Twin Peaks: mais David Lynch do que nunca

André Timm
5 min readMay 23, 2017

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Twin Peaks voltou mais David Lynch do que nunca e isso talvez seja motivo para uma divisão quanto às impressões sobre o retorno da série com sua terceira temporada: quem gosta da obra de Lynch como um todo, incluindo seus filmes e curtas, provavelmente gostará dos novos episódios. Quem gosta apenas da série, mas não tem familiaridade ou não gosta da filmografia de Lynch, talvez tenha dificuldades em simpatizar com a volta.

Carregada de simbolismos de maneira muito mais intensa, a trama, que antes se dava toda em torno do assassinato de Laura Palmer, agora foca muito mais no agente Cooper (ao menos até os 4 primeiros episódios), que passa 25 anos preso na Black Lodge, numa espécie de troca de mundos com Bob, o assassino: enquanto este ocupa o corpo de Cooper no plano material, o agente é jogado para o plano onírico-espiritual, de onde não podia escapar, até agora, e onde habitam seres como o Gigante, O Homem de um Braço só, Leeland Palmer e a própria Laura Palmer.

O Braço, a propósito, ainda habita a Black Lodge, mas não mais materializado na persona do anão interpretado por Michael J. Anderson; agora tornou-se uma outra criatura, composta de ramificações eletrificadas e orgânicas, como uma árvore, que culminam num aglomerado de carne pulsante falante. A volta de Anderson já não era esperada desde que acusou Lynch publicamente afirmando que toda a história de Twin Peaks seria baseada em fatos reais, decorrentes da relação do próprio Lynch com sua filha. Todavia, antes das acusações, os boatos apontam para uma recusa de Lynch e da emissora em relação aos valores de cachê astronômicos que Anderson teria colocado como condição para sua volta à série.

Ausências a parte, em relação à atmosfera, a velha Twin Peaks está lá, mas de um jeito diferente, como seria de se esperar de qualquer cidade 25 anos depois. A medida que personagens clássicos vão surgindo, estabelece-se uma espécie de conforto saudosista como contraponto e equilíbrio em relação a todas as novas locações e personagens, que quebram um pouco da mítica da cidade das temporadas 1 e 2, a qual todos estavam acostumados.

Um dos simbolismos mais emblemáticos e curiosos talvez seja a caixa de vidro situada no alto de um edifício em NY. Vigiada e filmada dia e noite, a caixa parece consistir numa espécie de portal entre os planos, sendo o ponto de partida para um dos assassinatos (são vários) que ocorrem ao longo dos primeiros episódios e, talvez, estabelecendo uma alegoria à caixa de Pandora, artefato da mitologia grega, oriundo do mito da criação de Pandora, que guardava todos os males do mundo.

É notável como Lynch imprimiu sua assinatura estética de forma tão marcante nos novos episódios. Em muitas ocasiões, a sensação é de estar assistindo a um dos curtas de Lynch como Six Figures Getting Sick (Six Times), The Alphabet, The Grandmother e The Amputee.

The Grandmother, David Lynch, 1970

Os planos demorados, a forma peculiar de narrar, os cortes exagerados de frames de maneira a deixar a cena truncada, quase como um stop motion, muito do que é clássico na obra de Lynch está na série. Os créditos mostram, inclusive, que Lynch assumiu o sound design dos episódios, o que é nitidamente perceptível, marcando aí mais uma das características pelo qual é possível reconhecer as produções autorais do diretor.

Outro recurso que grita nos episódios é a forte sensação de onírico, a qual Lynch sempre foi hábil em construir. Em muitos momentos, tem-se a impressão de estar assistindo a um sonho, o que se dá em muito pela maneira como Lynch consegue narrar. Sonhos já foram e segue sendo retratados milhões de vezes em produções para o cinema ou TV, embora quase sempre soem artificiais, arremedos em relação ao que são sonhos de verdade. Lynch, entretanto, parece entender como os sonhos funcionam, sua narrativa, tornando possível que os mostre como se detivesse um dicionário onírico.

Ao juntar tudo isso (a estética de Lynch, o simbolismo carregado, o onírico) é no mínimo curioso pensar em como Lynch e Frost conseguiram convencer a Showtime a produzir Twin Peaks nesses termos. Nos anos 90, é sabido, inclusive narrado no livro Reflections: An Oral History of Twin Peaks, de Brad Duke (no Brasil Twin Peaks: arquivos e memórias, Darkiside, 2017) que Lynch e Frost enviaram roteiros falsos à emissora, na época a ABC, para que pudessem gravam o que realmente queriam. Eram outros tempos. Hoje, 25 anos depois, embora os executivos da TV (provavelmente) não sejam tão ingênuos a ponto de cair no golpe do roteiro falso, é admirável perceber como foram convencidos a produzir algo que soa tão anticomercial nos dias de hoje.

Nesses tempos de produções com fórmulas, em que é possível saber até mesmo em que episódio o espectador é fisgado, em que não há espaço pra pontas soltas e tudo precisa ser explicado, mastigado, é de se esperar que muitos não comprem a proposta desse retorno de Twin Peaks. De fato, é provável que sua volta não seja tão arrebatadora quanto foi seu surgimento, na década de 90. Alguns acharão a série confusa, outros, arrastada. Alguns apontarão efeitos especiais precários, desleixo nos roteiros, como já anda sendo dito por aí.

No entanto, convém lembrar o quanto o universo onírico está ligado ao inconsciente. E que o inconsciente se comunica através de simbolismos. Em 2012, a emissora inglesa BBC perguntou a sete dos maiores experts do mundo em cérebro e cognição, de quatro grandes universidades (Oxford, Montreal, Columbia e Londres), qual a proporção de inconsciente diante da consciência. Pelas estimativas dos especialistas, a consciência ocupa no máximo 5% do cérebro. Todo o resto, 95%, é o reino do inconsciente.

O escritor Marcelino Freire disse, em certa ocasião, que literatura não é pra entender, é para sentir. Talvez não seja má ideia aplicar a mesma abordagem à Twin Peaks.

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