Você sabia que o Rodrigo está namorando?

Lucas Millan
Cabine Literária
Published in
6 min readDec 21, 2016

Bastou uma frase para meu mundo ruir.

— Você sabia que o Rodrigo está namorando?

O tom da doninha com quem eu conversava, uma amiga de longa data, era casual. Estávamos no meio de um café, colocando o assunto em dia. Havíamos falado da cirurgia que ela fizera para tirar o siso, havíamos falado de minha nova rotina de trabalho, havíamos falado de amigos em comum e como iam suas vidas. Toda a conversa fluía tão naturalmente quanto o café que tomávamos.

Mas quando o nome de Rodrigo veio à tona, engasguei.

Rodrigo era meu ex; um husky com quem passei alguns meses intensos, um cara ligeiramente mais velho que me fascinou desde o primeiro dia em que o vi, e quem despertou em mim todo o tipo de emoção, desde a melhor até a pior. Fazia mais de um ano que eu havia terminado com Rodrigo.

— Pô, legal! — respondi, forçando um sorriso que mais deve ter parecido uma careta.

Eu sequer entendi por que aquilo me abalava tanto. Fazia meses que eu sequer pensava nele, meio ano desde a nossa última conversa: breve, casual e reconciliadora. Eu já o tinha superado da maneira mais adulta e ponderada possível. Porra, eu havia terminado com ele, e não o contrário.

Então por que eu sentia a garganta entalar, o coração pesar, o estômago ferver…?

— É, parece que eles foram viajar sei lá pra onde. Pra algum lugar com neve. Eles postaram as fotos lá no Facebook — continuou ela, distraidamente passando o dedo por seu celular e sem perceber meu aparente desgosto.

Viajar. É, eu lembro de quando a gente fazia planos de ir “pra algum lugar com neve”. Ele queria ver neve pela primeira vez e eu queria mostrar neve pra ele. Era um bom plano. Mas não rolou, faltou grana, faltou tempo, faltou disposição. Ainda assim era uma delícia deitar na cama e conversar sobre as coisas incríveis que faríamos nessa hipotética viagem.

— Olha só que fofos — disse minha amiga, botando a tela de seu smartphone bem na frente do meu focinho. Nela, um husky e um tigre sorriam, bem agasalhados, sobre um fundo montanhoso e nevado.

Eu não precisava de foto para lembrar daquele sorriso: contido, amplo o suficiente para expressar sua felicidade, mas sem nunca perder o controle sobre ela. Esse sorriso e a serenidade de seus olhos foram as duas coisas que chamaram minha atenção logo no início, o que me fizera pensar “tenho que ser amigo dessa pessoa”. Mas o que realmente me fez perceber que estava desgraçadamente apaixonado por aquele husky foi sua forma de falar durante nosso primeiro bate-papo. Cada frase que ele soltava era um reforço da serenidade em seu olhar, cada comentário exaltava a confiança em seu sorriso.

— Sim, fofo — concordei, dando uma segunda chance para a minha tentativa de sorriso. Falhei miseravelmente. Tentei esconder meu fracasso enterrando meu focinho no café.

Minha amiga continuou a fuçar em seu smartphone com olhar perdido e eu tentei adocicar meu humor com o amargo café preto.

Foi o Rodrigo quem me ensinou a tomar café. Bom, a idolatrá-lo. Em troca, eu o ensinei a beber algo que não fosse cerveja. Compomos um ciclo onde ele me guiava pelos dias e eu o guiava pelas noites. Ele me ajudou a ser mais organizado, a ser mais ambicioso, a ser mais focado. Minha vontade de crescer só não era maior do que minha vontade de compartilhar com ele meu mundo, meus bares favoritos, os melhores becos da cidade, os lugares mais silenciosos do bairro.

E ainda assim, o que realmente me fazia admirá-lo com olhões brilhantes e embriagados de cafeína era sua atitude perante a vida, cheia da mesma disciplina de seu sorriso, da mesma serenidade de seu olhar. Seu jeito de falar, olhar, gesticular, tocar, cheirar, beijar, transar… Tudo esbanjava segurança e eu me ensopava dela, crente que estava aprendendo a ser confiante também.

Mas lá estava eu, um ano depois, um poço de insegurança, um abismo do ego. E lá estava ele, abraçado com alguém, vomitando a certeza de que ele não precisava de mim, afinal.

“Então por que caralhos ele implorou?!”, pensei, deixando o copo de café pousar pesadamente na mesa, derramando um pouco sobre a manga da minha camisa.

