O que é um tradutor?

Onde vivem? Como se alimentam?

Carol Chiovatto
Cabine Literária

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por Carol Chiovatto

Dentro da área de tradução literária, às vezes muitas perguntas se colocam tanto sobre o mercado editorial (como funciona a remuneração do tradutor? E os direitos autorais da tradução? O que uma editora espera do tradutor?), quanto sobre os ossos do ofício mesmo (traduzir gêneros literários diferentes traz dificuldades diferentes? Livros de época são mais difíceis que os contemporâneos? E as marcas culturais do original? Pode nota de rodapé?).

Mas antes de tudo é importante compreender a parte mais básica de todas: o que é um tradutor?

No inglês, ele é até bem bom para encontrar palavras e várias acepções. Mas ir além disso é um risco. Eu não costumo usar para coisas mais complicadas, a menos que tenha olhado o dicionário inglês-inglês primeiro.

Pode parecer uma questão idiota à primeira vista, mas, se você pensar que ela está atrelada a outra − o que um tradutor faz? (já que só é possível definir um profissional a partir de sua função) −, a coisa fica um pouco mais complicada.

A princípio, parece algo simples: é uma pessoa que pega um texto em uma língua e o escreve em outra. (Um breve parêntese necessário: quando falo de “texto”, penso em qualquer texto verbal, seja oral ou escrito). Até aí parece tudo OK, certo?

O problema dessa definição é que não existe mágica que transponha o texto de uma língua para a outra, como ela parece sugerir. Não é uma coisa automática, fácil, ou rápida. Aquilo que consideramos como tradução de um termo costuma ser adequado para transmitir uma ideia de sentido, mas é comum não trazer o mesmo valor cultural e outras cargas existentes em uma palavra.

Além do mais, a forma de um texto faz parte de seu conteúdo, e é impossível mantê-la em qualquer tipo de tradução e adaptação, pelo mesmo motivo de cada língua possuir uma lógica própria. Por exemplo, em inglês, é comum o verbo dar o modo e a preposição dar o sentido, quando em português é mais frequente o verbo dar o sentido e o advérbio, ou a locução adverbial, o modo (o professor Paulo Henriques Britto, em seu livro A Tradução Literária analisa a segunda frase a seguir, e algumas outras, explicando bem essa questão). Por exemplo:

She stormed into the room.

She broke into the room.

She crawled into the room.

She came into the room.

Em todos os quatro exemplos, parece muito claro que a pessoa estava fora de um determinado local e entrou nele, e isso nos é dado pela fórmula <verbo de ação + preposição into>. É into que nos dá a ideia de “para dentro” aqui. Agora como isso foi feito é o verbo que está contando. A última é a única que poderia ser traduzida simplesmente como “ela entrou na sala”, sem grandes prejuízos.

Há vários dicionários bons online. Para inglês-inglês, eu uso o Oxford. O dicionário em si (sem idioms etc. etc.) é de graça on-line.

Para explicar melhor, vou examinar o primeiro exemplo.

Storm, enquanto verbo, segundo os Oxford Dictionaries, significa, na acepção primeira do termo, “mover-se de maneira irritada ou à força em uma direção específica”. Então, seria possível traduzir (note que sempre há várias opções) essa frase como “ela entrou na sala em cólera”, ou “ela invadiu a sala”. Você vai perceber que, na primeira opção, parece não haver a força que esperamos em “she stormed into the room”. E por quê?

Talvez um dos motivos seja porque, ao se deparar com storm, você espere barulho, alguma violência (já que esse mesmo termo, quando usado como substantivo, significa “tempestade”). A segunda opção também parece não dar conta. O verbo “invadir” traz a ideia de entrada violenta, talvez não autorizada (que poderia ser mais adequada ao sentido de break, mas isso é outra discussão), no entanto, o autor poderia ter usado outro verbo no lugar de storm, se fosse apenas isso. Parece que ainda sentimos falta de certo barulho. Então, talvez eu pudesse traduzir como “ela invadiu a sala aos berros”.

Hum.

