Sobre otimismo e desânimo

Janaína Azevedo Lopes
Cabine Literária
Published in
9 min readDec 27, 2016

por Zadie Smith

Zadie Smith (via CNTraveler)

Discurso realizado em Berlim, dia 10 de novembro, na entrega do prêmio Welt de Literatura, de 2016. Texto publicado no The New York Review of Books. Tradução minha.

Primeiro, eu gostaria de deixar claro o absurdo da minha posição. Aceitar um prêmio literário talvez seja um pequeno absurdo, mas em tempos como os nossos não apenas quem recebe como quem entrega sente um pouco de constrangimento. Mas aqui estamos. Presidente Trump surge no Ocidente, a Europa unida desaparece do horizonte, no outro lado do oceano — mas aqui estamos, entregando um prêmio literário, e recebendo-o. Muitas outras coisas mais importantes foram causadas pelos eventos de oito de novembro que eu hesito em incluir a minha escrita na lista, e só menciono agora porque a pergunta mais frequente que ouço sobre meu trabalho nesses dias me parece ter a ver com a situação em questão.

A pergunta é: “Nos seus primeiros romances, você soava tão otimista, mas agora seus livros estão repletos de desesperança. É justo constatar isso?” É uma pergunta normalmente feita em um tom de expectativa sorrateira — você reconhece esse tom se já ouviu uma criança pedir permissão para fazer algo que, na verdade, já fez.

Às vezes, é colocada mais explicitamente ainda, como: “Você era uma defensora do ‘multiculturalismo’. Admitirá agora que isso falhou?” Quando eu ouço essas perguntas, me lembro que ter crescido em uma cultura homogênea, num canto da Inglaterra rural, por exemplo, ou França, ou Polônia, durante os anos 70, 80 ou 90, significa pensar sobre si mesmo como simplesmente vivo no mundo, sem perturbações históricas; porém, se vocêfoi criado em Londres no mesmo período com, digamos, vizinhos muçulmanos paquistaneses, indianos hindus no andar de baixo, judeus letões no outro lado da rua, é considerado, pelos outros, como uma evidência de um experimento social e histórico específico, agora desacreditado.

Claro que, quando eu era criança, não percebi que a vida que levava era considerada, de qualquer forma, como provisória ou experimental. Eu pensava que era só a vida. E quando escrevi um romance sobre a Londres em que cresci, não me dei conta que, ao descrever um ambiente em que as pessoas de locais diferentes viviam relativamente em paz, lado a lado, eu estava “defendendo” uma situação que na verdade estava sendo avaliada, e cujas condições podiam ser revogadas de repente. Eu era muito inocente, estava com 21 anos. Eu pensava que as forças histórias que tinham levado o lado negro da minha família da costa oeste da África, por meio da escravidão, para o Caribe, através do colonialismo e pós-colonialismo para a Grã-Bretanha, eram tão sólidas e reais quanto as forças históricas que, digamos, roubaram uma vilinha italiana de seus judeus e, graças à sua distância física de Milão, mantiveram aquela vila bastante branca e católica nos mesmos anos em que o meu cantinho da Inglaterra virou racialmente plural, e multi-religiosa. Eu pensei que minha vida era tão verdadeira quanto as vidas lá na vila rural italiana, e que em ambos os casos a era histórica estava se movendo na única direção possível: adiante. Não entendia que estava “defendendo” o multiculturalismo ao simplesmente descrevê-lo.

“Homogeneidade racial não é garantia de paz, não mais do que a heterogeneidade está fadada ao fracasso.”

Ao mesmo tempo, não acho que fui tão ingênua a ponto de acreditar, aos 21, que sociedades homogêneas racialmente eram necessariamente mais felizes ou mais pacíficas que as nossas, simplesmente em razão de sua uniformidade. Afinal de contas, até uma criança com metade da minha idade sabia o que os gregos antigos fizeram uns com os outros, e os romanos, e os britânicos do século 17, e os americanos do século 19. Meu melhor amigo de juventude — agora, meu marido — é da Irlanda do Norte, uma área onde as pessoas que parecem exatamente idênticas umas às outras, que comem a mesma comida, que rezam para o mesmo Deus, que leem o mesmo livro sagrado, que vestem as mesmas roupas, e que celebram as mesmas datas, tinham mesmo assim passado quatro séculos em guerra, por uma diferença, relativamente pequena, de doutrina que mais tarde foi transformada em uma briga maior sobre terras, governo e identidade nacional. Homogeneidade racial não é garantia de paz, não mais do que a heterogeneidade está fadada ao fracasso.

