O inverno está chegando… De que lado você vai estar?

Um debate sobre frio, política, Jogos Vorazes e como os fins não justificam os meios.

Cesar Sinicio
Cabine Literária

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por Cesar Sinicio

Uma breve edição, diretamente do inverno de 2021: os cenários políticos se acirraram, a necessidade de entender os limites da tolerância — como no paradoxo de que Karl Popper falou — parece-me um adendo importante.
É um tempo em que, na cidade de São Paulo, o trabalho de um padre chama a atenção por distribuir comida e isso é visto como um problema (aparentemente maior do que o fato de que há pessoas vivendo em situação de rua e com fome). Sinto, portanto, que vale dizer que esse meu ímpeto de união, busca por coesão e pontos de contato é — como apontei no texto — uma busca utópica; e da utopia como guia para onde se quer estar. Se eu fizer um novo adendo daqui há 6 anos, torço para que seja na direção de reconhecer que parte do que queria que acontecesse já se encontra em curso. Resta torcer — e lutar!

Reparei num anúncio da Campanha do Agasalho 2015 da Prefeitura de Curitiba que mostrava uma moça pegando um casaco velho do armário e o doando num ato de gentileza.

É um belo cartaz, e uma campanha necessária. Mais do que isso: é uma imagem que provoca um questionamento importante a respeito dessa nossa tendência de acumular sem pensar no que pode fazer diferença para alguém. Já vi livros e apostilas de vestibular no lixo de algumas casas, e fico maluco de pensar que a pessoa sequer tenha considerado doar para algum lugar que possa precisar e onde tais coisas possam ser úteis antes de simplesmente descarta-las!

Mas ainda há algo além…

Então o meu ímpeto de me perguntar o que há por trás das coisas fez pensar que, se por um lado é lindo e fundamental que a gente solidarize com o sofrimento do outro e busque aplacá-lo; por outro lado também é fundamental que a gente questione que sociedade é essa em que algumas pessoas acumulam casacos no armário enquanto outras moram na rua sem ter o que vestir.

E eu fico orgulhoso de hoje ser capaz de enxergar um pouco melhor a cadeia produtiva e as relações de classe que estão para além daquilo que está aparente no mundo.

Isso significa que embora o cartaz faça sentido, a realidade que subjaz a sua existência precisa ser questionada. Combatida, até! Afinal, igualdade quase nunca é direito dado, legalizado.

É quase sempre uma luta conquistar o espaço de existir de maneira mais justa e boa.

Veja os exemplos dos heróis que admiramos, como por exemplo quando Harry Potter vê seus colegas ameaçados pela constante negação pelo Ministério da Magia de que Voldemort teria voltado. Ele sabe da ameaça que paira sobre os estudantes, mas o fato da instituição normatizadora dizer que está tudo bem faz com que as pessoas não vejam o que há por trás desse movimento político e isso as ameaça. E o menino que sobreviveu precisará lutar para mostrar que estava certo. Quando Katniss Everdeen percebe que não é apenas uma questão de ganhar ou perder os Jogos Vorazes, mas que o sistema que sustenta tal prática é algo que precisa ser combatido, terá arrancados de si quase tudo que ama, mas lutará para chegar além.

A maneira como escolhemos lutar nos transforma

Entretanto, visualizar os lados da questão de forma mais ampla não quer dizer que você precise se armar contra tudo que for minimamente diferente do seu argumento. É preciso olhar, mas é preciso olhar com calma.

Entendamos: é fundamental que se questione o fato de gente ter agasalho e outras precisarem de uma campanha.

Mas isso não quer dizer que as pessoas que passam frio não precisem de agasalho enquanto a gente conserta a sociedade.

É preciso, portanto, enxergar os espaços de construção intermediários como passos em uma jornada que provavelmente jamais terá fim. A utopia, Eduardo Galeano já dizia, é olhar para o horizonte para continuar caminhando.

É fundamental que a gente reconheça que nas narrativas que lemos, enquanto Harry Potter e Katniss aparecem na “lente” do narrador, tem um monte de gente morrendo nas guerras que continuam acontecendo enquanto os heróis dormem. E é óbvio que não dá pra cada um individualmente dar conta de salvar todo mundo, mas não seria interessante pensar (ainda que como utopia) em uma forma de luta em que identificamos melhor as pautas pelas quais compensa dedicar energia e estratégia de luta?

Estratégias de batalha

Eu quero lutar para que professores sejam valorizados, para que os gordos não sofram preconceitos, para que a universidade seja mais negra e feminina, para que as identidades de gênero e orientação sexual das pessoas sejam só mais um detalhe no tanto de coisa boa que a gente vê nelas.

No entanto, é importante reconhecer que tudo isso foi construído ao longo de períodos enormes de tempo, por gente que se articula e se junta na vontade de excluir o diferente. Isso significa que devemos lutar menos intensamente? Certamente não! No entanto, é importante saber reconhecer a necessidade do abraço para quem se encontra mais perto.

