Fragmento de O Mapa do Inferno, de Botticelli

Seria melhor viver no inferno

Janaína Azevedo Lopes
Cabine Literária
Published in
6 min readMar 29, 2017

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Minha homenagem a João Gilberto Noll, pois sem ele esse conto não teria existido

Em 9 de março, comecei a oficina de contos de João Gilberto Noll, na Aldeia, em Porto Alegre. Cheguei ainda tateando na ficção, que pratiquei muito pouco. Sou repórter e aprendi a escrever o que é dos outros. Essa coisa de criar minhas próprias histórias é um processo que tá só começando para mim. Sinceramente, ainda nem sei porque faço isso. Mas faço. E que privilégio foi poder ter aprendido com um dos nossos gigantes.

Sentado na poltrona da sala espelhada e de microfone em punho, Noll leu O Voo da Madrugada, do Sérgio Sant’Anna. O curso era baseado no livro homônimo e também em Iniciantes, do Raymond Carver. A leitura do Noll é muito peculiar. Ele pronuncia minuciosamente cada sílaba de cada palavra, formando as frases completas num tom monocórdico; ele fala grave, alto, muito lento, quase contemplativo, um som tão constante que por pouco não vira ambiental. Sou leitora apressada e preciso cuidar para não atropelar um vocábulo com o outro, porque o que mais quero é chegar no fim. Daí o Noll me obriga a olhar palavra por palavra por alguns segundos antes de passar para a próxima. O conto de umas 30 páginas tomou uma hora da nossa aula.

Nossa tarefa era escrever um conto por aula, com um tema designado pelo professor. Foram três, “o último verão”, “a culpa” e “a noite”. A orientação era: escreva como um pianista. Não pense muito antes de começar a botar no papel. Tenha intuição. Exercite a criação livre.

Na semana seguinte, lemos nossos contos em aula. Eu fui a primeira. Noll me disse que deveria explorar mais a inadequação e a inconformidade de um personagem contra o ambiente, aquilo que não pode ser mudado. Também me aconselhou a desenvolver mais o personagem. E disse que meu texto o havia lembrado do que o Bukowski escrevia, e seus protagonistas que reclamavam de tudo. Ter um grande escritor lendo e observando os meus textos é um privilégio tão grande que eu não imaginava antes ser possível.

Na terceira e última aula, o questionei sobre quando finalmente leríamos Carver. Já havia começado o Iniciantes e queria logo chegar nas observações e lições do americano, porque estou gostando muito daqueles contos. O Noll me disse “logo”, assim, sem detalhar nada, deixando minha ansiedade boba em suspenso, eu que esperasse que a hora chegaria. Naquela tarde, ainda leríamos o Sant’Anna.

O texto escolhido foi A Figurante. Noll nos perguntou o que tínhamos achado. Eu falei que tinha compreendido que aquele era um conto sobre contemplação: o narrador inicia a história olhando para uma foto antiga do Rio de Janeiro, observando a imagem de uma moça. É a partir daí que passa a criar sua história, sua personalidade e os passos que a levaram até aquele prédio onde foi retratada. Essa moça, a certa altura, é levada por um artista a apreciar os quadros escandalosos de Egon Schiele, repetindo o movimento de contemplação e atribuição de valores e histórias a uma imagem que o narrador fez no início. Noll concordou sorrindo com a minha observação.

Quando li a notícia de seu falecimento, me preparava para escrever o conto da aula desta quinta-feira, dia 30.

Quais seriam os próximos cinco temas que ele nos sugeriria?

Publico abaixo meu primeiro conto da última oficina de João Gilberto Noll, que foi embora me deixando cheia de perguntas, mas antes disso me ajudou a encontrar meu próprio processo de criação. Ouvindo-o e lendo-o, consegui deixar meus cavalos mentais me arrastarem, como ele disse em uma mesa da Flip. Esta é a minha homenagem a ele. Que viva eternamente em sua obra e nas marcas que deixou nas gerações que o sucederam e nas que virão a seguir. Que privilégio foi ter o conhecido.

Seria melhor viver no inferno

Nunca tinha estado no inferno, mas ao acordar, com um pouco de suor já escorrendo pelos cantos do rosto apesar do quarto climatizado, olhava para o teto e grunhia:

— É a própria antessala do capeta.

Levantava, abria a janela, investigava o dia enfiando a cabeça para a rua e constatava se as próximas horas seriam de suplício térmico ou de alívio. Mesmo que fosse momentâneo, afinal “é verão e todo mundo sabe que, se agora tem brisa, amanhã o termostato da cidade vai estar apontando pro máximo”.

