Aos 21, meu futuro estava escrito no Ceará: ser esposa ou professora. Decidi querer mais

Ligia Guimarães
Cada Uma

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Por Ligia Guimarães, do Cada Uma. Siga a gente no Twitter!

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Quem puxar conversa com alguns dos muitos brasileiros que circulam pelo bairro de Astoria, no Queens, em Nova York, vai perceber que o restaurante da Lúcia Cruz, 51 anos, é referência para a comunidade brasileira que mora lá.

De sexta a domingo, o lugar é ponto de encontro dos brasileiros que trabalham na cidade e compartilham, em diferentes níveis, um sentimento comum: a saudade de casa. Ou pelo menos a nostalgia de conviver com a música, comida e o clima familiar e acolhedor dos bares do Brasil.

Tais sentimentos são antigos conhecidos de Lúcia, que sofria com pesadelos e saudade do pai quando deixou sua cidadezinha no interior do Ceará pela primeira vez e se mudou para Nova York, há 30 anos. Ela dividiu suas memórias daquela época com o Cada Uma.

Leia os principais trechos do depoimento de Lúcia:

Cada Uma pergunta: Qual a decisão que te dá mais orgulho na vida?

“Decidir vir para Nova York não é fácil para uma garota de 21 anos, de uma cidade de 12 mil habitantes. Para uma garota que cresceu na fazenda. Foi uma decisão corajosa. Era um caminho que me daria oportunidades de conhecer outras coisas da vida”.

Eu nunca tinha saído de Uruburetama, uma cidade super pequena, no interior do Ceará. Não conhecia São Paulo, não conhecia o Rio. Meu primeiro passo na vida foi: Uruburetama — Nova York!

Nunca imaginei vir para Nova York. Me mudei para cá aos 21 anos, para casar e morar com a família do meu futuro marido, que já estava há alguns meses vivendo em Manhattan.

Ficamos dez anos juntos e tivemos um filho, o Luccas, que tem 24 anos e trabalha comigo aqui no restaurante. Não falava nada de inglês. Pensava em ficar três anos, fiquei 30.

Conheci meu segundo marido, que é de Minas, em uma festinha de amigos em comum. Somos casados há 16 anos. Com ele tive o Rodolfo, 15, e o José Eduardo, 10.

No Ceará eu tinha oito irmãos mais novos, que moravam todos com o meu pai. Deixei todo mundo lá. Foi difícil, porque eu era muito dependente do meu pai — que pra mim era um super pai — e eu me sentia muito protegida.

Aqui em Nova York eu só conhecia a família do meu marido. Não tinha mais ninguém fora desse círculo deles.

O que me ajudou a aprender inglês foi um hábito que eu criei nos primeiros meses. Eu pegava um caderno, fazia uma lista de palavras durante o dia: cadeira, caneta, carro. E, uma a uma, ia traduzindo do português para o inglês. Toda noite eu deitava com o caderno e lia todas, até decorar. Daí quando eu ouvia, pelo menos eu já reconhecia a palavra.

Um dia, na rua em que nós morávamos, vi um homem procurando vendedores de livros para trabalhar. Perguntei ‘por que só homens, mulher não pode? E ele falou: pode’, acho que pode!

Fui uma das primeiras mulheres que eu vi na rua vendendo livros. Eram livros devolvidos pelas livrarias para as distribuidoras, porque tinham pequenos defeitos. Você comprava por 50 centavos e vendia por 1 dólar. Alguns eu vendia por 3 dólares, 5 dólares.

Eu não sabia falar nada, mas gritava: one dólar! One dólar!

No fim eu me descobri uma ótima vendedora. Acho que pelo fato de eu falar bem alto, dar o preço. Eu vendia em vários pontos: na Rua 42, na Rua 14, na Union Square. A Park Avenue com a rua 23 também era um ponto excelente.

Uns meses depois eu e meu marido juntamos dinheiro, compramos uma van e passamos nós mesmos a comprar os livros; vendemos por mais de três anos. Conseguíamos dar trabalho para muita gente que chegava do Brasil. Parei quando a prefeitura começou a exigir licença para ambulantes. E também era muito frio, congelava o meu pé, era difícil. Depois disso fui ser garçonete em Manhattan. Depois de três anos aqui eu consegui o meu greencard.

30 anos você não imagina o que era o Nordeste do Brasil. A gente morava no interior e eu nem me considerava pobre, meu pai era fazendeiro.

Lá no Brasil, quem é pobre não tem nada. Hoje até já tem mais; vejo todo mundo que quer fazendo universidade, coisa que na minha época não tinha.

Eu tinha dois sonhos: ser jornalista ou atriz. Não queria ser repórter não, queria ser apresentadora. Mas não existia muita expectativa, já havia um certo limite para a minha vida.

Existiam duas saídas: uma era ser professora e a outra era casar. Era difícil para um pai ter oito filhos e conseguir mandá-los para Fortaleza para estudar; tinha que pagar casa, faculdade. Tudo isso era muito distante para mim. Mas eu queria muito sair de lá.

Eu sempre trabalhei no Brasil. Antes de vir para cá, meu último trabalho era como professora. Mas com o salário que eu ganhava eu comprava alguma roupinha e mais nada.

Eu tinha que morar com meus pais, não dava pra comer, pra fazer a unha, pra nada. Eu não era independente e podia ter minha vida. A primeira vez que eu fui adulta, que eu tive a minha casa, foi em Nova York.

Quando eu saio e volto, eu penso: estou na minha terra. Hoje, aqui é a minha cidade. Por mais que eu vá ao Brasil e fique feliz lá, sempre me dá vontade de voltar.

Meu pai tinha um bar e era uma pessoa muito rígida. Acho que foi daí que eu peguei esse amor pelo comércio. Aos 16 anos eu acordava às 5h da manhã e fazia todo tipo de comidinha para o bar: cuscuz, sarrabulho, bolo. E às 7h os clientes já começavam a chegar. Às 11h eu ia para a escola.

Quando cheguei em Nova York, o que mais sentia falta era da segurança. De saber que, se acontecer alguma coisa, você tem a casa da sua mãe, do seu pai. Eu acordava à noite assustada, com pesadelos.

Lá no Ceará a casa da minha mãe era minha, sua e do vizinho. Se chegasse um amigo em casa, era capaz da minha mãe tirar do prato dela para fazer mais um prato pra ele. E aqui nos EUA, de repente eu me deparei com isso: o que está nessa geladeira é de A, o que está ali é de B, você não pode mexer nesse suco, nesse pão. Isso era assustador para mim.

Comprei o meu restaurante há três anos. É o meu segundo restaurante no Queens, tive um outro por 7 anos.

Uma vez, logo que eu cheguei aqui, eu liguei para casa e não estava muito contente. O meu pai disse: minha filha, volta pra casa, você tem família. Mas eu não queria voltar. Eu queria ser independente, ter a minha vida. Eu passo muito isso para o meu filho: você está tendo a oportunidade hoje que eu não tive.

O Cada Uma acredita que há infinitas maneiras de ser uma mulher incrível, e que ninguém deve julgar suas decisões de vida. Não há nada mais feminista do que ser livre!

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Ligia Guimarães
Cada Uma

Brazilian journaist. 2016 Fellow at the Tow-Knight Center. MBA em economia pela FIA. Into economic, gender and social issues.