Cap 6 — Maquinofagia

ravi freitas
Cacto0083
Published in
3 min readMay 29, 2020

Preso pelos espinhos nos ombros de 83, o corpo de Catorze balançava com os passos firmes do robô. Dessa vez, na direção oposta. O cacto havia decidido voltar para Cordel de Aço, onde daria um enterro digno praquele cadáver, que já estava em avançado estado de decomposição.

O cheiro não o incomodava. Não tinha como sentir, mas imaginava que incomodaria outros. Além disso, em suas mãos carregava também a cabeça de Capitão, retirada antes de sair da caverna. O corpo do Jagunço permanecia lá, exposto, numa cova rasa.

Os dias se passaram solitários como sempre, enquanto os sentimentos de revolta dentro da máquina se amontoavam e se misturavam. Sua raiva, tristeza, rancor e culpa ferviam debaixo do Sol de Tumalina. As curtas noites eram passadas também em movimento, já que ele não precisava descansar.

Ao longe, uma nuvem de poeira subia. Uma carroça vinha em sua direção. O encontro era iminente, e, quando concretizado, a imagem daquela máquina carregando um cadáver em suas costas e a cabeça de um homem da lei nas mãos foi recebido com espanto. Aquelas pessoas reconheceram com facilidade as feições de Capitão: os olhos e o queixo cibernéticos não deixavam dúvida quem aquele Cacto levava consigo.

Quem conduzia a carroça, puxada por um burrinho, era Zito, um mecânico. Na carga, sua família e algumas partes robóticas que trazia consigo para vender em outras cidades. 83 sabia o que era sorte, mas nunca achou que máquinas também eram queridas o suficiente por Deus pra ter. Por um momento se sentiu humano, diante da alegria que só um encontro improvável é capaz de trazer.

Os dois se entreolharam, mas o trabalhador não teve medo. Aquele não era um cacto como os outros. 83 levantou as mãos e se ajoelhou. O filho de Zito desceu da carroça, chocado com aquela visão, mas também maravilhado. Era apenas uma criança e nunca havia visto uma máquina como aquela tão de perto. Colocava a mão no nariz, evitando sentir o cheiro de Catorze.

“Eu sou um só um mecânico, seu Cacto!”, disse o sertanejo. “Tô viajando com minha família pra outras cidade pra vender peça. O senhor pode pegar qualquer coisa que tiver aqui, mas deixa a gente viver, por favor”.

Cacto não tinha como responder. Os dois se encararam por um tempo, enquanto 83 puxava o queixo do Jagunço, retirando seu implante mecânico. Levantou, com suas mãos sujas de sangue, e apontou para o próprio pescoço.

Não houve mais trocas de palavras, mas ambos se fizeram entender, como em uma conversa sutil onde duas pessoas sabem o que a outra quer dizer apenas por reconhecerem estar na mesma situação de desespero.

Zito trabalhou por toda noite no Cacto, mexendo nos circuitos do robô, trocando suas partes mecânicas pelas partes de Capitão. Sua mulher olhava o marido atentamente, ora desejando que ele ali mesmo destruísse a máquina, mas ao mesmo tempo temendo que se algo desse errado, eles estariam mortos. A criança dormia em paz. Com o levantar do sol, o mecânico também se levantou. O trabalho estava finalizado.

O cacto se sentou, olhou para o Sol, e gritou. Gritou com a força de uma voz guardada por séculos de dor e sofrimento, séculos de raiva e rancor. Enfim, tinha voz. “Ô, seu Cacto, a gente vai simbora, viu?”, disse Zito, assustado. “Eu já fiz o que o senhor queria”.

“Obrigado pelo que fez, humano. Mas não me chame de Cacto”, disse 83. “Esse não é mais meu nome”.

--

--

ravi freitas
Cacto0083

eu sou o inverno russo matando todos aqueles que se aproximam