Stillleben mit kämpfenden Katzen, de Frans Snyders, obra que deu origem à capa de Febre de enxofre

Orillas, vampiros e sede de poesia

A gênese da criação poética em Febre de enxofre, romance de Bruno Ribeiro

André Timm
Cabine Literária
Published in
7 min readDec 25, 2016

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Capa de Febre de enxofre

E os abismos devem ser entregues aos poucos, como uma negociação turca. (p. 199)

Um dos primeiros livros em prosa do escritor argentino (e universal) Jorge Luis Borges foi Inquisiciones (Seix Barral, 1994), publicado originalmente em 1925. Nele, Borges deu início a uma operação que se estendeu por boa parte de sua vasta produção literária: estabeleceu como fundações as “orillas”, um espaço geográfico e, na produção de Borges, também literário, que se caracteriza por ser a interseção entre o arrabal (subúrbio) e o pampa (campo), não podendo, assim, ser considerado nenhum deles por inteiro, mas ainda assim, um pouco de cada um, já que preserva especificidades e características de ambos. Um espaço estético-literário fronteiriço, que, como toda fronteira, é resiliente e impreciso, de uma maneira pertinente às subjetividades da literatura.

Borges se coloca às margens para construir seu próprio território. Sarlo (2008, p. 19) aponta que “ao reinventar uma tradição nacional, Borges também propõe uma leitura enviesada das literaturas ocidentais. Da periferia, imagina uma relação não dependente com a literatura estrangeira e pode descobrir o “tom” rio-platense justamente porque não se sente um estranho entre livros ingleses e franceses. À margem, Borges logra que sua literatura dialogue de igual para igual com a literatura ocidental. Faz da margem uma estética”.

Bruno Ribeiro, autor de Febre de Enxofre

Nas próximas noites, me vi perdido na rodoviária velha da cidade. Local underground por natureza, onde habitam vislumbres de putas, bandidos, mototaxistas, travestis, assassinos, mortos, lixo e loucura. Tudo em uma só coisa, sem distinção. Em meio a esta legião de peculiaridades, encontrava-se um poeta. Eu era um dândi do gueto. (p. 30)

Em Febre de Enxofre (Penalux, 2016) Bruno Ribeiro, escritor mineiro radicado na Paraíba, parece operar uma construção semelhante. Yuri Quirino, um poeta desiludido, após se despedir da mulher amada, conhece Manuel Di Paula, uma criatura estranha que oferece uma oportunidade peculiar de trabalho: escrever sua biografia. Para tanto, Yuri viaja à cidade natal de Manuel, lugar em que mergulha em uma espiral de horror e perdição, mas também de autoconhecimento.

Situando sua narrativa entre as cidades de Campina Grande e João Pessoa (Paraíba, Brasil) e Buenos Aires (Argentina), Bruno constrói uma tessitura vertiginosa em que os acontecimentos em ordem cronológica e geográfica são menos importantes do que aqueles que se dão em uma relação de espaço-tempo distinta, mais etérea e fantasmagórica, e por isso mesmo, mais propensa à literatura de conflito e investigação que o romance suscita.

O seu tempo é eterno, Yuri. Não te apresses. Não te apegues. O tempo caminha na sua direção. Quero te propor um negócio. Envolve seu ofício, arte, vida. Envolve sair deste tempo abafado de passado, uma mudança, novos tempos, Buenos Aires, cidade e pessoas distintas. (p. 21)

O ponto de intersecção desses territórios (Paraíba/Buenos Aires) é a mansão Di Paula, espaço que pela construção do romance opera como as próprias orillas em Borges.

A mansão da família di Paula era um casarão cravado em terreno fantasma. (p. 95)

O intestino do lar eram as sete empregadas, o patriarca era o cérebro, a mãe o pulmão e o filho único, Manuel, o coração ou as coisas que faziam da casa uma casa. (p. 95)

Porque aqui não é Bueno Aires, poeta; é espelho. (p. 178)

Aqui dentro deste órgão Borgeano, por vezes um Aleph inverso — vemos o tudo e o nada […] e por horas um espelho retorcido. (p. 231)

[…] e saímos da mansão rumo à luz do sol e da vida de Buenos Aires. A população assustada — todos são fantasmas, falsidades da mente Di Paulesca. (p. 259)

Na obra de Borges, Olea Franco (1993, p. 135) assinala que “[…] la continuidad que establece entre la fundación de la patria y su presente lo transporta a un ámbito intemporal e imperecedero”. Sarlo (2008, p. 16–17), no mesmo entendimento, afirma que “a literatura de Borges é uma literatura de conflito” e que “Borges escreveu num encontro de caminhos. Sua obra não é límpida e não se instala por inteiro em nenhum lugar […]”.

[…] dois pestilentos perdidos em um país anacrônico, ambos sem coleira, roçando pela noite. (p. 121)

Sobre isso, Sarlo (2008, p. 16–18) coloca a ideia de que “[…] a obra de Borges traz uma rachadura no centro: desloca-se na crista de várias culturas que se tocam (ou se repelem) em suas periferias […]” e continua, defendendo que há uma tensão que “atravessa Borges e constitui sua peculiaridade: um jogo entre duas margens”. Sarlo (2008, p. 47) lembra ainda que “as orillas são um espaço imaginário que se contrapõe como espelho infiel à cidade moderna despojada de qualidades estéticas e metafísicas”.