Eu penso por estes dias que um tipo melancólico de viagem no tempo virou um tema político insistente, tanto na direita quanto na esquerda. Em 10 de novembro, o New York Times publicou uma reportagem que dizia que sete entre dez republicanos preferem os Estados Unidos como nos anos 50, uma nostalgia com certeza completamente indisponível a uma pessoa como eu, já que naquele período eu não poderia votar, casar com o meu marido, ter meus filhos, trabalhar na universidade onde atuo, ou viver no meu bairro. Viagem no tempo é uma arte distinta: uma viagem prazerosa para alguns, uma história de horror para outros. Enquanto isso, alguns integrantes da esquerda têm suas próprias ideias de viagens no tempo, imaginando que os mesmos princípios ideológicos rígidos uma vez aplicados às questões dos direitos trabalhistas, bem-estar e comércio podem ser aplicados também a um mundo global de capital fluído.

Mas ainda a questão de um projeto falido — como é no mundinho irreal da minha ficção — não é totalmente equivocada. É verdade que meus romances já foram mais solares, e agora as nuvens pairam sobre eles. Em parte, eu atribuo isso simplesmente à experiência da meia-idade: escrevi Dentes Brancos ainda jovem, e cresci desde então. A arte da meia-idade é com certeza mais nublada do que a arte da juventude, já que a própria vida fica mais nublada. Mas seria hipócrita fingir que é somente isso. Eu sou uma cidadã tanto quanto uma alma particular, e uma das coisas que a cidadania nos ensina, ao longo do tempo, é que não há perfeição nas relações humanas. Esse fato, ainda obscuro para uma jovem de 21 anos, é mais claro pra uma mulher de 41.

Como meu querido presidente, logo ex, bem entendeu, nesse mundo só há progresso adicional. Só os intencionalmente cegos podem ignorar que a história da existência humana é, simultaneamente, a história da dor: da brutalidade, do assassinato, da extinção em massa, de todas as formas de venalidade e horror cíclico. Nenhum território é livre disso; nenhum povo, livre de manchas de sangue; nenhuma tribo, inteiramente inocente. Mas ainda há esta questão redentora de progresso adicional. Pode parecer pouco para aqueles de perspectiva apocalíptica, mas para ela, que há pouco tempo não podia votar, ou beber a mesma água que seus compatriotas, ou se casar com a pessoa que escolhesse, ou morar em certos bairros, tais mudanças adicionais parecem imensas.

Enquanto isso, o sonho da viagem no tempo — para novos presidentes, jornalistas literários e escritores do tipo — é só isso: um sonho. E um que só faz sentido se direitos e privilégios concedidos a você hoje também tivessem sido, lá atrás. Se alguns homens brancos estão mais sentimentais a respeito da história do que qualquer outra pessoa agora, não é uma grande surpresa: seus direitos e privilégios vêm de longo tempo. Para uma mulher negra, a extensão da história habitável é muito mais curta. O que eu teria sido, e o que teria feito — ou mais — o que teriam feito comigo — em 1360, 1760, 1860, em 1960? Não digo isso pra reivindicar algum pedestal de vítima perfeita ou inocente histórica. Sei muito bem como meus ancestrais da África Ocidental escravizaram e venderam seus primos e vizinhos tribais. Não acredito em nenhuma identidade política ou pessoal de pura inocência e retidão absoluta.

Mas também não acredito em viagens no tempo. Eu acredito em limitação humana, não por algum senso de fatalismo, mas por uma precaução aprendida, adquirida tanto da história recente, quanto da passada. Nós nunca seremos perfeitos: essa é a nossa limitação. Mas podemos ter, e temos, momentos dos quais é possível ficar genuinamente orgulhoso. Eu fiquei orgulhosa da minha vizinhança, na minha infância, lá em 1999. Não era perfeita, mas era cheia de possibilidades. Se as nuvens pairaram sobre a minha ficção, não é porque o que era perfeito se mostrou vazio, mas porque o que estava se tornando possível — e ainda é experimentado como possível por milhões — agora é negado, como se nunca tivesse sido ou nunca pudesse existir.

Eu percebi enquanto escrevo este texto que desviei um pouco da felicidade que deveria sentir ao receber um prêmio literário. Estou muito feliz de receber essa grande honra, por favor, não se enganem. Mais do que feliz, estou encantada. Quando comecei a escrever, nunca imaginei que alguém fora da minha vizinhança leria esses livros, menos ainda fora da Inglaterra, do “continente”, como meu pai costumava chamar. Eu lembro o quão impressionada fiquei ao embarcar na minha primeira book tour europeia, para a Alemanha, com meu pai, que tinha vindo pra cá pela última vez em 1945, quando era um jovem soldado na reconstrução. Foi uma viagem cheia, para ele, de nostalgia: tinha amado uma alemã, lá em 45, e um de seus grandes arrependimentos, ele admitiu durante a viagem, foi não se casar com ela e, ao invés, voltar pra casa, pra Inglaterra, e casar com sua primeira esposa, a que precedeu minha mãe.

