Cap. 10 — Catorze

ravi freitas
Cacto0083
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3 min readJun 22, 2020

Maria e 83 chegaram no esconderijo dela depois de dois dias de caminhada. Vasculhou o que ainda existia de comida na sua geladeira pra se alimentar, procurou por armas e trocou de roupa. Também pode, finalmente, tomar um banho.

O banho de Maria foi como nenhum outro que havia tomado em sua vida. A água que caía sobre sua cabeça camuflava as lágrimas que saíam sem parar. Quanto mais estava perto da morte, menos parecia conseguir mostrar qualquer tipo de sentimento. Mas agora que estava segura, desabou.

O robô permanecia imóvel, no meio do cômodo principal do lugar. Ele olhava com atenção, juntando em seus circuitos tudo o que sabia sobre seres humanos e tudo que via ali, tentando entender a utilidade de cada um dos equipamentos. Assim como um bebê, o primeiro sentimento desenvolvido na máquina havia sido a curiosidade. Tudo ali devia ter um propósito. Se tivesse pálpebras, elas estariam arregaladas.

“Olha pra cima”, disse Maria. 83 levantou a cabeça. O Sol passava entre os buracos das telhas e formavam pequenos pontos luminosos. “Vem cá”. Ela puxou ele pela mão pra perto da parede, onde apoiou os pés logo após se deitar no chão. O Cacto não entendeu, mas repetiu o movimento, sentando-se no chão e apoiando os pés na parede. Lado a lado, ele olhava fixamente pra ela, e ela pra ele. “Certo, agora olha pra cima de novo”.

“Vê cada ponto luminoso desse? Cada um é uma vida. Vê como a luz dança passando entre eles e iluminando o quarto? Cada movimento é como se fosse uma história. Enquanto as estrelas — tu sabe o que é uma estrela, né? — no céu noturno formam um monte de constelação diferente, sem conexão, cada ponto desse é parte de um mesmo astro, o Sol. É como se tudo tivesse interligado, sabe? Eu não entendo o porquê das pessoas preferirem a noite. Não dá nem pra ver nada direito, né não?”

83 ouvia aquilo e tinha mais vontade de olhar Maria falando do que olhar o teto do esconderijo. Mas também não queria perder aquele mundo de descobertas diante dele.

“Tá vendo aqueles 7 buraco ali? Então, eu sempre vejo uma faca. Me lembra o dia que eu vi uma peixeira cair do céu e quase me matar. Até hoje eu não faço ideia de como isso aconteceu, juro pra tu. Aquele ali parece minha bota, né? Me faz pensar em caminhada. Deixa eu ver onde tá… pera, to procurando um pra te mostrar, fica mais por ali do lado direito. É um cacto, que nem tu. Quer dizer, um cacto de verdade. Tu já viu um cacto né? Tinha uns no caminho pra cá, acho que tu já deve ter visto sim.”

O robô sorria por dentro, sem conseguir, de maneira alguma, expressar o que sentia naquele momento.

“Ali, ó. Ali, entre aquela roda e aquela que que fica brilhando colorido, fazendo um arco-íris. Aliás, sabe o motivo dela brilhar? Ali em cima tem uma garrafa de cachaça, de uma vez que a gente tava todo mundo comemorando aqui e começamo a jogar as garrafa vazia de cana pro alto. Uma delas, ainda com um dedinho de cachaça dentro, caiu em cima do telhado e não quebrou. Ficou bem em cima do buraco. Acho que a gente tivesse tentando acertar, não tinha conseguindo. Mas aí, toda vez que o sol bate nela fica assim, colorida. Doidera pensar nisso, né?”

Era impossível explicar a vastidão que é o sentimento humano. Ali, vendo ao vivo, 83 começava a entender um pouco mais essas criaturas, mas também entender melhor o que ele mesmo sentia.

“Mas então, ali do lado tem aquela, que parece um cacto. E tu é um cacto! Bonito, né? Que nem tu, todo de ferro, cheio de espinhos, mas tão diferente. As vezes nem parece que tu tem espinho, porquê na real dentro dos cactos tem água, sabia? Num lugar tão seco, dentro de uma planta tão assustadora como essa, tem ÁGUA! Tem vida, sabe? Sem água não existe vida, Oitenta e três. Quando tudo isso virar mar, o sertão ficar chei d’água, vai ter cacto de verdade pra todo lado. E aí tu não vai mais precisar ser um cacto de mentira. Tu vai poder ser só você, sabia?”

83 não sabia quem era, mas sabia que queria ser quem quer que ele fosse. Ser um Cacto era pouco demais pra ele.

“Aliás, não sei se você sabe falar, mas meu nome é Maria… não, já sei! Se você é CACTO83, eu sou MAR14. Mas pode me chamar só de Catorze.”

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ravi freitas
Cacto0083

eu sou o inverno russo matando todos aqueles que se aproximam