TENTATIVAS FRUSTRADAS DE ESGOTAMENTO

João Carlos Dalmagro Jr.
Cabine Literária
Published in
3 min readMay 29, 2017

Em aulas que ministrou na Universidade de Berkeley, Califórnia, em 1980, Julio Cortázar tentou definir um de seus gêneros literários preferidos, o conto, que à época estava em franca ebulição no cenário latino-americano e despertava o interesse dos leitores e críticos dos Estados Unidos.

Suas explanações e colóquios foram sintetizados em um livro pouco conhecido, e talvez até menosprezado por não ser uma obra de ficção, mas que faz parte indelével de sua vasta produção literária (Aulas de Literatura, Berkeley, 1980, publicado no Brasil pela editora Civilização Brasileira).

Sabedor da dificuldade de se conceituar com objetividade um gênero literário tão profuso, maleável e multifacetado como o conto, Cortázar, um amante das letras francesas, afasta de imediato a possibilidade de fazê-lo a partir do tema por razões bastante óbvias: já se escreveu sobre absolutamente tudo. Amor, morte, paixão, sofrimento, desilusão, júbilo, separação, decepção, abatimento, cansaço, gozo, finitude, solidão. Nada escapou ao crivo da literatura, essa forma magnífica de analisar a fundo os mais recônditos aspectos da condição humana. A propósito, Cortázar brinca que a temática pode ser simplesmente uma pedra observada a partir de um determinado ponto de vista — desde, claro, que o observador-narrador seja alguém chamado Franz Kafka — o que demonstra sua fina ironia e sua incondicional veneração pelos clássicos.

A análise do escritor argentino nas aulas ministradas na Universidade de Berkeley dá uma guinada no momento em que se chega à forma ou, como também refere Cortázar, à estrutura do conto. Em outras palavras, como o tema é narrado e, portanto, como o estilo de um autor é construído.

Tangenciando a discussão cortazariana relativa à definição do conto, é possível dizer que o estilo é o que define o escritor e dá o tom da narrativa a partir dos epicentros da tensão e da intensidade. De modo que um conto bem escrito, com uma estrutura eficaz e bem resolvida, é capaz de não expor superficialmente a que veio mas, mesmo assim, funcionar e causar os efeitos desejados desse tipo de narrativa curta: o estranhamento, o desvelamento e a revelação, ainda que subliminar, de uma mensagem mergulhada na narrativa, de um lampejo de verdade sem o qual o conto perde seus pontos intrínsecos de sustentação e de força.

O estilo é, dessa forma, o que renova e refresca a literatura, que, como produto de uma cultura específica de um tempo e de um espaço, traz consigo o universal — liame que une autores tão distintos em temas e estilos como o espanhol Miguel de Cervantes, o brasileiro João Guimarães Rosa e o francês Marcel Proust.

Entre os escritores há os que primam por estilos mais tradicionais e clássicos, sem ousadias, e que funcionam muito bem. E há também os que navegam com bravura e coragem pelas ondas conturbadas do experimentalismo, como Georges Perec.

Um dos escritores preferidos do chileno Alejandro Zambra — que já declarou ter Cortázar em seu DNA — Perec nasceu em Paris, em 1936, e faleceu em 1982. Capaz de títulos tão fabulosos quanto A arte e a maneira de abordar seu chefe para pedir um aumento e de escrever um livro utilizando apenas uma vogal que se encontra em profusão na língua francesa (e), participou, junto com Italo Calvino e Raymond Queneau, da OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potentielle, algo como Oficina de Literatura Potencial), que, formada por escritores e matemáticos, propunha a libertação da escrita por paradoxais constrangimentos literários.

Em meados de outubro de 1974, Georges Perec se dedicou a uma empreitada insólita. Passou três dias seguidos em cafés e tabacarias da praça Saint-Sulpice, no coração do bairro de Montparnasse, em Paris. Anotou tudo o que sua percepção permitia: objetos sendo levados pelo vento, transeuntes, veículos, animais, nuvens, o passar do tempo, os fatos mais insignificantes do cotidiano, sem chegar à conclusão alguma. “O que acontece quando não acontece nada.”

Vasculho a internet à cata de fotos do escritor nos cafés de Saint-Sulpice. Em uma delas Perec está sentado na parte interna do Cafe de la Mairie com um cigarro entre os dedos, olhando para fora e sorrindo. Vejo nele uma dignidade e uma felicidade tão inocentes, simples e sinceras como esta frase: “Limpar é bom, mas não sujar é melhor.”

Tenho vontade de fazer a mesma coisa, de ser um pouco, por alguns dias ou horas, como Georges Perec. Mas Paris, a place Saint-Sulpice, Montparnasse, as tabacarias e os cafés estão demasiado longe.

--

--