Nós fizemos um par engraçado naquela book tour, tenho certeza: uma jovem negra e seu velho pai branco, carregando nossos guias e procurando os lugares que meu pai tinha visitado quase 50 anos antes. É dele que herdei meu otimismo e meu desânimo, já que ele foi um dos libertadores em Belsen e, portanto, havia visto o pior que o mundo tem a oferecer; mas tinha, de lá, ido adiante, com coração e mente abertos o suficiente, indo de um casamento sem sucesso para outro, se casando duas vezes sem se importar com diferenças de classe, cor e temperamento, e ainda assim achava na vida razões para ser alegre, razões para felicidade, até.

Era, percebo agora, uma das pessoas menos ideológicas que já conheci: tudo que lhe aconteceu, ele levou como um caso particular, sem ser capaz ou sem querer generalizar. Ele perdeu seu sustento, mas não sua fé no seu país. O sistema educacional falhou com ele, mas meu pai o reverenciava e depositou lá toda sua esperança para seus filhos. Suas relações com mulheres eram as mais desastrosas, mas ele não odiava mulheres. Em sua mente, ele não tinha se casado com uma negra, e sim com a Yvonne, e não tinha um conjunto experimental de filhos multirraciais, ele tinha eu, meu irmão Ben e meu irmão Luke.

Quão raras pessoas assim são! Eu não sou tão ingênua agora para acreditar que temos o suficiente delas em qualquer período de nossa história para formarmos uma sociedade decente e tolerante. Mas também não vou negar sua existência ou a possibilidade de vidas assim. Ele era o membro da classe média branca, um homem sempre aflito pelo desânimo que ainda conseguia manter um cerne de otimismo. Talvez em uma época diferente, com influências culturais diferentes, vivendo em uma sociedade diferente, ele teria se tornado um velho branco raivoso, de quem a esquerda atual tem tanto medo. Como ele foi, nascido em 1925 e morto em 2006, viu seus filhos se beneficiarem das proteções do pós-guerra civilizado, com educação e saúde livres, e sentiu muitas razões para ser grato.

Este era o mundo que eu conhecia. As coisas mudaram, mas a história não será apagada pela mudança, e os exemplos do passado ainda mostram algumas possibilidades para nós, novas oportunidades, para uma nova geração refazer as condições das quais nós nos beneficiamos. Nenhum dos meus leitores nem eu estamos nas planícies iluminadas pelo sol descritas em Dentes Brancos. Mas a lição que eu tiro disso não é que as vidas daquele romance eram ilusórias, mas que aquele progresso não é permanente, sempre será ameaçado, deve ser redobrado, re-expresso e reimaginado, se for para durar. Eu não digo que é fácil. Eu não tenho as respostas. Eu sou por natureza uma pessoa não-política, e essa é a era política mais obscura que eu já vivi. Meu trabalho, como ele é, toca a vida íntima das pessoas. Quem me pergunta sobre o fracasso do multiculturalismo quer sugerir que não apenas a ideologia política falhou, mas que os seres humanos mudaram e agora são fundamentalmente incapazes de viver em paz, juntos, apesar de suas muitas diferenças.

Neste argumento está implícito que o escritor deve ser um inocente, mas eu sustento que as pessoas que acreditam em mudanças fundamentais e irreversíveis na natureza humana são, elas mesmas, a-históricas e ingênuas. Se romancistas sabem de algo é que cidadãos individuais são plurais internamente: eles têm em si um grande espectro de possibilidades de comportamento. São como trilhas musicais complexas, das quais algumas melodias podem ser provocadas e outras ignoradas ou suprimidas, dependendo, pelo menos em parte, de quem está conduzindo. Neste momento, por todo o mundo — e mais recentemente, nos Estados Unidos — os condutores à frente da orquestra humana têm só as melodias mais banais e malvadas à mente. Aqui na Alemanha, vocês vão se lembrar dessas canções marciais: elas não são uma memória tão distante. Mas não há lugar no mundo onde não tenham sido tocadas, de vez em quando. Nós lembramos, também, que uma linda música vai tentar tocar, e nos encorajará, se conseguirmos, a cantar junto.

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