Um Jardim de Dores

Um conto sobre como os livros de colorir vão acabar com a raça humana (uma teoria da conspiração para ser levada a sério)

Felipe Castilho
Cabine Literária

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por Felipe Castilho

Eu pensava que era um bom profissional.

Anos estudando o mercado. Anos aprendendo a editar, entre erros e acertos. Anos aprendendo a antecipar as tendências. Anos pensando que era o melhor no que fazia.

Tantos anos, para tudo se acabar em pouco mais de um ano.

Tudo começou com um livro de colorir. O diferencial era que este livro seria voltado para adultos. Mandalas. Estamparias. Jardins…

Jardins.

É aí que mora a maior das ironias.

Achei que eu não deveria ficar de fora da onda dos livros de arte terapia. Quem apostou, ganhou. O jardim podia ser secreto, mas a fórmula do sucesso era bem descarada, por assim dizer. Eram livros e mais livros, mil detalhes entre páginas. Pessoalmente, eu enxergava cada jardim preto e branco como uma promessa de agonia, como uma tortura. Como alguém conseguia se deliciar ao ficar debruçado sobre mil detalhes, preenchendo, preenchendo..? Por que as planilhas de Excel não fizeram o mesmo sucesso (quando ainda tínhamos computadores funcionando para isso)?

Eu ficava feliz em ver cada pedido de reimpressão do nosso livro de colorir, e aquilo me bastava. Eu não tinha a menor vontade em começar um deles. Minha terapia era ver o dinheiro do acerto do varejo de livros inflando minha participação nos lucros da editora.

Como eu tinha minha própria conta para cuidar, não pensei muito em como os fabricantes de lápis de cor estavam faturando.

Os livros não podiam ser preenchidos por canetas hidrográficas. Canetinhas, um ano atrás, serviam para manchar a pele de policiais militares inescrupulosos que agrediam professores grevistas — mas essa é outra história triste. As hidrográficas vazavam para a folha do verso e estragavam o livro. Enfim, o velho giz de cera também não servia para colorir os pequenos detalhes, adornos, penas de beija-flor, tão pequenas e delicadas.

Só os lápis de cor funcionavam.

Somente madeira.

As caixas de lápis começaram a sumir das prateleiras de papelarias e mercados. Os livros de colorir, no entanto, continuavam crescendo. A demanda só aumentava. A indústria de lápis precisou aumentar a produção, e assim passou a derrubar mais árvores.

Mais papel. Mais madeira. Acabavam mais rápido do que a água que já estava para acabar.

Em certo momento, tínhamos muitas páginas coloridas. As 48 cores que se derramavam em nossos jardins de duas dimensões não condiziam com a falta de verde no mundo. Nos jardins desfolhados. Nos bosques obliterados. Nas florestas devastadas.

A Amazônia inteira foi encaixotada e colocada à venda, de uma maneira bem mais literal do que a que já estava sendo praticada.

Quando todos tínhamos livros e lápis em nossos lares, além de tendinites e lesões causadas pelo esforço repetitivo, eles vieram.

Do alto. E não houve tempo para qualquer meio de comunicação narrar a invasão dramaticamente.

O plano era acabar com nossos recursos. Nos forçar a cometer o ecocídio. Ficarmos com pulsos e braços tão cansados e inúteis a ponto de não conseguirmos levantar uma arma sequer contra eles. Aí, sim, eles chegaram, fazendo círculos em nossas plantações — não por coincidência, parecidos com as mandalas que coloríamos.

Eu, que não pintava, consegui erguer meu punho brevemente contra os nossos novos senhores. Pousaram em meu jardim, fizeram contato imediato contra meu nariz (tinta vermelha, por toda a minha roupa) e notaram que eu era… diferente. Me deixaram viver para que eu visse a nossa queda. Para que eu percebesse que havia sido apenas uma ferramenta para seus planos de enfraquecer a humanidade, e depois conquistá-la.

E aqui estou, sentado em um toco de árvore. Páginas inacabadas voavam com as correntes de vento, enquanto mais naves entravam em nossa atmosfera. Agora, atmosfera deles.

Enquanto o mundo queima ao meu redor, olho para o chão e vejo um lápis. Verde, cor da esperança. Quebrado, pisoteado por algum adulto em fuga.

Nós colhemos o que pintamos.

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