Sedição

João Carlos Dalmagro Jr.
Cabine Literária
Published in
5 min readNov 11, 2016

1

Rudolf voltou ofegante para as trincheiras ocupadas pelo exército alemão. Resvalou ao descer o barranco, porque a terra que servia de talude de contenção estava fofa e molhada. Quando já se encontrava fora da linha de fogo, entre seus colegas de farda, sacou a baioneta da ponta do fuzil, limpou o sangue impregnado na lâmina, guardou-a na bainha presa à cintura e sentou no chão. Esfregou freneticamente as mãos para aquecê-las. Elas doíam muito porque a empunhadura de sua arma era áspera e gelada e fazia bastante frio.

Depois de chover por semanas, o sol brilhava e o céu estava muito limpo e azul. A Verdun lamacenta estava coberta de corpos estilhaçados e em decomposição. O cheiro era insuportável e não se dispersava nem com o vento forte que agora varria a planície. Os soldados tinham que conviver com a náusea, a fome, a difteria e as mais variadas e fartas pestilências.

Quando a guerra começou, Rudolf era um dragão. Gostava de andar com seu sabre e seu capacete, ostentando as divisas da cavalaria. Muitas mulheres de sua cidade o consideravam um bom partido, mas ele se apaixonou por Berta. Casaram-se e tiveram um filho, o pequeno Klaus. Rudolf, Berta e Klaus formavam uma típica família bávara, que se vestia a caráter nas celebrações populares, respeitava rigorosamente a Reinheitsgebot e odiava judeus, negros, ciganos e maçons com extrema disciplina e invejável método.

Em algumas noites, entrincheirado e com frio, Rudolf tentava pensar na sua vida antes da guerra. Pensava nas maçãs que colhia das macieiras durante a primavera e nas esplêndidas apfelstrudel que Berta lhe preparava. Era acolhedor chegar em casa depois de um dia de trabalho no campo e encontrar uma ducha refrescante, refeição quente e lençóis limpos.

Apesar dessas recordações, Rudolf passava mais tempo nas trincheiras pensando nos franceses. Os franceses, com seus longos e gordurosos bigodes e suas impecáveis fardas azuis, não hesitariam em matá-lo, em especial se com a sua morte pudessem esmagar a firme resistência inimiga e ir finalmente embora daquele inferno.

Uma semana antes de Rudolf chegar a Verdun, os alemães haviam lançado gás mostarda, mas o vento que deveria canalizá-lo às posições francesas logo arrefeceu e fez com que a nuvem ocre permanecesse por dois dias sobre as suas próprias trincheiras. Muitos alemães que inalaram o veneno imobilizado naquele ar modorrento pereceram asfixiados pela secreção de seus próprios pulmões, espumando pela boca feito cães raivosos.

Quando Rudolf desembarcou no front, os mortos pelo gás ainda estavam sendo empilhados e corria o boato de que os franceses haviam se salvado com o uso de máscaras rudimentares, feitas com tiras de um pano grosseiro e áspero. Uma vez cosidas, as máscaras eram imersas em urina fresca e então colocadas sobre o rosto dos soldados, o que impedia que as vias respiratórias fossem alcançadas.

Aquilo espantou Rudolf. Era a primeira vez que um exército utilizava o gás mostarda naquela guerra. E fora justo o seu exército. O exército alemão. Ao questionar seus superiores se aquele tipo de ofensiva era permitida pelas Convenções de Genebra, Rudolf ouvia uma só resposta:
“Fodam-se as Convenções de Genebra.”

Assim Rudolf, que sentia saudade das aromáticas tortas de maçã, das saborosas cervejas produzidas de acordo com a lei de pureza e dos seios macios de Berta, passou a repetir essa frase a si mesmo quando lhe era dada a ordem de estrebuchar franceses, como forma de se isolar do medo e do desamparo das batalhas.

2

Passado algum tempo, Rudolf conseguiu identificar uma rotina de ataques.
A cada dois dias, em média, as posições alemãs eram bombardeadas, com poucos intervalos, pela pesada artilharia francesa. Rudolf se encolhia e segurava firme seu capacete, até cessar o bombardeio.

Logo após, ainda em meio à fumaça e ao cheiro nauseabundo de resíduos bélicos, se ouvia um silvo longo e agudo: era a ordem para que os franceses saíssem de suas trincheiras e avançassem.

O exército alemão possuía uma diretriz para reagir a esse tipo de ofensiva.

De início eram lançadas granadas por meio de morteiros.

Depois, as metralhadoras Maxim varriam o espaço que ia do solo até a cintura dos soldados franceses, que sequer percebiam quando seus membros inferiores eram arrancados ou despedaçados.

Finalmente a infantaria alemã, da qual Rudolf então fazia parte, saía das trincheiras e matava os sobreviventes com as baionetas.

Isso ocorria a cada dois dias, sistematicamente.

Em todas as ocasiões havia baixas de ambos os lados, mas a carnificina era incessante.

Os alemães, entretanto, apenas lançavam a contraofensiva. Jamais iniciavam o ataque.

3

Foi acordado no meio da noite pelos murmúrios de um jovem carabineiro que dormia ao seu lado e que, no dia anterior, havia sido atingido no rosto por estilhaços de um obus. Seus olhos estavam cobertos por uma espécie de bandagem. Ele estava no front há uma semana. Ao redor de seus olhos, a bandagem estava empapada de sangue.

A lua estava muito cheia e banhava os soldados fedorentos que se amontoavam nas trincheiras e tentavam pegar no sono.

“Como está bonita”, pensou Rudolf. Havia ainda umas três horas até que o sol despontasse.

Como não parasse de murmurar, Rudolf chegou mais perto do carabineiro. Ele se debatia no barro e roçava as costas no tapume, de modo que a terra caía sobre a sua cabeça. Rudolf o segurou pelos ombros e encostou a boca em sua orelha.

“É só um sonho ruim, um pesadelo.”

O jovem alemão parou de se mover. Parecia ter recobrado os sentidos e, desta vez, foi ele quem se aproximou de Rudolf.

“Por favor”.

“O que você quer que eu faça?”

“Quero que me mate. Quero que me mate agora mesmo. Antes que os franceses venham.”

“Os franceses não virão.”

“Os franceses sempre vêm.”

Rudolf o ajudou a se deitar no barranco. Tirou a bandagem do seu rosto e percebeu que os dois olhos estavam vazados. Sacou a baioneta e, num golpe rápido e seco, enterrou-a no coração do carabineiro, que grunhiu baixinho. Depois retirou a lâmina da carne, limpou-a na manga do casaco de lã e retornou à sua posição.

Logo voltou a dormir. O ataque que se seguiria em algumas horas não seria menos inclemente do que o do dia anterior.

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