— Cê tá bem? — perguntou a doninha, levantando o olhar de seu celular — . As suas orelhas estão caidaças.

— Tô, tô, só bateu uma tontura aqui — me desculpei, esfregando os olhos irritados (lacrimosos? Talvez). Olhei para meu pulso e para a mancha de café sobre o tecido negro — . Vou lá no banheiro lavar isso aqui antes que a mancha se espalhe.

Me levantei e arrastei meus cascos até o banheiro, deixando o enjoativo cheiro antisséptico me trazer de volta à realidade. Abri a torneira, joguei duas mãozadas de água fria no rosto e me olhei no espelho, deliberadamente prestando atenção em como as gotas acompanhavam as curvas de meu focinho antes de pingar na pia.

“Qualé?! Como você pode ainda estar tão bravo por algo tão… tão idiota?! Você foi egocêntrico, ele foi egoísta; você achou que já não valia a pena o contrato social de um relacionamento formal e quis terminar”, eu racionalizava, olhando o meu reflexo nos olhos, meu reflexo devolvendo o olhar com a mesma intensidade. “Era pra tudo ter acabado ali”.

É, mas ele não quis terminar. Disse que não era justo, que ele estava passando por uma fase ruim, que seu comportamento até então havia sido por puro descuido e que não representava de maneira alguma o que ele realmente sentia por mim. Ele implorou para que continuássemos. Ele chorou por mim, na minha frente. Isso me pegou desprevenido.

Rodrigo, bastião da segurança e do autocontrole, derrubado daquela maneira. Isso me fez sentir especial novamente e me sentir especial era tudo o que eu desejava. Ou achava que desejava. Desde então, uma fenda se abriu em nosso relacionamento, uma fenda fina, porém profunda. Nunca mais voltamos àquele estado inicial, àquele ciclo perfeito e equilibrado. Caímos em uma cobrança constante que nos afastava o um do outro. Ele começou a controlar a forma como eu interagia com as pessoas; eu comecei a desconfiar em silêncio de seus encontros com amigos.

A partir do momento em que ele deixou de compartilhar sua segurança comigo, eu fui incapaz de manter a sanidade. Até chegar ao ponto em que decidi, de maneira brusca e não tão cordial, tirá-lo de minha vida. A cena se repetiu, ele implorou (com menos ímpeto e muito mais cansaço) para que eu não o fizesse. Eu perguntei por quê. Ele disse que porque me amava.

— E por que você me ama? O que eu tenho que te faz me querer?

— Eu não sei — Respondeu ele, após alguns segundos, sem conseguir olhar para mim — . Eu nunca soube.

Me senti enganado, devastado.

O amor tem essa maravilhosa capacidade de fazer a sua existência ter um sentido maior do que a própria vida. Aquelas palavras quebraram definitivamente a ilusão de sentido que o próprio Rodrigo me havia ajudado a construir. O amor é uma acumulação de desejos, personificados, projetados em uma única pessoa. No meu caso, não era o Rodrigo, o husky da foto, quem eu amei (ainda amo). Eu não conheço esse Rodrigo, esse Rodrigo já não faz parte da minha vida há meses.

Não, quem eu realmente amei (e ainda amo) é aquele Rodrigo que estruturava todos os meus desejos. Aquele Rodrigo que me ajudara a me sentir amado, que me ajudara a me sentir especial, que me ajudara a ver progresso em uma existência arrastada e cíclica. Amo e sinto falta desse Rodrigo.

Ao ver a foto, senti uma última confirmação, uma sentença absoluta de que nunca mais o terei. Mesmo tendo consciência de que voltar com ele seria cair no mesmo erro, o Rodrigo real continua sendo o mais próximo do meu Rodrigo, aquele ideal, aquele que amo. Como se a última porta, já emperrada há muito, tivesse sido bloqueada com tijolos, cimento e uma mão de cal.

E eu insistia em bater a testa contra ela. Daí a dor que transparecia no rosto refletido naquele espelho de banheiro de café. Já não escorria nenhuma gota, minha pelagem marrom estava apenas húmida, logo estaria completamente seca. Fechei os olhos, respirei fundo e contei até três. Bem mais leve, saí do banheiro e retornei à mesa, onde minha amiga, quem continuava submersa na telinha de seu celular, me recebeu com um gesto vago e umas palavras certeiras:

— Cê tem que deixar de ser trouxa.

Sorri por dentro e terminei meu café antes que esfriasse completamente.

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