Andrio Santos
Cabine Literária
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4 min readNov 3, 2015

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Por que precisamos da literatura?

O Brasil parece passar por um período de grande mal-estar. Não sei se é aquele mal-estar da pós-modernidade, sei apenas que todos parecem engasgados até a alma por um maniqueísmo reducionista. Uma estranha dualidade em que alguém é ou não alguma coisa e pronto, em que você está de um lado ou de outro e pronto. Só que existe um entre-lugar, frequentemente ignorado, e a literatura pode nos levar até lá.

Marcel Proust acreditava que alguém que lê é, na verdade, um leitor de si mesmo. Existem coisas em nós que só seríamos capazes de perceber a partir da literatura. Aristóteles também escreveu sobre isso. Para ele, sobretudo o drama, o teatro, tem a capacidade de catarse — basicamente, uma espécie de purgação, de purificação, de cura espiritual através da literatura. O que eu quero dizer com isso? Bem, uma das coisas que a literatura pode fazer por nós é proporcionar um exercício de alteridade, isto é, nos colocar no lugar do outro. Assim, nós podemos ver através de outros olhos, encarar um mundo diferente do nosso, um mundo que talvez nos deixe desconfortável, que nos provoque, que nos incomode, que nos ofenda, machuque, faça sangrar e, com sorte e coração aberto, possa curar. Esta é uma das coisas mais fortes sobre literatura.

Há algum tempo, emprestei “Exorcismo, Amores e uma Dose de Blues”, do Eric Novello, para um amigo. Ele começou a leitura empolgado, encantado pelo protagonista, Tiago Boanerges, esse Constantine brasileiro. Então, ele chegou numa cena de sexo a três. Mas essa cena foi iniciada por dois homens. É polêmico? Pode ser. Deveria ser? Provavelmente não. Mas não é isso que quero discutir. Esse meu amigo leu e releu a cena e confessou mais tarde que nunca tinha parado para pensar sobre amor dessa forma, aquém a gênero. O livro mudou isso para ele, mudou isso nele.

Jim Anotsu, autor de “Rani e o Sino da Divisão”, e Felipe Castilho, da série “O Legado Folclórico”, que já tem três volumes, escrevem com protagonistas de cor negra. Com isso, eles jogam a concepção de mundo de quem lê em outra dimensão: na perspectiva de personagens que precisam crescer e viver em um país como o Brasil, onde a herança cultural escravista de um passado não tão distante ainda é assustadoramente presente. O discurso do ideário brasileiro ainda é muito poluído com preconceitos. Pré-concepções, quase sempre perigosas, que ameaçam minar o espírito que quem quer ser livre para amar, para decidir sobre seu próprio corpo, para ser tratado e viver em equidade.

Em “A Lição de Anatomia do Temível Dr. Louison”, de Enéias Tavares, romance steampunk ambientado no Brasil, o leitor encontra diversas reinterpretações de heróis da nossa literatura clássica. Um deles é o alienista Simão Bacamarte, de Machado de Assis. Como o próprio Tavares menciona, “o personagem representa tudo o que deu errado no século passado”. Simão é misógino, acredita na superioridade de uma raça branca pura e na demência de homossexuais, que ele nomeia pejorativamente de “transviados”. Tavares escreve em primeira pessoa e nos mostra que o próprio Simão não é em si um vilão com um plano diabólico. Ele realmente acredita nessas coisas. Isso faz dele um crápula, é bem verdade — e que palavra interessante essa: “verdade”. Misoginia, intolerância e racismo são a verdade de Simão. Quantos dele, em maior ou menor grau, existem atualmente por aí? Quantos discursos que ouvimos no dia a dia podem ser encontrados na voz dele?

Nossa literatura fantástica nos oferece essa visão do outro, para que a gente possa entender que esse outro não é lá tão outro assim. Somos diferentes, é claro, e isso é lindo. Diversidade sempre. Diversidade transforma um texto estéril em poesia, transmuta o deserto do preconceito num jardim de verão. A vida é assim. Dual. Paradoxal. Um conflito entre opostos. Viver é estar sempre entre a satisfação e a angústia, o amor e a dor, o riso e lágrima, o céu e o inferno. C. G. Jung escreveu que só o paradoxal é capaz de dar conta de abarcar, aproximadamente, aquilo que chamamos de vida. Porque um espírito forte pode suportar o paradoxo. Nossa literatura pode tornar nossos espíritos fortes. Então, talvez venha a cartarse e a compreensão de que as diferenças existem, mas também existe algo além, chamado humanidade; essas criaturas aterrorizadas pelas maravilhas do mundo, que desejam e que sentem e querem viver livres. Não é isso tudo o que importa?

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Andrio Santos
Cabine Literária

Jornalista e acadêmico, escrevo ficção e estudo o demônio nos livros iluminados de William Blake.