Agora é possível que pareça haver coisas demais na frase. Afinal, ninguém falou que nossa personagem entrou na sala gritando. Ela poderia ter entrado na sala batendo o pé, por exemplo, e teríamos o barulho a que storm parece aludir.

Então qual das três é a melhor tradução?

Aí é que está, não? Por enquanto só posso dizer que não há resposta definitiva para essa pergunta − já que, afinal, o tradutor costuma traduzir textos inteiros, e não uma só frase isolada. Pode ser que, no contexto, as três sirvam bem, ou alguma delas, ou que as três estejam uma merda e o tradutor tenha que encontrar outra solução.

Pode ser que a solução não dê conta de todo o sentido? Pode. Dependendo do caso, é até provável. Porque, por mais que a gente encontre o exato verbo e o exato advérbio que vão preservar o perfeito sentido do termo, a estrutura da frase já será diferente. O estilo do autor terá sido alterado.

Ah, mas traduzir como, sei lá “ela tempestuou para dentro da sala” não é uma opção boa?

Olha, dependendo, até pode ser, mas é muito, MUITO provável que não. She stormed into the room é uma frase perfeitamente comum em inglês, completamente dentro da lógica da língua, enquanto “ela tempestuou para dentro da sala” é algo no mínimo incomum em português. Não é o tipo de estrutura frasal em que pensamos naturalmente.

Aliás, storm é um verbo corriqueiro no sentido usado no original, enquanto “tempestuar” não é, em português. Essa é uma relação entre “marcado” e “não-marcado”, termos da teoria da tradução, que, de maneira bem simplista, tratam da ideia de que não é recomendável que um autor traduza um termo comum na língua do original por um termo incomum na língua da tradução, porque isso altera a percepção do leitor nas duas línguas (e, como o sentido é composto pela enunciação mais a recepção, ou seja, pelo que o texto efetivamente diz somado com a forma como o leitor o lê, a tradução, ao fazer isso, estaria mudando radicalmente o sentido do original).

O que eu quero dizer é que ser um tradutor é ter que fazer escolhas. O tempo todo. Algumas delas não nos deixam felizes. Está bem; muitas delas.

Existe um velho dizer italiano que fala: Traduttore, traditore! (“Tradutor, traidor!”, em tradução livre). A suposta traição de que a frase fala está justamente no fato de que, por melhor que seja a tradução, ela nunca será a obra original. A gente chama isso de problema da intraduzibilidade, e existem milhares de artigos e livros que discutem esse assunto.

Agora, a forma até faz parte do conteúdo na prosa, mas isso não traz tantos problemas (salvo em autores como James Joyce, Marcel Proust, Virgínia Woolf, nosso Guimarães Rosa) quanto na poesia, já que, afinal, na poesia a forma é uma parte fundamental do conteúdo.

Traduzindo poesia: desespero em versos

Vou usar o exemplo de um autor que meu namorado estuda por motivos de: já o ouvi falando desse poema setecentas e trinta vezes, e já posso recitá-lo de cor sabendo o mínimo de francês. O poema se chama Chanson d’Automne, do poeta simbolista francês Paul Verlaine. Ele compara a queda das folhas mortas no outono com o movimento dos violinos sendo tocados.

Até aí, tranquilo.

O problema que fará o tradutor arrancar os cabelos e chorar lágrimas de sangue é que o som das palavras, o esquema de rimas internas e externas, aliterações, métrica, ritmo e todos os outros recursos produzem sons que lembram a oscilação de uma folha seca caindo, e do violino tocando.

Aha!

Um minuto de silêncio pela pessoa que for traduzir esse poema e por aquelas que já o traduziram.

Eu não me atrevo a traduzir poesia, até porque você tem de estudar isso para conseguir produzir algo a contento (provavelmente, alguém que estuda isso e é poeta).

Para concluir, acho que a moral da história é: traduzir é fazer escolhas. Algumas mais felizes que outras. E lidar com elas depois.

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Carol Chiovatto
Cabine Literária

Tradutora e escritora. Mestra e doutoranda em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês na Universidade de São Paulo, estudiosa de gênero e estereotipagem.