha linda máscara — olhe bem! Como você sabe que estão todos olhando bem enquanto você canta, você a coloca bem nos holofotes, sua máscara da morte, porque sabe que eles não conseguem evitar de investigar sua alma naquele rosto, é o instinto deles procurar ali. Você pinta o rosto como proteção. Desenha as sobrancelhas, define os lábios. É a fronteira entre eles e você. Caso contrário, todos os presentes pensariam que têm permissão para pular na sua garganta e comer seu coração.

As pessoas perguntam: Como é estar lá? É como comer seu próprio coração. É como se não tivesse ninguém lá no escuro. Todos os homens do centro e as moças brancas com suas peles chiques amam falar sobre a forma com que você canta — é moda falar sobre a forma com que você canta — mas é como uma revolução para os outros o que para você é apenas comum. Todo respeito a Ella, todo respeito a Sarah, mas quando essas gurias abriam suas bocas para cantar, bem, para você é como se alguém abrisse uma geladeira novinha. Um vento frio avança sobre você. E você não consegue fazer isso. Não vai. É óbvio para você que a voz tem a mesma função, musicalmente falando, do que o sax ou o trumpete ou o piano. Uma voz tem que sentir seu caminho. Quem não sabe disso? Ainda assim, de algum jeito essas pessoas não agem como se soubessem, estão sempre surpresos. Sentam no escuro, bebendo martinis, com seus visons, seus ternos. As pessoas são idiotas. Você usa pérolas e as joga aos porcos, mais ou menos. Depende das pérolas, porém, e dos porcos. Nem todo mundo, por exemplo, vai entender Strange Fruit. Nem todas as noites. Eles têm que merecer — uma palavra que significa coisas diferentes a cada noite. Certa vez você disse a alguém, Eu só canto pelas pessoas que entendem e apreciam. Não é uma musiquinha June Moon Croon. Essa música conta uma história de dor e mágoa. Trezentos anos de mágoa! Você tem que transformar cada lugar em que toca em uma igreja para acomodar tanta dor. Ainda assim as pessoas gritam seus pedidos de suas mesas, como se você fosse uma maldita jukebox! As pessoas são idiotas. Você nunca diz nada depois de Strange Fruit. É a última música não importa o que aconteça e de vez em quando, se você já está alta, e a primeira fila parece rica e burra e idiota, provavelmente essa é sua única canção. E eles ficarão agradecidos! Mesmo que não seja fácil de ouvir e pra você, não seja fácil de cantar. Quando você canta, dizem que você está punindo, dizem que você é implacável. Bem, eles vão ter que ouvir a canção até que você a termine. Você nunca vai terminá-la. Ela vai terminar com você antes.

No fim, as pessoas não querem ouvir sobre cachorros ou bebês e encontrar o caminho da frase ou devorar seu próprio coração — as pessoas querem ouvir sobre como você aparece nessas canções. Eles nunca querem saber sobre a surpresa que você tem consigo mesma, a sensação de ser dirigida por Deus, quando algo na modulação de sua garganta salta, como uma criança alcançando um balão que voou alto, exceto que a maioria das crianças o perdem, e você o captura — sim, você captura quase sem esperar — pousando naquela nota incidental, uma adição perfeita, uma que você nunca colocou naquela frase antes, e nunca ouviu ninguém fazer, e mesmo assim você pode ouvir que isso é a perfeição. Perfeição! Tem o som de algo totalmente inevitável — é melhor que Porter, é melhor que Gershwin. Em um momento você criou por cima das versões originais e….

Não, ninguém te pergunta sobre isso. Eles querem os fatos concretos. Perguntam coisas idiotas sobre as canções, sobre qual homem está em qual música na sua mente, e se são um pouco mais sérios podem perguntar sobre Armstrong, ou Basie, ou Lester. Se são ardilosos sem educação, vão querer saber se caçar drinks faz com que cantar seja mais difícil ou mais fácil. Eles vão querer saber sobre seus problemas com o governo destes Estados Unidos. Vão querer saber se você odiou ou amou as pessoas do público, as pessoas que pagaram seu cachê, roubaram seu dinheiro, te prenderam por confraternizar com um homem branco, te encarceraram por prostituição, te botaram atrás das grades, e invadiram seu quarto de hospital, bem no fim, enquanto você conversava com Deus. Eles estavam sempre interessados em saber que você não lê música. Uma vez, você quase disse — para um camarada maldoso do Daily News, que questionava — você quase virou pra ele e disse eu SOU música, seu filho da puta. Mas uma dama não fala assim, de qualquer jeito, então você não o fez.

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