Nasci no Vale do Arco-íris e já experimentei algumas cores da bandeira: desde me assumir gay até me entender bisexual e depois ampliar minha visão para uma pansexualidade que me parece contemplar a abrangência do que sinto hoje. E nessa trajetória já fiz besteiras. MUITAS! Neguei, por exemplo, que poderia gostar de mulheres e, talvez por não saber lidar com meu próprio sentimento, já fui misógino e excludente com tudo que era mais “feminino”. Já cheguei a advogar que gays deveriam ser mais ‘normais’ para serem mais aceitos e certamente não é disso que estou falando aqui. O que quero dizer é que, mesmo tão próximo das pautas que faziam eu mesmo correr riscos e ser visto como um pária na sociedade, escolhi me alinhar ao “padrão” na medida em que conseguia. Foi o olhar paciente de alguns amigos e o tempo que me clareou as vistas. E por conta disso não me tornei uma voz ‘do outro lado’.

A exposição da vida pessoal é para falar do fato de que corremos riscos de não empunhar a mesma bandeira quando ela tem tonalidades de cor que você não aprecia inteiramente. Enquanto isso o adversário esfaqueia sem distinção você e a pessoa que está do seu lado e para quem você se recusa a dar a mão.

Mais que isso: talvez algumas pessoas que pareçam estar do outro lado também não estejam tão distantes de você.

De maneira nenhuma a sugestão é que sejamos passivos diante das injustiças , ou que não procuremos estabelecer pontos de partida mínimos para os discursos e debates. Mas sinto que há necessidade de desconfiar mais e, ao mesmo tempo, tolerar mais para aprender com o outro.

Pois enquanto a gente briga feito louco para construir o movimento mais ideal, mais perfeito e mais sem arestas possível, a luta vai sendo perdida nas trincheiras porque fomos incapazes de reconhecer a pluralidade do outro,; pior: enquanto lutávamos para sermos plurais.

Há uma problemática central de querer que todos sejam “tão plurais quanto eu”. Porque a pluralidade é o espaço do debate, e a discordância, num sistema efetivamente democrático, é parte do processo de construção da realidade.

Team Petta vs. Team Gale

O problema de futebolizar as discussões como se estivéssemos em times competidores é que as relações humanas, as decisões políticas e os importantes debates que nos definem enquanto sociedade não são tão simples quanto essa redução quer fazer parecer.

Existe gente bacana que vota no Aécio e gente monstruosa também. Meu pai fez a escolha estranha e difícil de engolir — para mim — de votar em Bolsonaro. Ao mesmo tempo, acha perfeitamente normal o meu casamento com um rapaz. O movimento gay acumulou conquistas importantes para uma sociedade que ainda mata aquilo que não entende, mas também, por vezes, exclui outras pessoas da sigla LGBTQIA+. O PT é um partido alinhado a políticas sociais necessárias e ao mesmo tempo tem decisões partidárias questionáveis a respeito dos mesmos assuntos. A J. K. Rowling diz coisas brilhantes e escreveu um universo mágico de que é difícil esquecer para toda uma geração de leitores, entretanto entrou em um debate sem sentido para excluir mulheres trans do feminismo, e acredita que isso é defender o que é ‘certo’.

Não quero argumentar para um laissez-faire ou uma ideia ingênua de viver e deixar viver que poderiam apenas ser uma tentativa de adiar o enfrentamento necessário. Mas creio que o central seja entender que quando a gente coloca as coisas em um nível de “se não está comigo, está contra mim” ou “se você não consegue entender esse argumento então é um idiota que não quero lutando ao meu lado”, há um perigo muito grande de não chegar a lugar nenhum. A missão hippie de vencer pelo amor falhou porque ignorou que há elementos de privilégio inerentes a quem pode se dar ao luxo de ficar tranquilo diante de um turbilhão revolucionário que fere e mata o diferente. Mesmo assim, acho que é crucial que a gente entenda quais são os caminhos a partir dos quais podemos construir um equilíbrio necessário para convivência. Empatia, alteridade, capacidades de ser para além do ego.

Jacob Levy Moreno, psicólogo áustro-americano, escreveu assim sobre olhar o outro:

Encontro de dois.
Olho no olho.
Cara a cara.
E quando estiveres perto
eu arrancarei
os seus olhos
e os colocarei no lugar dos meus.
E tu arrancara
os meus olhos
e os colocara no lugar dos teus.
Então, eu te olharei com teus olhos
e tu me olharas com os meus.

E eu quero encontrar o outro. Aquele que precisa de agasalho e aquele disposto a doar. As pessoas que concordam e também as que discordam dos meus pontos de vista. Os que amam Stephen King e os que o odeiam. E há, obviamente, limites para o quanto é possível deixar-se invadir, em especial diante de tantas barbaridades que encontram-se em curso no mundo em colapso que vivemos. Mas gostaria de tentar identificar o lugar desse encontro.

Queria me ver tão pequeno, mas tão pequeno que pudesse, dessa distância, entender as relações para curá-las; ao mesmo tempo queria entender a grandeza dos impactos que podemos, coletivamente, provocar no mundo, se pudermos olhar na mesma direção - ainda que apenas por alguns instantes.

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