Governo branco e masculino: Só quem sempre foi ouvido acha que ter voz não é importante

Ligia Guimarães
Cada Uma
5 min readMay 15, 2016

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Com a internet, quem sempre foi emudecido ganhou o direito de gritar. E todas essas vozes exigirão ser representadas onde se decidem as políticas públicas

Por Ligia Guimarães, do Cada Uma. Siga a gente no Twitter!

Perguntaram para Trudeau (AKA primeiro ministro do Canadá): Por que você escolheu colocar 15 mulheres e 15 homens no seu governo?’ Resposta: ‘Porque é 2015!’ (Foto: Newsweek — link pra reportagem logo aí abaixo)

Desde o começo do ano, quando tirei quatro meses de licença para estudar, mergulhei como nunca no mundo das questões de gênero. Foi por causa do Cada Uma, meu projeto dedicado a contar as histórias de vida das mulheres brasileiras.

Confesso que, quando eu comecei a pensar em escrever sobre as histórias de lutas e desafios femininos do dia a dia no Brasil, eu achei que eles eram meio óbvios pra todo mundo, homens e mulheres.

Afinal, quem é que não saberia, por exemplo, que:

— O Brasil é uma sociedade machista;
— A mulher é sobrecarregada pela dupla jornada casa + trabalho (quem diz isso é o IBGE, ocá);
— Que a mulher brasileira estuda mais, mas ganha menos;
— Que a mulher tem pouca autonomia e liberdade nas decisões sobre o seu corpo;
— Que está exposta à violência (somos o quinto país em feminicídios, você sabia? A maioria é assassinada por um familiar, dentro de casa)
— As mulheres tão lidando com tudo isso praticamente sozinhas, com pouquíssimo ou nenhum apoio da sociedade e do governo.

Basta ler os jornais para saber que rola tudo isso e que, como sociedade, deveríamos priorizar umas políticas públicas para resolver tais questões. Óbvio, certo?

Errado. Quando meu projeto foi apresentado e as conversas começaram a surgir espontaneamente aqui em Nova York, logo percebi que o primeiro desafio era explicar pras pessoas onde é que estava o problema que eu via, para que então elas pudessem decidir se iam ou não se importar com ele.

“Mas Ligia, o feminismo vê as coisas por um lado muito negativo, não acha não? Mas Ligia, se todo mundo começar a pedir só coisa para mulheres, não vai ter dinheiro público pra tudo. Você não acha que se os negros pedirem coisas só para os negros, e as mulheres só para as mulheres, a sociedade vai ficar mais dividida? Mas as pessoas estão brigando mais, né?”

Não coincidentemente, na minha opinião, todas essas aspas aí vinham de um mesmo perfil: homem, branco, com curso superior e pós-graduação. Para eles, aqueles problemas da listinha ali em cima simplesmente não representam nenhuma dor que eles já tenham sentido.

(Talvez tenha doído em suas mães e irmãs, mas não são coisas sobre as quais a gente converse no dia-a-dia; tratamos apenas como o curso natural das coisas…)

Certa vez, aqui em NY, conversando sobre esses temas com um muito inteligente e renomado senhor americano, estudado, branco, de meia idade e boa-praça, a sinceridade dele foi ainda mais didática pra mim:

“Ligia, eu tento. Mas os problemas da mulher brasileira são tão distantes de mim que eu mal consigo entender. Que dirá te ajudar com ideias”.

Foi um momento de eu me sentir um E.T, na linha“Mulheres brasileiras: como vivem, o que fazem, do que se alimentam” para uma plateia que, na real, não estava muito interessada. Por quê? Porque ele simplesmente não tem a menor empatia pelas coisas que eu estou descrevendo.

Por quê? Porque ele é um crápula? Não, ele não é. Mas porque tal causa não se relaciona a nenhuma experiência que ele tenha tido na vida.

Muito mais fácil para este senhor seria, por exemplo, se identificar com um projeto que trate da inclusão social de veteranos da guerra americana. Ou com qualquer coisa que saia da boca de um outro senhor branco de meia idade. Ou até com questões sociais mais fáceis de entender, tipo sem-tetos.

Mas mulher, e ainda mais do Brasil…vida em Marte parece mais próxima.

Agora, olhe bem para a foto acima. E depois olhe pra lista de problemas das mulheres lá em cima: você acha que alguma daquelas coisas está nas prioridades destes senhores?

Não, não está.

E veja bem, eu não estou nem entrando no mérito da questão da qualidade política e técnica do novo governo, sobre as quais eu e o Brasil inteiro temos opinião de sobra. Mas, mesmo que eles fossem pessoas exclusivamente idôneas, bem-intencionadas, bacaninhas e eleitas; as prioridades deles não representariam toda a sociedade.

E se a gente encher a sala com mais mulheres, talvez o grupo todo vá passar batido por algumas demandas que são muito doloridas e cruciais para os negros, historicamente excluídos de oportunidades no Brasil. E se enchermos de negros, ainda assim, talvez a gente esqueça das causas GLBT.

Poxa, mas daqui a pouco você vai querer colocar todo mundo?

Sim; todo mundo. Uma sociedade menos desigual começa em garantir que a a maior diversidade possível de segmentos esteja representada ali naquelas salinhas de Brasília onde se decidem as coisas importantes do país. E o balanço e a relação diversidade/competência deveria ser alcançado a partir da sabedoria e experiência de cada governante.

Porque, se tem uma coisa que a internet mudou neste planeta, é a seguinte: validar o que dói e o que não dói não é mais prerrogativa exclusiva do homem branco e rico. Todo mundo que foi historicamente emudecido tem agora a chance de reclamar até se fazer representado.

E as mulheres, há pouco mais de cem anos, eram um dos segmentos da sociedade que eram invisíveis e mudos, como tão lindamente falou recentemente a Meryl Streep, que você pode ver neste vídeo abaixo:

“Women weren’t always in the world. We used to be hidden, at home, in the harem, or held on a pretty short leash…. For thousands of years, the voices of women did not resound … in the important (places) where the course of history was set. Until about 150 years ago — a fraction of a millisecond on the human clock, women’s priorities, and concerns, and achievements were invisible.”

Pode ser que o mundo nunca mais entre num consenso absoluto. Colocar tantas vozes nas salinhas que decidem as coisas importantes vai causar, espera-se, sempre muito barulho e discussão.

Mas é melhor discordar e chegar-se a um meio do caminho do que continuar em acordo porque há sempre apenas uma voz na sala, século após século.

Desde que o governo Temer foi anunciado, com sua equipe masculina e brancona, já li várias críticas semelhantes se espalharem pelas redes sociais.

Mas não importa de que gênero são os ministros, o que importa é que ele seja competente! Não importa se é negro, se é branco, se é homossexual.”

Ah, importa sim. E importa muito.

Se você acha que não, muito provavelmente é porque sua voz sempre esteve lá.

É mais ou menos como bem resumiu o Justin Trudeau, primeiro ministro do Canadá, quando perguntado por que foi que ele decidiu colocar 15 homens e 15 mulheres na sua equipe de governo.

“Por que é 2015!”

Peace.

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Ligia Guimarães is a 2016 fellow at the Tow-Knight Center for Entrepreneurial Journalism, at Cuny. She is also a reporter at Valor Econômico, in Brazil, and worked for G1 and Gazeta Mercantil.

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Ligia Guimarães
Cada Uma

Brazilian journaist. 2016 Fellow at the Tow-Knight Center. MBA em economia pela FIA. Into economic, gender and social issues.