Para além da narrativa fronteiriça e imprecisa espaço-temporalmente, à primeira vista, Febre de Enxofre pode ser tomado como uma narrativa vampiresca antimercadológia. Entretanto, vai muito além. O mito do vampiro é apenas uma metáfora para uma classe de indivíduos sedentos por poiesis em um tempo onde a humanidade se torna cada vez mais vazia, frívola e superficial.

Adam (Tom Hiddleston), vampiro-músico em Only Lovers Left Alive

Em Only Lovers Left Alive (2013), no Brasil traduzido como Amantes Eternos, o roteirista e diretor Jim Jarmusch também faz uso da metáfora do vampiro para retratar uma contemporaneidade intelectualmente medíocre. Adam (Tom Hiddleston) e Eve (Tilda Swinton) são vampiros milenares sobrevivendo em meio ao tédio e lassidão dos dias atuais, numa cidade igualmente monótona, uma Detroit de paisagens lânguidas e desérticas, em meio a construções industriais decadentes.

Em artigo na revista Carta Capital, Thomaz Wood Jr. retoma a crítica de A. O. Scott, do New York Times, em que este aponta que “o vampirismo do filme serve como metáfora, não para sexo ou desejo, como é usual no gênero, mas para a paixão pela criatividade. Adam e Eve são seres remanescentes de uma aristocracia de estetas, a cultivar a beleza em todas as suas formas, um grupo formado por escritores, poetas e músicos. Uma minoria isolada, cercada por gentios que perderam a capacidade de apreciar a arte, e consomem seu tempo com frivolidades, a tornar o mundo ao redor cada vez mais feio, sujo e inóspito”.

Eve (Tilda Swinton), leitora ávida em Only lovers left alive

[…] assustado, encaro sua gengiva negra, detonada e cheia de bolhas de pus, algumas estouradas, pingando gotas amarelas feito óleo quente no meu piso; sua bocarra negra e circular se abria, os olhos arreganhados como dois círculos abismáticos, lacrimejavam um líquido escarlate e sua gargalhada áspera fazia meu teto cerebral ruir, um cheiro mórbido de miasma, decomposição, pântano, metano, enxofre escorreu dos seus lábios murchos; uma voz rude que vinha da minha mão sussurrou: pule dentro de mim. (p. 56)

A vampiridade de Manuel Di Paula parece perpassar temáticas similares. A sede que importa no personagem não é a de sangue, mas a de poesia. Nos jogos de espelho, nos anagramas, nas mensagens cifradas e no flerte com a ideia do Doppelgänger (pois Yuri é Manuel e Manuel é todos os 44 poetas que devora), Bruno Ribeiro escancara, como a bocarra negra e circular de Di Paula, na gênese da criação poética uma viagem odisseica que todo escritor atravessa e que é ver a si próprio, mergulhar e se alimentar da substância de todo o horror e amor da qual a poeisis é feita. Ou seja, é negar a ideia romantizada da inspiração como faísca divina, dádiva dos deuses reservada a poucos, e chamar para si a responsabilidade de buscar as condições e a matéria, fonte da própria criação.

Poesia […] é se perder em território linguístico. Já diria o infeliz Octavio Paz, “somos filhos do romantismo alemão”, filhos dessa ideia da inspiração, da luz no poeta, o abençoado das palavras, ora não, não existe essa abominação. Antes os verdadeiros pioneiros do século XIX, o simbolismo, a decadência, somos nós; Rimbaud, Mallarmé e Baudelaire, antes este último nome, o primeiro dos malditos e modernos. (p. 44) […]

Mais do que um excelente romance, experimental, mas não a ponto de ser hermético e assim, tranquilamente atrativo ao leitor médio, como toda boa obra de arte, Febre de enxofre se desdobra em camadas. Para quem estiver disposto a mergulhar mais profundamente, é a própria metáfora da criação poética, com seus terrores e benesses.

“A literatura é uma eterna derrota. […] uma legião orgânica de fracassados. (p. 269;270) […] Poeta, ele me disse, sou um mero Eu lírico cansado, não lhe darei respostas”. (p. 220)

Para aqueles que estão apenas atrás de uma boa história febril, a narrativa também agrada e cumpre seu papel, embora seja aproveitar pouco uma obra que tem muito mais a oferecer.

Referências

Borges, Jorge Luis. Inquisiciones. Barcelona: Seix Barral, 1994.

MONEGAL, Emir Rodrígues. Borges por Borges. Tradução: Ernani Só. Porto Alegre: LP&M, 1987.

OLEA FRANCO, Rafael. El otro Borges, el primer Borges. México-Buenos Aires: El Colegio de México-Fondo de Cultura Económica, 1993.

Ribeiro, Bruno. Febre de enxofre. Guaratinguetá: Penalux, 2016.

SARLO, Beatriz. Escritos sobre a literatura argentina. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2007.

___________. Jorge Luis Borges, um escritor na periferia. São Paulo: Iluminuras, 2008.

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