Ponto Final

Lucas Millan
Cabine Literária
Published in
3 min readMar 31, 2017

Há todo um universo dentro de um quarto. Sobre a cama vazia, lençóis desarrumados, travesseiros sobrepostos e apoiados contra a parede. Sobre a porta do pequeno armário espremido em um canto, post-its cobrindo post-its, uma ideia complementando a outra, uma tarefa sobrepondo-se à outra. Sobre o criado-mudo, um cinzeiro imundo, uma lata de coca-cola vazia e três livros, um em cima do outro; Bataille sobre Baudelaire sobre Brontë. Sobre a escrivaninha, a qual se reduzia a uma tábua de madeira improvisada sobre dois arcos de ferro, uma pequena galáxia.

Sob a luz de um abajur, uma caneca de café servia como porta-canetas, a maioria sem tinta, todas sem tampa. Um celular esquecido repousava ao seu lado, um monólito negro que absorvia a luz. Sob ele, um caderno, bem recheado e aberto em sua página mais maculada pela tinta, refletia toda a luz que recebia, irradiante. Ao seu lado, um quarto livro, também aberto, suas colunas de texto serpenteando entre as margens alvas seguindo um ritmo constante.

O gato preto sentado ante a escrivaninha percorria seus olhos amarelos pela cascata de texto, absorto por aquelas palavras que lia pela milésima vez, arrancando delas o milésimo significado. A cada estrofe, parava, deslizava o olhar até o caderno e lá anotava mais duas ou três frases para logo retornar ao poema. Seus lábios reproduziam em silêncio aquilo que escrevia.

Quando seu celular vibrou e a tábua de madeira vibrou com ele, assustou-se. Pousou a caneta sobre o papel do caderno e levou seu indicador à tela negra, um sutil toque de vida que se acendeu em uma notificação de mensagem.

Era Dele. Seu rosto se iluminou. Apagou o abajur e deixou que a tela e seu sorriso fossem as únicas fontes de luz naquele quarto. Segurou o celular com ambas as patas e leu.

“Não estou me sentindo muito bem. Conosco. Comigo. Preciso de tempo para me sentir melhor. Pois temo não sentir mais nada nunca mais. Adeus. E sinto muito.”

A mensagem terminava com um ponto final. A desnecessidade de se pontuar uma mensagem tornava aquele ponto final sonoro, negrito, uma parede que obrigava o olhar a retornar ao começo, reler tudo e estancar-se no mesmo ponto. Um ponto final em uma mensagem como aquela era o fim.

O gato negro olhou para o retrato Dele, pequenino ao lado da mensagem. Um rosto familiar perfurado por um ponto final. Da mesma forma que a mensagem era ressignificada, também aquele sorriso de canto de boca e aquele olhar penetrante ganhavam novo sentido.

Deslizou o polegar pela tela, puxando o começo da conversa dos últimos dias, das últimas semanas, dos últimos meses. Ressignificado, tudo. O gato negro procurou por indícios e os encontrou em cada vírgula, implorou às lembranças, mas nelas apenas via pontos finais.

“Adeus. E sinto muito.” Refletido no limbo de seus olhos, pensou no que responder. A barra de texto piscava, expectante, como se não soubesse que nada pode ser dito após um ponto final.

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