Reino Animal

João Carlos Dalmagro Jr.
Cabine Literária
Published in
3 min readApr 11, 2017

Termino de ler A Filha Perdida, da Elena Ferrante, e decido caminhar pela praia. Ainda há algumas nesgas de sol. Venta. As nuvens passam rápidas sobre o mar e escurecem a água. Uma família de argentinos corpulentos e ruidosos toma mate em uma cuia metálica. Um cachorro dorme perto da guarita dos salva-vidas. Seus olhos estão bem crispados, como que protegendo o animal de um sonho inoportuno.

[Os animais, eles também têm sonhos bons e ruins, em que estão correndo livres em campos verdejantes ou acorrentados em masmorras escuras e úmidas, sem água e comida, o que nos conduz a duas alternativas: a) a brutalidade da vida independe da consciência de si mesmo; b) a consciência de si mesmo é a raiz de todo o sofrimento, da gangorra que oscila, noite e dia, entre o sentido e a falta de sentido].

Antes de chegar à areia, porém, devo esclarecer que tive que atravessar a rua, percorrer uma quadra, dobrar à esquerda e andar sobre uma espécie de passarela, cujo caminho se abre para o mar. Fiz todo o trajeto em silêncio e com abnegação.

Resolvo então caminhar rumo a um costão com rochedos escurecidos, dunas volantes e vegetação nativa em profusão, a uns três quilômetros de distância, no sentido oeste de onde eu me encontro. É o que posso chamar de final da praia, o ponto em que a areia termina e não se pode mais avançar senão arriscando a própria vida sobre as pedras lisas feito sabão, ouvindo o rugido das ondas quebrando na muralha rochosa e avistando a cidade ao longe.

Caminho. Não cruzo com ninguém. Estou absolutamente sozinho na praia e meus passos adquirem uma lentidão impressionante. Meu pensamento desacelera em comunhão com a desaceleração do corpo. Sem nostalgia volto à infância, à adolescência, ao início da juventude, em que os acontecimentos pareciam menos fugazes e podiam ser experimentados com mais vagar.

Penso nas gerações que nascerão privadas e desfalcadas do sentimento concreto e apaziguador de fazer-uma-coisa-de-cada-vez e percebo que, nessa corrida solitária, desorientada e desorganizada, vou perdendo cada vez mais posições.

Chego ao costão e me sento na areia, ao lado de um rochedo. Não olho para o mar, nem para o chão, nem para o céu: miro o horizonte, franzo as sobrancelhas, a noite começa a tomar corpo. Um cargueiro carregado de contêineres navega em direção ao porto.

Desvio o olhar para a esquerda porque um ruído seco e um relinchar me assustam. Bem perto de mim — posso sentir sua respiração quente, calma e compassada — há um cavalo.

Continuo sentado, sem coragem para fazer sequer menção de me levantar. O animal permanece imóvel, olhando para a frente, para o navio cargueiro que parece não sair do lugar.

Toco sua pata. É musculosa e está molhada. Volto minha atenção para o horizonte e me acalmo, mas em poucos segundos nossos diafragmas, que estavam na mesma cadência, se distanciam e se dispersam um do outro. O animal interrompe o ritmo de sua respiração e, percebo, tensiona todo o corpo.

Nesse exato momento me vem à mente o livro da Elena Ferrante, na parte em que a personagem diz que há situações em que a única coisa sensata a se fazer é fugir.

Finjo não acreditar nela e permaneço sentado.

O cavalo me dá as costas e some entre os rochedos.

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