Um dia se ofendeu com a visão de um homem praticando corrida nas primeiras horas da manhã. “O quão abobada é a criatura que sai igual uma lebre em plena manhã de horror climático, só de short ainda por cima, que é pra não ter dúvida de que todo mundo vai ver seu corpo reluzindo a meleca brilhosa que escorre por aqueles palmos de pele”. Se houvesse essa opção, não saía de casa, embora achasse que as paredes transmitiam para dentro os 40 graus da rua, na íntegra.

Não bastava o legítimo acinte estampado em cada termômetro, ainda tinha o desfile de visões dantescas. A população ficava feia. “Mesmo a mulher mais elegante, o homem mais aprumado, parece uma pintura surrealista andando rua afora. Nem adianta vestir roupas claras e esvoaçantes de madame. Disfarçar a decomposição com acessórios discretos porém luxuosos, que fracasso. Chapéus, coques displicentes, leques. Tudo horrível, tudo patético”. Dizia que o verão é a verdadeira democracia dessa cidade. “Ele não se importa se você passa fome no barraco ou paga o almoço com dólar. Caminhando ao ar livre do verão, todo mundo frita igualmente, tipo uma omelete na frigideira fervendo”.

Eram cinco quarteirões até o trabalho. Percorria-os a pé. Todas as opções de transporte coletivo levariam o dobro do tempo, e uns 30 graus celsius a mais. A frota, por óbvio, não era climatizada. “Se você achou que era impossível ficar mais quente do que na rua, ó santa inocência. O calor está no ar, e não falo isso de uma forma poética, não. Eu gostaria que fosse possível enxergar essa desgraça. Que pudéssemos dobrar um raio-x e usar como lente, como se faz para olhar o eclipse lunar. Mas o que veríamos não seria o espetáculo das noites, e sim uma massa avermelhada, que se impõe sobre nós e dificulta a nossa respiração, se embola sobre nossa pele e desconsidera até a refrigeração do ar, invasora sorrateira, porque sim, até no escritório com sistema central de condicionadores o calor chega, eu sinto ele. Aí eu ia querer ver quem ia sobrar suspirando: ah, o verão, como é bom o verão”.

Só uma coisa era pior do que passar pelos dias de alta temperatura da urbe em plena era do aquecimento global: presenciar ao lado dela esse período. Eu não sabia que seria assim quando aceitei o convite e me mudei para cá. Entre nossos primeiros encontros e o namoro oficial já tinham se passado alguns anos, e hoje fico pensando que, talvez, tivesse sido melhor se continuássemos vivendo em casas separadas nos seus últimos meses de vida. Falei isso para algumas pessoas próximas. Me olharam com repulsa. Mas não sabem como é viver com uma mulher que tenta te provar que o calor tem som. Ela era maravilhosa, cultíssima, complexa, tinha as melhores opiniões que vi alguém expressar sobre qualquer assunto do mundo. Foi minha primeira mulher. Eu não fui sua primeira mulher. Sempre quis a fazer feliz. Ela quis me fazer entender. A mim mesma, sobretudo. Tinha uma capacidade cirúrgico-obsessiva de enxergar a realidade. Por isso, me guiou por todos os caminhos que precisei percorrer para me aceitar.

O efeito colateral era a ultra-sensibilidade. Poucas coisas a afetavam, mas o que afetava, afetava demais. O verão, opressor e incontornável, a deixava simplesmente transtornada, ela não concebia como a atmosfera podia ser impor sobre nossas vidas, sem que pudéssemos fazer nada. Virou uma obsessiva, estudava por horas sobre derretimento das calotas polares, acordos globais de emissões de gases, como manter a temperatura interna do corpo resfriada. Na véspera do acidente, me aconselhou a deixar a água gelada do chuveiro correr pela minha nuca por 15 minutos, porque isso ia me garantir horas a mais de conforto corporal para enfrentar os 38 graus daquele janeiro.

Ainda moro na casa que era sua desde os primeiros anos da vida adulta. Ela era uma mala sem alça, eu sei. Mas não tenho conseguido viver bem aqui, sem sua presença. Fecho todas as janelas, ligo o condicionador de ar, sento à mesa e penso nela. Olho para a cadeira ao lado e a vejo mais uma vez, se abanando com as próprias mãos.

— Meu amor, é como se eu estivesse sentada ao lado do diabo em pessoa.

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